POETAS NOVOS DE PORTUGAL

RUI LAGE



Elipse

Nos pomares,
nas hortas ascendentes
a tarde inteira foram as vozes
sem quebras, sem omissões
e a crina do potro sacudiu a pastagem
palpitante de sol
sem que noite alguma viesse
elidir o pensamento.

(in Berçário)



Espanto

Os pardais dispararam das heras
a coberto da noite
que tacteava na lenha.

Primeiro o rufar das pequenas asas,
um estertor, uma arritmia, depois
as salvas secas
enquanto rodei sobre mim
o tempo de pressentir a sombra
que partiu com eles em busca de longe

(de bosque em bosque
de fonte em fonte
e de prado em prado).

(idem)



A Céu Aberto

Dizem que o Sr. João não se lava,
que em certas noites
dorme no monte junto ao cavalo;
que bebe muito e cai pela terra
em redondo o pensamento,
que a sua cama não tem lençóis
e que a suportam quatro tijolos;
que nunca lava as escadas
e que nunca lava a roupa
embora permaneça preso ao ribeiro
muito depois
de as mulheres terem partido.

Vejo
que a cova dos seus olhos
foi aberta num sítio
rodeado de terra por todos os lados.

As árvores, que se saiba,
não se lavam
e dormem ao relento
encostadas ao cavalo do estio
(se assim não fosse não amaria
o que já não seriam árvores).

(in Callipole – Revista de Cultura, nº 12, 2004)


Rui Lage (Porto, 1975), licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, é membro da Fundação Eugénio de Andrade e director da revista águasfurtadas (Porto). Publicou, em poesia, Antigo e Primeiro (Quasi, 2002) e Berçário (Quasi, 2004). É ainda autor de uma peça de teatro, Não há mais que Nascer e Morrer (Edições Mortas, 2004).

2 comentários:

Anónimo disse...

Dá-me gosto ver aqui poemas do Rui Lage, amigo e companheiro de jornada que muito prezo porque é um cara-direita... e ainda por cima bom poeta.
Aproveito o ensejo para lhe mandar um abraço já natalício!

Ruy Ventura disse...

Um abraço deixo também ao Rui Lage, no momento em que divulgo os seus poemas nesta humilde antologia da "malta nova" - agradecendo-lhe em público as suas palavras de incentivo sobre o "Estrada do Alicerce".