Vozes do Brasil
MIGUEL JORGE
NO MAR NENHUM BARCO
Os amores são largos e longos e não cabem nas cartas.
A noite lenta fere de faca a luz cega do medo.
Indiferentes, as borboletas são anjos vestidos de prata.
Assim, os musgos vão cobrindo de vermelho os moluscos
dentro das caixas.
São do domingo os escargots, lentas flores, colocadas sobre
bandejas de prata.
Talvez não se possa evitar a falta de pão, reflexos da ira,
a dor que não se quer dar aos filhos.
Dormem as naves sobre as janelas do mar, talvez um barco,
igual a um barco, indo além do mar, brasa da alma. (Baco
num riso igual a um risco de língua nas bocas.)
Igual a um casaco de frio que se pendura detrás da porta.
Igual às ondas a testemunhar as rosas se desfazendo no branco
laço das águas.
(A noite carrega os diamantes no impacto do chão que se faz
cinza).
Se viam roucas as Américas, a constituição dos ventos cobrindo
lábios muito finos. Estrelas ostentam um festim ameno de
vozes. Os ratos, os gatos o nojo anunciado. O gozo desfeito
em nada, se põem de lado, ainda mais quando do céu se
toma lei e posse de secretos códigos.
EM AZUL O MAR SE IMAGINA
Já não se vê o azul do azul, o mar que se imagina.
Um tempo que fora assim de uvas, de frases e vinhos
passados na memória.
- E quem cuida das vinhas do mar? O sono se desfaz
no fim da linha, sensual linguagem que mal se pronuncia.
Cospem chuvas as chuvas, verdes migalhas sobre a paisagem.
Alguém fecha os olhos da noite, as feridas travadas dentro da
casca, inutilmente expostas.
ESSES UMBIGOS
Umbigo nenhum autoriza a mostrar-se tanto,
às vezes apenas esboçado. Umbigo de fina
redondez, bico engomado a abrir-se em asas
igual coroa de pequenas brasas.
Apenas umbigo, menos que as nádegas,
posto em oferenda. Tornar-se coroa de Eros
a se dividir em pedaços.
A máscara talhada em fios de curta
linguagem, e o que mais se corteja:
umbigos roxos, acasos secretos,
pudicas histórias em seus espaços,
é forçoso buscá-las. Os rosados se pronunciam
de fina graça, aos cuidados de cada palavra dada.
Paisagem e domínio sob o canto do ouro e prata
os incêndios de suas chamas, os umbigos delatam.
Imaculado nunca é o umbigo, nascido
assim de redondos talhes, e dá-se ao mar
e dá-se às areias, e dá-se aos punhais,
e mais a outros deuses que nunca sabemos.
MIGUEL JORGE é um escritor de língua portuguesa que precisa ser descoberto em Portugal. Nascido em Campo Grande (Mato Grosso do Sul, Brasil) e residente em Goiânia, conta na sua bibliografia com 26 (!) títulos publicados, todos com qualidade ímpar, em áreas tão distintas quanto o romance, o conto, a poesia, o teatro e a narrativa infanto-juvenil. Recebeu vários prémios, como o prestigiado “Machado de Assis”. Tem narrativas suas adaptadas ao cinema. Sobre a sua obra debruçaram-se já vários ensaístas do país-irmão, dos Estados Unidos da América, etc.. Um ensaio recente, por exemplo, compara a força e a novidade da sua ficção à que é conhecida na obra de Júlio Cortazar. Com tudo isto, é quase totalmente desconhecido em Portugal. Tanto quanto sei, tem por cá publicados dois ou três poemas numa antologia de poesia brasileira lançada pelas edições Alma Azul e organizada por Álvaro Alves de Faria – e alguns textos que Nicolau Saião e eu demos à estampa no Fanal... Até quando?
Os dois poemas que hoje ofereço aos leitores foram retirado do seu mais recente livro, Marbrasa, comemorativo dos seus 40 anos de vida literária.
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