Natureza viva
com amigo
e telefone
(texto e ilustração
de Nicolau Saião)


Anteontem, aí pela tardinha, estive de longe à conversa com um amigo. Minto, a conversa foi de perto, as casas é que estavam longe mas o aparelhómetro aproximou-as.
Ambos emocionados recordámos velhos tempos dos inícios de oitenta: quando, acompanhados em geral por outro amigo – esse, então funcionário duma livraria-editora onde mais tarde iria justamente ocupar lugar bem mais importante, infelizmente já falecido – percorríamos muitos lugares de Lisboa aonde a nossa curiosidade nos levava.
Recordámos também os passeios que dávamos com um filho meu: esse amigo, que sempre teve para connosco uma maneira de ser bondosa e comunicativa, aberta e franca, levava-nos a galerias e, nos museus que visitámos, era uma espécie de cicerone para com o pequeno João. Comprava-lhe livros adequados à idade, guloseimas quando calhava, tinha para com ele atenções que não se esquecem.
Ficávamos sempre no sofá-cama dum “atelier” que ele tinha – pois o meu amigo pinta e também escreve. E de que maneira!
Comigo era um senhor companheirão – sempre muito direito nos seus cinquentas de mago e de cidadão. Por essa altura eu andei bastante atacado por uma nefrite de que só me livraria mediante uma operação no Santa Cruz de Carnaxide. Mas, até lá, estive uns tempos a perder tempo em consultas com outros Hipócrates. E esse amigo, desveladamente, procedia assim: ia esperar-me a Santa Apolónia, que era onde parava/pára o combóio que vai do nordeste alentejano à capital; ia comigo à consulta e, fosse durante uma, duas ou três horas, esperava pacientemente conversando comigo e até com outras pessoas presas ali ao ordálio da dor (e todas ficavam encantadas com o seu verbo amigável, comparticipativo e esfusiante de criatividade); depois, para me acalentar, levava-me a casas-de-pasto e restaurantes e a seguir ao cinema ou à Feira Popular a comprar livros, ou aos cafés duma Lisboa que já me parece perdida num sonho (bom).
O que a gente falava – de livros e de pinturas, de coisas de dentro e de coisas de fora, de projectos que em parte efectivámos e de sonhos comuns! “Mas por muito que falemos nunca chegaremos a dizer tudo!” me preveniu ele uma vez com a sabedoria e a sensatez que lhe é apanágio.
Tantas coisas que recordámos, que dissemos na hora ou apenas pensámos!
E é desse amigo, pessoa que dois dias antes se tivera a justeza de distinguir com um galardão (ou foi ele que distinguiu o galardão atribuído?) que eu vos deixo aqui um poema de que muito gosto – e creio que Vocês também irão gostar.
Vai à guisa de abraço que lhe endosso em público, fraterna e comovidamente.

O HERÓI

Herói é o meu nome.

Meu olhar frio, arguto
Não vê coisa que o dome.
Meu esforço rude e sano
Não desmaia um minuto.

Sou herói todo o ano.

Quando passar por vós, naturalmente,
com este meu ar simples e no entanto diferente
e no entanto diferente do ar do resto da gente
não digais: é fulano.
Dizei: é o Herói.

O herói, simplesmente.


Mário Cesariny


2 comentários:

Anónimo disse...

Foi mais que justo o prémio a Cesariny. Um poeta dos meus preferidos, surrealista. Já sabia que o conhecera, boa evocação a sua e com pormenores que não conhecia e fica mais humano. Ao Ruy Ventura também parabéns pelo seu blogue.

Ruy Ventura disse...

Obrigado pelas suas palavras em relação ao Blogue!
Quanto ao prémio ao Cesariny seguido de condecoração vou na senda do Nicolau: foi ele que se deu às duas coisas.