MEMÓRIAS
DE UM POETA COMOVIDO
Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra; humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões. Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das vidas que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na ESE de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitula-se (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos. O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992. Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si. A dado passo, Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido”. Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores.
As primeiras páginas do manuscrito estão escritas em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos versificatórios tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Numa delas, ainda actual, afirma (e assim termino):
“Com repúblicas e monarquias, / Assim vamos passando os dias, / Vivendo assim iludidos. / Em guerra vamos passando, / Por baixo do fogo chorando, / Uns já mortos, outros feridos. // Essas grandes democracias / Combatem todos os dias / Contra esses ditadores, / Porque na verdade porém / Deles só guerra nos vem, / Fome, lágrimas e dores. // [...] // Mal empregada Ciência / A custo e com paciência / Que hoje se está cultivando. / Só se emprega em maquinismo / Pra nos trazer o terrorismo / Para os inocentes ir matando. // Essas grandes construções / Tanto em barco como aviões, / Não tem fim o seu limite. / Afinal o que é que fazem [?] / A morte à gente nos trazem, / Construção de dinamite. // Maldita guerra afinal, / Que se torna universal. / Achando pouco a Europa, / Por toda a parte se grita, / Só se vê gente aflita, / Tanto civis como tropa. // [...] // Acabai com o armamento / Todas as nações ao mesmo tempo, / Sejam iguais as bandeiras. / Tenham-nos uma amizade, / Com tanta solidariedade / Com os irmãos de Além Fronteiras. // Esse grupo de vilões, / Ministros e patrões, / Esses que nada produzem. / Com a sua instituição, / Sem alma nem coração, / À miséria nos conduzem. // [...]”
2 comentários:
O Ruy teve a deferência - a amizade, mais propriamente - de me mostrar a cópia do caderninho, estava eu ainda no Centro de Estudos, minha morada profissional.Um acto de verdadeira poesia vivencial, o do A., porque feita, escrita com devoção, apenas para a deixar aos seus descendentes, conforme no caderninho se afixa.
Também eu fiquei comovido na altura, grato - porque não são tampouco versos de pé quebrado e porque nos acalenta saber que há pessoas assim(imagino o Senhor Domingos,pela noite roubada ao sono bom de agricultor, ou nos intervalos das fainas, escrevendo com aprumo os seus textos). E comovido estou agora, por ver este post.
Se há um Além, e se daí se lêem blogs, daqui envio ao A., para que ele o veja, um amigo e firme abraço dum colega hortelão!
O meu post visa - para além da expressão de quanto senti quando li pela primeira vez os poemas de Artur Domingos Garcia - divulgar este poeta, que julgo completamente inédito. Não fosse a lembrança da sua bisneta, hoje animadora cultural, nunca seria possível termos hoje a oportunidade de conhecê-lo.
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