O SIGNIFICANTE E O SIGNIFICADO
Imagine que num destes dias toma conhecimento de que um cidadão residente numa localidade vizinha da sua o(a) acusou publicamente de ter praticado actos indignos ou ilegais. Suponha ainda que o dito senhor o fez através da comunicação social. Não interessa para o caso se os factos que lhe seriam atribuídos constituiriam uma verdade ou uma mentira. Para o nosso cenário, interessa apenas que você ficaria irritado ou ofendido com a situação e desejaria decerto resolvê-la. Que meios usaria? Procuraria repor a sua verdade, provando que os factos jamais haviam ocorrido ou teriam sucedido de outro modo? Processaria o autor da eventual difamação, procurando que a Justiça o castigasse? Ou arregimentaria amigos, vizinhos e outras pessoas devidamente remuneradas com o intuito de invadirem a localidade onde habitaria o acusador? Já na terra dele, quereria matá-lo ou ameaçá-lo-ia de morte? Procuraria castigar todos os moradores da urbe, quer tivessem algo a ver com o assunto ou não? Não é preciso ser mago para adivinhar a sua resposta. Usando práticas civilizadas e boas regras de convivência, certamente optaria por uma das duas primeiras opções – e rejeitaria a última, por lhe parecer típica de outras épocas menos cordatas.
Na minha opinião, o perigoso caso da publicação dos cartoons com a figura de Maomé na imprensa europeia é muito semelhante ao cenário que acabei de traçar consigo.
Usando a inalienável liberdade de expressão que lhe é concedida pela lei, um jornal resolveu publicar imagens satíricas que visam criticar alguns membros de uma comunidade religiosa. Essa comunidade não gostou do que viu. Não tentou, tanto quanto se sabe, negar os factos caricaturados. Ao que parece, quis que os tribunais levassem o autor dos desenhos a julgamento. Como a Justiça não deu provimento à queixa (situação normal num Estado de Direito), resolveu mergulhar meio-mundo no caos, promovendo manifestações (normais, não veiculassem ameaças muito graves à vida dos cidadãos de todos os países que ousaram publicar as caricaturas, não fossem muitas delas manipuladas por interesses que nada têm a ver com a religião e muito têm a ver com desejos de hegemonia de alguns políticos que abusam do nome de Maomé e de Alá como outros, noutros tempos, abusaram do de Cristo) e actos criminosos de vandalismo, como o assalto e a destruição das sedes de algumas embaixadas e de outros organismos.
Justa ou injustamente, os muçulmanos têm o direito de estar indignados com as representações caricaturais do seu profeta; têm ainda o direito de manifestar o seu repúdio, utilizando meios admissíveis numa civilização justa e plural. Têm porém o dever de compreender o que representam as caricaturas e, caso encontrem argumentos para tal, demonstrarem que o pensamento por elas veiculado se baseia em factos e fundamentos errados.
Quem caricatura Maomé não representa, como é óbvio, o profeta. (Numa caricatura, qualquer personagem importante de uma religião não se representa a si própria; torna-se símbolo de uma confissão religiosa, seja ela cristã, muçulmana ou budista.) A sátira e a crítica do caricaturista não se dirigem, assim, contra Maomé, mas contra os membros da comunidade que simboliza.
Não vi todas as caricaturas publicadas na Dinamarca. Aquelas que me foi dado analisar são apenas uma dura crítica ao terrorismo que vem assolando múltiplos países, realidade hedionda que ninguém, muito menos os muçulmanos, consegue esconder. Representar Maomé com uma bomba a servir de turbante não constitui portanto uma crítica ao profeta, mas tão só ao que ele representa, um islamismo dito “radical” ou “fundamentalista”. A maioria dos maometanos será gente de paz. Mas, quer se goste quer não, existe um número crescente de muçulmanos que – como “mártires”, em troca de um “paraíso” em que acreditam – matam os seus semelhantes, invocando “mandamentos” do profeta expressos, dizem, no Corão. Infelizmente, ainda não vimos nas ruas milhares de islâmicos afirmando que estes seus irmãos invocam o nome de Alá em vão para justificarem actos criminosos. Enquanto isso não acontecer, todos os seus protestos contra as caricaturas soarão a falso.
4 comentários:
Sem tirar nem por e assim é que se arremelga. Faço minhas as suas palavras.
Ruy:
O teu texto reflecte exactamente o que penso sobre o assunto. Nem mais...
A diferença faz-se sentir entre a a paz e a inquisição, tenha esta a cor que tiver.
Tenho lido muito sobre este assunto. Não me identificaria melhor numa manifestação pessoal.
É mesmo isto o que penso.
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