PRÍNCIPE DA LIBERDADE
Mário Cesariny não era um santo, nem sequer um santo literário ou artístico. Era, sem dúvida, como poucos, um príncipe da liberdade - que honrou a Ordem nacional da dita com a sua adesão.
Estará no caixão a rir-se, com vontade de escarrar nas fuças de certos meninos que, fazendo parte do muro de ocultação que toda a vida tentou rasteirá-lo, vêm agora afirmar - sim-senhora... - a altitude, óbvia, da sua poesia e da sua pintura. Desejam, no fundo, esconder que a grandeza expressiva e interior de quanto escreveu e pintou é a melhor prova contra a sua mediocridade, a sua hipocrisia e a sua maldade...
Quem baterá latas no seu funeral, hoje? Quem romperá aos saltos e aos pinotes? Quem fará estalar no ar chicotes? É preciso... porque o corpo invisível glorioso deste Mário-Outro deve ir de burro, entrando nos Prazeres (estranha polissemia...) aclamado como um ungido pelas palavras e pelas tintas.
Emanação luminosa da impureza do estrume que somos, conseguiu encontrar aí - como o pinto da narrativa tradicional - o ouro que nos faz suportar este mundo, feito de tanta merda que nada fertiliza.
HOMENAGEM A CESARINY
De forma humilde, "Estrada do Alicerce" homenageará durante a semana este poeta e pintor que ontem partiu corporalmente. Iniciámos este caminho com um texto frontalíssimo de Nicolau Saião, amigo íntimo de Cesariny, que dele guarda memórias e iluminações. Continuaremos, suspendendo o andamento normal de publicações que aqui costumam surgir de segunda a quinta. É uma forma de lhe agradecermos quanto nos deu.
De forma humilde, "Estrada do Alicerce" homenageará durante a semana este poeta e pintor que ontem partiu corporalmente. Iniciámos este caminho com um texto frontalíssimo de Nicolau Saião, amigo íntimo de Cesariny, que dele guarda memórias e iluminações. Continuaremos, suspendendo o andamento normal de publicações que aqui costumam surgir de segunda a quinta. É uma forma de lhe agradecermos quanto nos deu.
Homenagem a MÁRIO CESARINY (1923-2006)
Morrer sim,
mas devagar…
No triste jet set das letras (melhor seria dizer trocaletras) da nossa praça, para além daqueles que o estimaram e o souberam ler e ver havia dois grupos de fabianos sempre de goela aberta para melhor devorarem (tentar devorar) o universo conceptual que o norteara, de que se reivindicava e onde se inventava mesmo velho e doente: o surrealismo.
Esses dois grupos, pequenos jogadores das escritas e das pinturações, eram ou são: os que lhe exaltavam a pintura para melhor lhe rebaixarem a poesia e os que lhe elevavam a escrita para mais eficazmente lhe escaqueirarem o mundo plástico. Mas – e o truque nefando consiste nisto – no fundo não era a ele que visavam, tanto mais que a manobra já não colhia por ele lhes ter escapado para outros olimpos mais específicos. O que essa gente tentava e tenta era impedir que companheiros mais novos e com outras soluções de continuidade ficassem sem voz, tão submersos como nos tempos da ditadura que ele detestava, como detestou todas as outras.
Essa gente, permitindo-lhe agora existir sem peias depois de durante os princípios da sua vida o buscarem liquidar e emudecer, queriam que ele se tornasse um refém dos que em Portugal põem e dispõem através da mentira cultural que vê a escrita e a literatura como aparelhagens para fazer “fins de meses” ou carreiras que eles mesmos controlam…
Hoje como ontem, num país onde a realidade já está mais que apodrecida, o surrealismo continua a perturbar porque não é um álibi para mercadores de carne assassinada. Por isso o acatitavam, fingindo que o amavam, visando transformá-lo numa espécie de faraó que caucionasse melhor as tentativas de extinção de um pensamento que é existência em todas as direcções e que ele sempre perfilhou.
Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas.
E, apesar dos zoilos e dos medíocres continuarem a tentar queimar o “castelo encantado”, que para eles tem a forma de literatice ou de convenção imagética - seja neste país, seja nos outros onde vivem e actuam muitos companheiros de sonho e de vigília, a busca da maravilha continua.
Nicolau Saião
YUSSEF IBRAHIM
“[...] Chegou o momento de se darem conta do efeito dessas milícias na vossa situação e de se questionarem se as organizações como o Hamas e a Fatá estão realmente a trabalhar para o vosso bem e se querem continuar a submeter-se cegamente à sua direcção.
Se são lúcidos, vão compreender que a violência e a guerra contra Israel pertencem ao passado. Se querem salvar o que pode ser salvo, não têm outra opção que não seja reconhecer a inanidade da ‘luta eterna’ que já não tem significado e que não passa de um ‘slogan’ vazio utilizado pelos fundamentalistas. O que é certo é que os vossos filhos estão a crescer na miséria e que a cultura do martírio produz a ignorância e o analfabetismo e não a esperança de um futuro melhor a que eles aspiram. [...]
[...]
Enquanto que os outros países possuem petróleo, indústria ou agricultura, temos de admitir que vocês, caros irmãos palestinianos, não têm absolutamente nada. A Palestina não poderia sobreviver sem a caridade de terceiros, incluindo dos americanos, de certos países europeus e das Nações Unidas. É Muammar Khadafi ou Bashar al-Assad que alimenta os vossos filhos? Que aconteceu ao vosso herói Saddam Hussein? Hoje, a Síria e o Irão incitam-vos a prosseguir a luta contra Israel, mas o que dizer destes dois países? [...] Chegou o momento de perceberem que ambos querem sacrificar-vos, até ao último, numa guerra por procuração. É realmente isso que pretendem?”
(no jornal Al-Ittihad, Abu Dhabi – trad. in Courrier Internacional, 17 a 23 de Novembro de 2006)
“[...] Chegou o momento de se darem conta do efeito dessas milícias na vossa situação e de se questionarem se as organizações como o Hamas e a Fatá estão realmente a trabalhar para o vosso bem e se querem continuar a submeter-se cegamente à sua direcção.
Se são lúcidos, vão compreender que a violência e a guerra contra Israel pertencem ao passado. Se querem salvar o que pode ser salvo, não têm outra opção que não seja reconhecer a inanidade da ‘luta eterna’ que já não tem significado e que não passa de um ‘slogan’ vazio utilizado pelos fundamentalistas. O que é certo é que os vossos filhos estão a crescer na miséria e que a cultura do martírio produz a ignorância e o analfabetismo e não a esperança de um futuro melhor a que eles aspiram. [...]
[...]
Enquanto que os outros países possuem petróleo, indústria ou agricultura, temos de admitir que vocês, caros irmãos palestinianos, não têm absolutamente nada. A Palestina não poderia sobreviver sem a caridade de terceiros, incluindo dos americanos, de certos países europeus e das Nações Unidas. É Muammar Khadafi ou Bashar al-Assad que alimenta os vossos filhos? Que aconteceu ao vosso herói Saddam Hussein? Hoje, a Síria e o Irão incitam-vos a prosseguir a luta contra Israel, mas o que dizer destes dois países? [...] Chegou o momento de perceberem que ambos querem sacrificar-vos, até ao último, numa guerra por procuração. É realmente isso que pretendem?”
(no jornal Al-Ittihad, Abu Dhabi – trad. in Courrier Internacional, 17 a 23 de Novembro de 2006)
FIRMINO MENDES
Alentejo
Escolhe-se uma palavra no plural – ondulações,
para poder dizer tudo o que és, com cheiro
a papoila e a montado, a coentros e orégãos,
à volta das casas brancas. A terra é de mais
– ondulada volteia, gira na distância plana.
À porta dos montes ladram alguns cães
– os mesmos que rodeiam os rebanhos
que transportam a música pelos valados.
Aos largos das vilas chegam alguns homens
– os mesmos que afagaram e bafejaram a terra
e esperam a morte como um surdo regresso.
Tão forte – tão de pão, vinho e cortiça.
Tão frágil – de aromáticas ervas na cozinha.
Tão ondulado – o pão, as migas.
Tão áspero – a cortiça, os cardos.
Tão doce – conventuais delícias.
Outro Alentejo
O céu múltiplo à noite, no monte abandonado às aves
ou esta festa de gente para o girassol que nasce:
– as casas térreas brancas alongadas, os poços redondos,
as cegonhas, as garças, a nespereira cheia, o tronco negro
dos sobreiros cheios de cortiça, as figueiras, as roseiras bravas,
a semente das papoilas no inverno.
Que flor lilás cobre o campo de Maio,
ao lado da camomila branca e do malmequer?
A luz dos olhos: – este texto branco ao lado das casas,
como o rebanho que passa em plano, cobrindo tudo e mostrando
as cores dos corpos, dos figos, das pedras, da alfarroba.
Quem poderá dizer o berço das memórias?
Tão perto parou o tempo: – parece um verso dizê-lo ou um silêncio
neste montado onde adormecem todos os animais perdidos.
A cortiça tem a sombra das figueiras, ao lado da casa, ou um caminho
de vento para a viagem. De quem a corta poucos falarão no poema
e de quem a afaga nunca se falará neste lugar entre mar e Espanha,
tão múltiplo como o céu que o protege.
(nº 14, 29/6/2001)
Alentejo
Escolhe-se uma palavra no plural – ondulações,
para poder dizer tudo o que és, com cheiro
a papoila e a montado, a coentros e orégãos,
à volta das casas brancas. A terra é de mais
– ondulada volteia, gira na distância plana.
À porta dos montes ladram alguns cães
– os mesmos que rodeiam os rebanhos
que transportam a música pelos valados.
Aos largos das vilas chegam alguns homens
– os mesmos que afagaram e bafejaram a terra
e esperam a morte como um surdo regresso.
Tão forte – tão de pão, vinho e cortiça.
Tão frágil – de aromáticas ervas na cozinha.
Tão ondulado – o pão, as migas.
Tão áspero – a cortiça, os cardos.
Tão doce – conventuais delícias.
Outro Alentejo
O céu múltiplo à noite, no monte abandonado às aves
ou esta festa de gente para o girassol que nasce:
– as casas térreas brancas alongadas, os poços redondos,
as cegonhas, as garças, a nespereira cheia, o tronco negro
dos sobreiros cheios de cortiça, as figueiras, as roseiras bravas,
a semente das papoilas no inverno.
Que flor lilás cobre o campo de Maio,
ao lado da camomila branca e do malmequer?
A luz dos olhos: – este texto branco ao lado das casas,
como o rebanho que passa em plano, cobrindo tudo e mostrando
as cores dos corpos, dos figos, das pedras, da alfarroba.
Quem poderá dizer o berço das memórias?
Tão perto parou o tempo: – parece um verso dizê-lo ou um silêncio
neste montado onde adormecem todos os animais perdidos.
A cortiça tem a sombra das figueiras, ao lado da casa, ou um caminho
de vento para a viagem. De quem a corta poucos falarão no poema
e de quem a afaga nunca se falará neste lugar entre mar e Espanha,
tão múltiplo como o céu que o protege.
(nº 14, 29/6/2001)
META-CARTA A DEUS
É comovente a "meta-carta" dirigida a Deus por José Augusto Mourão. Todos ganhamos com a sua leitura, sejamos crentes ou não-crentes.
ASSIM SE MANIPULA A VERDADE
1. Nos últimos tempos disse-se, citando a OCDE e para os denegrir, que os professores portugueses eram dos mais bem pagos da Europa. O que permitiu a notícia, glosada até à náusea, foi um gráfico que se refere apenas aos professores do secundário com 15 anos de serviço, em função do PIB por habitante, que é dos mais baixos da Europa. Na mesma página, logo por cima do gráfico utilizado, está outro, bem mais relevante, que ordena os professores em função do valor absoluto do salário. E nesse, num total de 31 países estudados, os professores portugueses ocupam a 20.ª posição! Mas, sobre isto, nada se disse!
2. Disse-se, aludindo ao mesmo estafado indicador, que somos dos que mais gastamos com a educação. Mas não se disse o que importa: que o dinheiro efectivo gasto por aluno nos atira para a 23.ª posição entre os 33 países examinados e que, mesmo em relação ao PIB, estamos, afinal, num miserável 19.º lugar.
3. Disse-se que a prioridade das prioridades era a qualificação dos portugueses, mas não se disse como se concilia isso com o corte de 4,2 por cento na educação básica e secundária e 8,2 por cento no ensino superior. Como tão-pouco se disse, do mesmo passo, que os subsídios pagos pelo Estado a alguns colégios privados cresceram exponencialmente, de 71 a 108 por cento, como se retira da matéria publicada no DR de 16 de Outubro!
4. Disse-se, ainda, alto e bom som, que os funcionários do Estado estavam mais bem pagos que os privados. Mas não se disse que um estudo encomendado pelo Ministério das Finanças a uma consultora internacional (é moda agora adjudicar a consultoras externas e pagar-lhes a peso de ouro aquilo que os técnicos dos serviços sabem fazer) concluiu, e por isso foi silenciado, que os funcionários públicos ganham, em média, muito menos do que ganhariam se fizessem o mesmo trabalho para um patrão privado. E estamos a falar de diferenças que são, diz o estudo, de 30, 50, 70 ou mais que 100 por cento, em desfavor do funcionalismo público. Isto não se disse! As cerca de 300 páginas deste estudo estão, prudentemente, silenciadas na gaveta de Teixeira dos Santos.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para a área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
1. Nos últimos tempos disse-se, citando a OCDE e para os denegrir, que os professores portugueses eram dos mais bem pagos da Europa. O que permitiu a notícia, glosada até à náusea, foi um gráfico que se refere apenas aos professores do secundário com 15 anos de serviço, em função do PIB por habitante, que é dos mais baixos da Europa. Na mesma página, logo por cima do gráfico utilizado, está outro, bem mais relevante, que ordena os professores em função do valor absoluto do salário. E nesse, num total de 31 países estudados, os professores portugueses ocupam a 20.ª posição! Mas, sobre isto, nada se disse!
2. Disse-se, aludindo ao mesmo estafado indicador, que somos dos que mais gastamos com a educação. Mas não se disse o que importa: que o dinheiro efectivo gasto por aluno nos atira para a 23.ª posição entre os 33 países examinados e que, mesmo em relação ao PIB, estamos, afinal, num miserável 19.º lugar.
3. Disse-se que a prioridade das prioridades era a qualificação dos portugueses, mas não se disse como se concilia isso com o corte de 4,2 por cento na educação básica e secundária e 8,2 por cento no ensino superior. Como tão-pouco se disse, do mesmo passo, que os subsídios pagos pelo Estado a alguns colégios privados cresceram exponencialmente, de 71 a 108 por cento, como se retira da matéria publicada no DR de 16 de Outubro!
4. Disse-se, ainda, alto e bom som, que os funcionários do Estado estavam mais bem pagos que os privados. Mas não se disse que um estudo encomendado pelo Ministério das Finanças a uma consultora internacional (é moda agora adjudicar a consultoras externas e pagar-lhes a peso de ouro aquilo que os técnicos dos serviços sabem fazer) concluiu, e por isso foi silenciado, que os funcionários públicos ganham, em média, muito menos do que ganhariam se fizessem o mesmo trabalho para um patrão privado. E estamos a falar de diferenças que são, diz o estudo, de 30, 50, 70 ou mais que 100 por cento, em desfavor do funcionalismo público. Isto não se disse! As cerca de 300 páginas deste estudo estão, prudentemente, silenciadas na gaveta de Teixeira dos Santos.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
5. Igualmente silenciados, porque não convém que se diga, estão os dados do Eurostat que mostram a inutilidade das medidas da ministra da Educação para a área: o abandono escolar precoce passou dos 38,6 por cento do ano passado para os 40 por cento deste ano, enquanto diminuiu por toda a Europa.
(In Público, 20/11/2006)
ARTE SACRA
DA DIOCESE DE BEJA
(novo livro de José António Falcão)
De absoluto a zodíaco se apresenta a arte sacra da diocese de Beja no novo livro de José António Falcão: uma obra inclassificável, absolutamente original no panorama editorial português. Aparecendo com roupagens de dicionário (A a Z, Arte Sacra da Diocese de Beja, numa edição do Departamento do Património Histórico-Artístico desse bispado do Baixo Alentejo), pode ser entendido como um glossário técnico, uma antologia poética, um livro de arte e um volume de crónicas.
José António Falcão vem encabeçando há vários anos uma iniciativa exemplar a vários títulos. Ao contrário do que acontece em várias dioceses portuguesas, em que o património artístico e arquitectónico está à mercê de voluntarismos desastrados e desastrosos que têm levado à perda de peças importantíssimas da arte nacional e internacional, em Beja o voluntariado de leigos empenhados e esclarecidos tem levado ao inventário rigoroso de peças e edifícios, à conservação e ao restauro criteriosos entregues a técnicos competentes, à divulgação do património material de uma região possuidora de religação larga e intensa. Falcão descreve a situação que encontrou quando o Departamento (criado em 1984 por D. Manuel Falcão) iniciou funções (a narração corresponde ao que acontece ainda hoje em muitas outras dioceses):
“Diversos monumentos religiosos jaziam ao abandono [...] enquanto outros eram alvo de intervenções pouco criteriosas que afectavam a integridade material e cultural tanto da arquitectura como dos bens móveis nela integrados. [...] [...] várias imagens seculares eram confiadas a ‘curiosos’ que as pseudo-restauravam com purpurinas e tintas plásticas ou partiam para reparações em oficinas de santeiros do Norte, voltando desfiguradas ou substituídas por réplicas. [...]”
Voltando ao livro, nele encontramos múltiplas entradas. Aceitação, barro, caminho, desespero, entrega, face, guia espiritual, herança, iluminação, justiça, libertação, maternidade, natureza, olhar, pão, quadrilátero, reconquista, saúde, testemunho, universo, vigilância, xeque-mate e zero são apenas alguns dos termos abordados nesta obra de arte onde, para além dos textos do autor, surgem também poemas de Kóstas Varnalis, frei Agostinho da Cruz, W. B. Yeats, Tonino Guerra, Saint-Pol-Roux, Paul Verlaine, etc..
As intervenções de José António Falcão, por seu lado, assumem com frequência um carácter literário, como neste texto comovente, intitulado “Cheio/Vazio”:
“Salvo erro, foi em 1992 que vislumbrei, pela primeira vez, a velha escultura de São Jorge, esquecida num recanto da arrumação do convento de Nossa Senhora do Carmo onde jazem centenas de fragmentos de talha dourada, à espera do dia da ressurreição. Posta em cima de uma mesa, como um traste sem préstimo, a imagem do santo que constituíra motivo de orgulho para muitas gerações de mourenses, quando saía, na procissão do Corpo de Deus, montado num cavalo garboso, acusava agora a severidade dos maus-tratos infligidos no decurso de anos e anos de abandono. As pernas, cada uma caída para o seu lado, já não respondiam às articulações, a armadura, forrada a folha de prata, desenhava uma mancha escura; e, um pouco por toda a extensão do vulto, viam-se fissuras, perdas de camada cromática, sinais de contusões. Nada impressionava mais, porém, do que o rosto, com o terrível contraste entre um olho que vê e o outro vazio. Mesmo assim, o santo guerreiro deixava aflorar nos lábios um sorriso eterno, com a satisfação de quem já encontrou a Verdade. Logo ali jurei que o traria de novo à luz e que lhe poria a órbita esmagada e que o levaria de novo a cavalgar. E aquele sorriso nunca mais me abandonou.”
Com tudo quanto vos apresento, chamar “exemplar” a este livro é ser redundante, tão óbvia a sua qualidade.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Miguel Torga (Retrato Breve)
Sobre tudo o mais
Grande amor à terra
Pomares e olivais
E a neve da serra
O som dos animais
O rio em pé de guerra
Os princípios gerais
Que a vida encerra
Sobre tudo o mais
Grande amor à terra
Sem palavras a mais
O poema não emperra
Os sonhos e os ideais
Que não estão na berra
Os princípios gerais
Que a vida encerra
(Este poema será incluído na antologia do centenário do nascimento de Miguel Torga, a publicar no próximo ano pelas edições Almedina.)
948 TEXTOS DEPOIS...
... 18 anos passados, José do Carmo Francisco foi saneado do jornal Sporting, agora dirigido por Miguel Salema Garção. Com esta saída, fecha as suas portas uma das mais antigas colunas de divulgação de livros da imprensa portuguesa. É pena! É pena que tal aconteça, no momento em que se lança um “Plano Nacional de Leitura” (que inventa uma roda já inventada há milénios), em que a crítica literária vem sendo substituída pelo chamado “jornalismo cultural”, frequentemente ignorante, bacoco e/ou traficante de influências.
Em conjunto com outros colegas, José do Carmo Francisco saiu do jornal que ajudou a tornar conhecido na cultura portuguesa. Foi despedido por “não se integrar no espírito da nova equipa”, por ser “demasiado velho” (as desculpas do costume).
É este o mundo (e o país) em que vivemos. A competência, mesmo reconhecida publicamente, vale pouco ou nada. São outros os contra-valores que nos dominam, nos desgastam e nos afundam.
GONÇALO M. TAVARES
água, cão, cavalo, cabeça lido.
Interessam-me pouco, como narrativas, as ficções caóticas que preenchem a primeira metade do livro. Demasiado enleadas, embora com trechos fulgurantes, não provocam estranheza, mas a visão de um entulho literário.
Mais cortantes me parecem os contarelos (o sufixo não é pejorativo, mas dimensional) da segunda parte: coerentes, retalham (autopsiam) o corpo individual e social de seres mutantes, em dissolução.
Até prova em contrário, de toda a poligrafia de Gonçalo M. Tavares continuo a preferir a sua heterodoxa poesia.
Todos uns privilegiados...
Dizem eles que os funcionários públicos são todos uns privilegiados! Leia-se este artigo de Eduardo Pitta.
Dizem eles que os funcionários públicos são todos uns privilegiados! Leia-se este artigo de Eduardo Pitta.
JOSÉ GIL
“Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo [...], nem cortando as ‘pausas’ – de que precisa como de pão para a boca – que se formarão docentes ‘competentes’. Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no Ministério da Educação, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação no nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabeças.”
(in Courrier Internacional, nº 83, de 3 a 9 de Novembro / 2006)
“O que impressiona, nas intervenções mediáticas dos responsáveis do Ministério da Educação, é a ausência total de uma palavra de apreço e incentivo para com os professores. Quando ela vem, parece forçada, demasiado geral, demonstrando uma incompreensão profunda pelas condições do exercício da profissão. Os últimos rumores (verdadeiros) sobre as eventuais oito horas lectivas obrigatórias, mais o corte das ‘pausas’ do Natal, Carnaval e Páscoa, provam que as autoridades encarregadas de conceberem a política educativa do nosso país não sabem – ou não querem saber – o que implica ser professor.
[...]
[...] Tem-se a nítida impressão de que não gostam dos professores – por mais que queiram distingui-los dos sindicatos. Ora, o que está em jogo no actual debate sobre a educação, é a transformação de uma situação há muito desastrosa, criando condições para um ensino de qualidade, à altura das ambições da ‘modernização’ global do País, proclamadas pelo Governo. Nesse quadro, a Educação constitui um pilar essencial do projecto governativo do primeiro-ministro: se ele falha, falhará todo o projecto. Neste momento constata-se que o clima das escolas (professores cansados, abatidos, deprimidos – dos que pertencem às ‘excepções’) não contribui para a boa aplicação dos novos estatutos que aí vêm.
[...]
[...] A actual política educativa parece padecer de toda uma série de disfunções e desfasamentos: muda-se o estatuto da carreira docente, com novas tarefas, mais trabalho, mantendo-se inalterados os conteúdos e negligenciando a formação necessária dos maus professores; instauram-se regras de avaliação, mas não se eliminam os compadrios e as conivências; exigem-se boas vontades para certas tarefas, e quebram-se as vontades não oferecendo contrapartidas; voltam-se os pais contra os professores, estes contra a instância que os tutela, o pessoal administrativo contra os professores, e já mesmo se forma alianças alunos-pais contra o Ministério...
Tudo isto é mau para o ensino e para a educação. Como se a ‘racionalização’ do ensino básico e secundário, ao preocupar-se apenas com alguns dos seus aspectos, e sem visão global, induzisse necessariamente outras formas de irracionalidade e anarquia.”
(in Visão, nº 714, 9 de Novembro / 2006)
“Para obter bons resultados, boas estatísticas, boas médias, é preciso ter bons professores. Para os ter, tem de se considerar a especificidade do seu trabalho.
Não é atafulhando o seu tempo [...], nem cortando as ‘pausas’ – de que precisa como de pão para a boca – que se formarão docentes ‘competentes’. Parece haver uma preocupação obsessiva com a quantidade (em todos os domínios) no Ministério da Educação, que o torna cego às virtudes da qualidade. Que os responsáveis pela educação no nosso país possam ter pensado em esmagar assim os professores é sinal de que qualquer coisa de incompreensivelmente absurdo se está a passar nas suas cabeças.”
(in Courrier Internacional, nº 83, de 3 a 9 de Novembro / 2006)
“O que impressiona, nas intervenções mediáticas dos responsáveis do Ministério da Educação, é a ausência total de uma palavra de apreço e incentivo para com os professores. Quando ela vem, parece forçada, demasiado geral, demonstrando uma incompreensão profunda pelas condições do exercício da profissão. Os últimos rumores (verdadeiros) sobre as eventuais oito horas lectivas obrigatórias, mais o corte das ‘pausas’ do Natal, Carnaval e Páscoa, provam que as autoridades encarregadas de conceberem a política educativa do nosso país não sabem – ou não querem saber – o que implica ser professor.
[...]
[...] Tem-se a nítida impressão de que não gostam dos professores – por mais que queiram distingui-los dos sindicatos. Ora, o que está em jogo no actual debate sobre a educação, é a transformação de uma situação há muito desastrosa, criando condições para um ensino de qualidade, à altura das ambições da ‘modernização’ global do País, proclamadas pelo Governo. Nesse quadro, a Educação constitui um pilar essencial do projecto governativo do primeiro-ministro: se ele falha, falhará todo o projecto. Neste momento constata-se que o clima das escolas (professores cansados, abatidos, deprimidos – dos que pertencem às ‘excepções’) não contribui para a boa aplicação dos novos estatutos que aí vêm.
[...]
[...] A actual política educativa parece padecer de toda uma série de disfunções e desfasamentos: muda-se o estatuto da carreira docente, com novas tarefas, mais trabalho, mantendo-se inalterados os conteúdos e negligenciando a formação necessária dos maus professores; instauram-se regras de avaliação, mas não se eliminam os compadrios e as conivências; exigem-se boas vontades para certas tarefas, e quebram-se as vontades não oferecendo contrapartidas; voltam-se os pais contra os professores, estes contra a instância que os tutela, o pessoal administrativo contra os professores, e já mesmo se forma alianças alunos-pais contra o Ministério...
Tudo isto é mau para o ensino e para a educação. Como se a ‘racionalização’ do ensino básico e secundário, ao preocupar-se apenas com alguns dos seus aspectos, e sem visão global, induzisse necessariamente outras formas de irracionalidade e anarquia.”
(in Visão, nº 714, 9 de Novembro / 2006)
WALLACE STEVENS
De todos os poemas que li até agora de Wallace Stevens, nenhum consegue superar a força do tríptico "The Rock" (que deu nome ao seu último livro). Lendo-o, percebemos com exactidão o que defendia quando afirmava que "o espírito nasce do corpo do mundo". Estamos perante um irmão ("falso", mas irmão) de Cristina Campo, em que a atenção extrema à matéria imanente do universo visa a sua multiplicação infinita através do verbo poético, porque "Deus e a imaginação são um só".
(Brevemente publicarei aqui algumas traduções minhas de poemas de Stevens.)
NOVIDADES NO TRIPLOV
A página Triplo V tem novidades, algumas delas muito saborosas. Entre elas, permito-me destacar um artigo de João Garção ("Com Raul Proença pelo estômago") e uma antologia do poeta brasileiro Soares Feitosa, acompanhada por um artigo de Nicolau Saião. Não perderão tempo com a leitura.
A página Triplo V tem novidades, algumas delas muito saborosas. Entre elas, permito-me destacar um artigo de João Garção ("Com Raul Proença pelo estômago") e uma antologia do poeta brasileiro Soares Feitosa, acompanhada por um artigo de Nicolau Saião. Não perderão tempo com a leitura.
DINIS MACHADO
II Soneto para Cesário
(escrito há 40 anos)
Se te encontrasse, agora, na paisagem
nocturna dos fantasmas da cidade,
contava-te dos nossos pobres versos
no teu rasto de sombra e claridade
Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las
Contava-te – sei lá! – desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas
De uma história de luas e de esquinas
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas
(oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário)
(nº 13, 25/05/2001)
II Soneto para Cesário
(escrito há 40 anos)
Se te encontrasse, agora, na paisagem
nocturna dos fantasmas da cidade,
contava-te dos nossos pobres versos
no teu rasto de sombra e claridade
Contava-te do frio que há em medir
a distância entre as mãos e as estrelas,
com lágrimas de pedra nos sapatos
e um cansaço impossível de escondê-las
Contava-te – sei lá! – desta rotina
de embalarmos a morte nas paredes,
de tecermos o destino nas valetas
De uma história de luas e de esquinas
com retratos e flores da madrugada
a boiarem na água das sarjetas
(oferta e celebração a José do Carmo Francisco no dia do seu 43º aniversário)
(nº 13, 25/05/2001)
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Louvor e glorificação
do senhor António
Chama-se Maria da Conceição a mais bela habitante da Beira Litoral da colheita de 1954 e teve a feliz ideia de me apresentar o senhor António. Ora o senhor António é daquelas pessoas que pode trabalhar muito mas não vai enriquecer. O seu fato de todos os dias é o fato-macaco e o lugar é a oficina de mecânica onde a sua arte pontifica. Chamar-lhe arte é pouco. No senhor António é mais do que arte; é ciência. Para ele a possibilidade de reparar uma avaria num automóvel é sempre a oportunidade de exercitar o seu sentido de poupança, de desenrascanço e de honradez. É que o olhar do senhor António é mesmo honrado e límpido. Ele quer ajudar as pessoas a resolverem o problema que é o automóvel avariado. Ele não tem o sonho de enriquecer à custa dos automóveis dos seus clientes. Por isso o senhor António mostra as peças que foi preciso substituir. Por isso o senhor António chega a perguntar se o cliente não se importa que ele compre uma nova placa de matrícula para o lugar da outra já velha de oito anos. E a placa custa só cinco euros. Por isso o senhor António perde uma manhã na inspecção da viatura do seu cliente mas no fim cobra apenas vinte euros pelo seu trabalho. E todos nós sabemos que uma manhã de trabalho para nós vale mais que vinte euros. Para o senhor António também. Percebe-se que o senhor António não enriqueceu nem vai enriquecer. Isto em termos de dinheiro. Mas a amizade, o respeito e a consideração dos seus clientes vale mais do que o dinheiro. Vale o sorriso do senhor António que sente prazer em ajudar os seus clientes que chegam à oficina preocupados e partem tranquilos. E esse sorriso não tem preço nem em euros nem em qualquer outra moeda.
OS DETERGENTES DA HISTÓRIA
GATO ESCONDIDO, RABO DE FORA
Ao reler no passado domingo o volume da História de Portugal coordenada por José Matoso correspondente ao período de dominação islâmica da Península Ibérica, deparei-me com um texto de Cláudio Torres no qual afirma que os regimes islâmicos foram sempre tolerantes em relação às outras religiões, excepto a partir da criação do Estado de Israel, em meados do século XX. Curiosamente, algumas páginas depois desta asserção, descreve as consequências nefastas das invasões almorávidas e almóadas, movimentos político-religiosos maometanos que reocuparam a península para “purificarem” a política e o islamismo locais, demasiado permissivos e tolerantes, segundo diziam. Foi nessa época que os cristãos e judeus se viram mais perseguidos (nem os muçulmanos heterodoxos foram poupados). Os seus cultos foram proibidos, sob pena de morte, e os seus templos destruídos, o que provocou nomeadamente a emigração dos cristãos moçárabes para o norte da Ibérica. Tudo isto é confirmado pelo arqueólogo de Mértola.
Poderia listar todas as atrocidades intolerantes dos regimes político-religiosos muçulmanos que dominaram ou dominam boa parte do mundo mediterrânico, mas a contradição de Cláudio Torres é evidente. De um lado, a ficção; do outro a verdade. Prova a que ponto chegam as tentativas de limpeza (voluntária ou involuntária) da história, levada a cabo pela cegueira pan-islamita.
ESQUEÇAMOS O ALCORÃO
Também no domingo passado assisti na televisão ao espaço informativo dirigido pela comunidade islâmica de Lisboa. Conhecida pelo seu bom senso e pela sua integração social, esperava aprender algo neste tempo que dediquei ao visionamento de um debate (?) sobre a presença ou a ausência da violência no livro sagrado islâmico.
Depois de tentar convencer os telespectadores da bondade total do Alcorão – que, ao contrário do que se diz, não foi escrito por Maomé, mas algumas décadas depois da sua morte pelos seus sucessores omíadas, em plena guerra expansionista, como afirmou no sobredito programa o historiador Dias Farinha –, afirmou, a dado passo, que os cidadãos não-muçulmanos interpretam mal as palavras aí escritas porque não conhecem a língua árabe. Questionado por uma jornalista presente sobre a qualidade das traduções do livro maometano, confirmou que não é grande. A surpresa (?) nasceu-me quando a interlocutora do responsável pela mesquita de Lisboa lhe sugeriu que a comunidade portuguesa trabalhasse no sentido de se editar uma tradução fiável das escrituras islâmicas. Para meu espanto (?), David Munir respondeu mais ou menos assim:
- Penso que não é necessário. Mais importante do que ler o Alcorão é conhecer os comentários que se têm escrito sobre ele...
Estamos entendidos. Com pessoas destas podemos ir a barulhos... É realmente muito perigoso ler o Alcorão. Poderemos descobrir coisas que, de facto, nos ajudarão a compreender melhor o nosso mundo. E isso é muito perigoso.
GATO ESCONDIDO, RABO DE FORA
Ao reler no passado domingo o volume da História de Portugal coordenada por José Matoso correspondente ao período de dominação islâmica da Península Ibérica, deparei-me com um texto de Cláudio Torres no qual afirma que os regimes islâmicos foram sempre tolerantes em relação às outras religiões, excepto a partir da criação do Estado de Israel, em meados do século XX. Curiosamente, algumas páginas depois desta asserção, descreve as consequências nefastas das invasões almorávidas e almóadas, movimentos político-religiosos maometanos que reocuparam a península para “purificarem” a política e o islamismo locais, demasiado permissivos e tolerantes, segundo diziam. Foi nessa época que os cristãos e judeus se viram mais perseguidos (nem os muçulmanos heterodoxos foram poupados). Os seus cultos foram proibidos, sob pena de morte, e os seus templos destruídos, o que provocou nomeadamente a emigração dos cristãos moçárabes para o norte da Ibérica. Tudo isto é confirmado pelo arqueólogo de Mértola.
Poderia listar todas as atrocidades intolerantes dos regimes político-religiosos muçulmanos que dominaram ou dominam boa parte do mundo mediterrânico, mas a contradição de Cláudio Torres é evidente. De um lado, a ficção; do outro a verdade. Prova a que ponto chegam as tentativas de limpeza (voluntária ou involuntária) da história, levada a cabo pela cegueira pan-islamita.
ESQUEÇAMOS O ALCORÃO
Também no domingo passado assisti na televisão ao espaço informativo dirigido pela comunidade islâmica de Lisboa. Conhecida pelo seu bom senso e pela sua integração social, esperava aprender algo neste tempo que dediquei ao visionamento de um debate (?) sobre a presença ou a ausência da violência no livro sagrado islâmico.
Depois de tentar convencer os telespectadores da bondade total do Alcorão – que, ao contrário do que se diz, não foi escrito por Maomé, mas algumas décadas depois da sua morte pelos seus sucessores omíadas, em plena guerra expansionista, como afirmou no sobredito programa o historiador Dias Farinha –, afirmou, a dado passo, que os cidadãos não-muçulmanos interpretam mal as palavras aí escritas porque não conhecem a língua árabe. Questionado por uma jornalista presente sobre a qualidade das traduções do livro maometano, confirmou que não é grande. A surpresa (?) nasceu-me quando a interlocutora do responsável pela mesquita de Lisboa lhe sugeriu que a comunidade portuguesa trabalhasse no sentido de se editar uma tradução fiável das escrituras islâmicas. Para meu espanto (?), David Munir respondeu mais ou menos assim:
- Penso que não é necessário. Mais importante do que ler o Alcorão é conhecer os comentários que se têm escrito sobre ele...
Estamos entendidos. Com pessoas destas podemos ir a barulhos... É realmente muito perigoso ler o Alcorão. Poderemos descobrir coisas que, de facto, nos ajudarão a compreender melhor o nosso mundo. E isso é muito perigoso.
ARTURO PÉREZ-REVERTE
Azeite, cultura e memória
Acabo de receber o primeiro azeite do ano, que me enviaram uns amigos: óleo de azeitona virgem, decantado e limpo, depois da sua colheita há um mês ou dois. Chegam-me sempre por estas alturas alguns litros engarrafados e enlatados que entesouro na despensa, e que irei gastando, a pouco e pouco, durante os próximos meses, com muita mesura e respeito. E é curioso. Sou exactamente o contrário de um gourmet. Como e bebo o que é preciso. Mas antes, com a juventude e as pressas do trabalho e de outras realidades, ainda dava menor valor às coisas da gastronomia. Tomava azeite com torradas, ou colocando-o numa salada, ou com ovos fritos, sem reparar demasiado nele. Quem, como eu, come quase de pé, sabe do que falo. O que se passou, a pouco e pouco, com o tempo e com a calma, quando olhar em volta e para trás começa a ser proveitoso, é que comecei a estar a atento a certos matizes. A valorizar coisas que antes me passavam completamente ao lado. No que ao azeite diz respeito, foi decisiva a intervenção do meu amigo e compadre Juan Eslava Galán, que é uma autoridade azeiteira – no bom sentido da palavra –. Isto não significa que me tenha tornado num perito; mas é verdade que agora, quando abro uma garrafa ou uma lata e ponho a correr um fio desse líquido aromático, dourado e transparente, sei muito bem o que tenho por diante. E encanta-me.
Não se trata apenas de azeite, nem de comida, nem de cozinha. O óleo de azeitona faz parte não somente da nossa mesa, mas da memória, da cultura e até da verdadeira pátria, se entendermos assim esse lugar antigo, generoso, chamado Mediterrâneo: essa buliçosa praça pública onde tudo nasceu, em torno de águas azuis pelas quais já viajavam, há uns dez mil anos, naves negras com um olho pintado na proa. Falo do lago interior que nos trouxe deuses, heróis, palavra, razão e democracia. Do mar de entardeceres cor de vinho e de margens salpicadas por templos e oliveiras, onde se fundiram, para iluminar a Europa e o melhor pensamento do Ocidente, as línguas grega, latina e árabe. O cadinho de onde sairá o espanhol que hoje falam quatrocentos milhões de pessoas no mundo. Falo do mar próprio, nosso, que nunca foi obstáculo, mas caminho por onde se espalharam, fundindo-se para criar o que somos, Talmude, Cristianismo e Islão. Não é por acaso que ainda hoje os povos bárbaros – filósofos, escritores e cientistas não alteram o conceito histórico, pois nunca o teriam sido sem a mãe alimentícia – continuem a fritar em banha ou margarina.
Julgo que aqueles que qualificam, sem qualquer matiz, o acto de comer como um acto cultural equiparável à visita a um museu, são uns calhaus e uns simplórios. Sobretudo se observarmos certos comensais: a sua conversa, as suas maneiras e até a sua forma de se refastelarem na cadeira. A cultura nada tem que ver com eles, engulam carne do lombo ou mastiguem uma página dos diálogos de Platão. Mas é verdade que alguns aspectos da gastronomia têm muito a ver com a cultura. Saúde e cozinha à parte, consumir azeite não é um acto banal. É, também, participar num rito e numa tradição seculares, formosos. O currículo desse belo líquido dourado é impressionante: sumo do fruto da oliveira – a seitún árabe – e do trabalho honrado e antigo do homem, já fazia parte dos dízimos que o Livro dos Números recomendava reservar para Deus. Também se utilizava na consagração dos sacerdotes e dos reis de Israel, e mais tarde ungiu os imperadores do Sacro Império e os monarcas europeus antes da sua coroação. E em sociedades com origem cristã, como a nossa, o azeite esteve presente durante séculos tanto na unção do nascimento como na extrema-unção da morte. A costa mediterrânea está pejada de ânforas oleárias de inumeráveis naufrágios, e nos velhos textos abundam alusões: o Deuteronómio chama à Palestina terra de azeite e mel, Homero menciona o azeite na Ilíada e na Odisseia, Aristóteles aponta o seu preço em Atenas, e Marcial, que era romano e hispano – essa Hispânia que alguns imbecis negam que alguma vez tenha existido –, põe nas nuvens o azeite da Bética. Assim, por uma vez, permitam-me um conselho: se querem desfrutar melhor do azeite em cada dia, pensem um instante, quando o utilizem, em tudo o que significa e em tudo quanto é. Vertam-no então com muito cuidado e com muito respeito, procurando não derramar uma gota. Seria malbaratar a nossa própria história.
(in No me cogéreis vivo, 2005; tradução de RV)
Azeite, cultura e memória
Acabo de receber o primeiro azeite do ano, que me enviaram uns amigos: óleo de azeitona virgem, decantado e limpo, depois da sua colheita há um mês ou dois. Chegam-me sempre por estas alturas alguns litros engarrafados e enlatados que entesouro na despensa, e que irei gastando, a pouco e pouco, durante os próximos meses, com muita mesura e respeito. E é curioso. Sou exactamente o contrário de um gourmet. Como e bebo o que é preciso. Mas antes, com a juventude e as pressas do trabalho e de outras realidades, ainda dava menor valor às coisas da gastronomia. Tomava azeite com torradas, ou colocando-o numa salada, ou com ovos fritos, sem reparar demasiado nele. Quem, como eu, come quase de pé, sabe do que falo. O que se passou, a pouco e pouco, com o tempo e com a calma, quando olhar em volta e para trás começa a ser proveitoso, é que comecei a estar a atento a certos matizes. A valorizar coisas que antes me passavam completamente ao lado. No que ao azeite diz respeito, foi decisiva a intervenção do meu amigo e compadre Juan Eslava Galán, que é uma autoridade azeiteira – no bom sentido da palavra –. Isto não significa que me tenha tornado num perito; mas é verdade que agora, quando abro uma garrafa ou uma lata e ponho a correr um fio desse líquido aromático, dourado e transparente, sei muito bem o que tenho por diante. E encanta-me.
Não se trata apenas de azeite, nem de comida, nem de cozinha. O óleo de azeitona faz parte não somente da nossa mesa, mas da memória, da cultura e até da verdadeira pátria, se entendermos assim esse lugar antigo, generoso, chamado Mediterrâneo: essa buliçosa praça pública onde tudo nasceu, em torno de águas azuis pelas quais já viajavam, há uns dez mil anos, naves negras com um olho pintado na proa. Falo do lago interior que nos trouxe deuses, heróis, palavra, razão e democracia. Do mar de entardeceres cor de vinho e de margens salpicadas por templos e oliveiras, onde se fundiram, para iluminar a Europa e o melhor pensamento do Ocidente, as línguas grega, latina e árabe. O cadinho de onde sairá o espanhol que hoje falam quatrocentos milhões de pessoas no mundo. Falo do mar próprio, nosso, que nunca foi obstáculo, mas caminho por onde se espalharam, fundindo-se para criar o que somos, Talmude, Cristianismo e Islão. Não é por acaso que ainda hoje os povos bárbaros – filósofos, escritores e cientistas não alteram o conceito histórico, pois nunca o teriam sido sem a mãe alimentícia – continuem a fritar em banha ou margarina.
Julgo que aqueles que qualificam, sem qualquer matiz, o acto de comer como um acto cultural equiparável à visita a um museu, são uns calhaus e uns simplórios. Sobretudo se observarmos certos comensais: a sua conversa, as suas maneiras e até a sua forma de se refastelarem na cadeira. A cultura nada tem que ver com eles, engulam carne do lombo ou mastiguem uma página dos diálogos de Platão. Mas é verdade que alguns aspectos da gastronomia têm muito a ver com a cultura. Saúde e cozinha à parte, consumir azeite não é um acto banal. É, também, participar num rito e numa tradição seculares, formosos. O currículo desse belo líquido dourado é impressionante: sumo do fruto da oliveira – a seitún árabe – e do trabalho honrado e antigo do homem, já fazia parte dos dízimos que o Livro dos Números recomendava reservar para Deus. Também se utilizava na consagração dos sacerdotes e dos reis de Israel, e mais tarde ungiu os imperadores do Sacro Império e os monarcas europeus antes da sua coroação. E em sociedades com origem cristã, como a nossa, o azeite esteve presente durante séculos tanto na unção do nascimento como na extrema-unção da morte. A costa mediterrânea está pejada de ânforas oleárias de inumeráveis naufrágios, e nos velhos textos abundam alusões: o Deuteronómio chama à Palestina terra de azeite e mel, Homero menciona o azeite na Ilíada e na Odisseia, Aristóteles aponta o seu preço em Atenas, e Marcial, que era romano e hispano – essa Hispânia que alguns imbecis negam que alguma vez tenha existido –, põe nas nuvens o azeite da Bética. Assim, por uma vez, permitam-me um conselho: se querem desfrutar melhor do azeite em cada dia, pensem um instante, quando o utilizem, em tudo o que significa e em tudo quanto é. Vertam-no então com muito cuidado e com muito respeito, procurando não derramar uma gota. Seria malbaratar a nossa própria história.
(in No me cogéreis vivo, 2005; tradução de RV)
ARTURO
PÉREZ-REVERTE
"[...] A la hora de reivindicar a los grandes maestros puede ocurrir algo peor que el semiolvido: su apropiación coyuntural, fraudulenta, por parte de los golfos apandadores de la cultura. Y a menudo me pregunto si no sería mejor dejar a Fulano o a Mengano en su estante polvoriento, como tesoro a conquistar por iniciados y corsarios autodidactas de la letra impresa, que verlos mancillados, desvirtuados, envilecidos, demagógicamente traídos y llevados por oportunistas del caprichos, el interés ou la moda.
[...]
[...] Y lo gracioso es que de pronto, en un artículo, en un programa, uno los lee o los oye, atónito, elogiar como si conocieran, leyeran y admiraran de toda la vida a viejos autores a quienes en otro tiempo no solo ignoraban, sino que denostaban públicamente. Por supuesto, siempre coincide con un centenario, una biografía, un homenaje en el extranjero. Entonces se lo apropian sin más, se ponen al día con una rapidez pasmosa, y de la noche a la mañana se manifiestan extrañadísimos de que nadie lea ahora a Fulano, a Mengano, a Zutano y a otros grandes nombres de la literatura universal; a quienes ellos no sólo no leyeron en su puta vida, sino que encima ayudaron a enterrarlos, sosteniendo que lo que de verdad había que leer [...] era Onán y yo somos así, señora (Anagrama), de Chindasvinto Petisuik, imprescindible minimalista sildavo."
(in No me cogeréis vivo, 2005)
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