escuridão
[Carreiras]
a mão desapareceu sob a madeira?
a luz escondeu os dedos – ligando
o norte e o sul, o sul e o sudeste?
a dor, debaixo de algumas palavras, dividiu
e recompôs o reflexo do vidro sobre os olhos.
a pedra renasce depois do negrume.
o ouro envolve três quartos desse rosto:
a legenda.
“dissolvi esta parte do meu corpo
para melhor dirigir o olhar
aos alicerces da montanha. poderia subir
deixar entre os rochedos a chama
que iluminaria as asas e o farol.
dissolvi, porém, o clamor, a cinza
e o testemunho. pedaços de metal ficaram
como linhas na água e no trevo, junto da parede.”
“que ficou dos alicerces
na tiara que ostentas sobre as veias?
que estilete registou sobre o ouro, entre a seda e o damasco,
a palavra – o rosto em que o gelo descreve o canto
negro, ecoando entre os castanheiros e os filamentos
de nojo na sarça e no navio onde tentámos rever-nos?”
“a luz atravessa a muralha entre excrementos
e pastas de sangue. a flama dirige a sua língua
até muito perto de nós. o cabelo arde. o som
parece idêntico, mas guarda no interior a união
entre o rosto e a seara. mudamos de edifício,
o lintel segura-nos no tremor. as telhas estalam
durante a noite. a mão escreve sobre a cal
a voz do imperador. transporta para dentro
peso da madeira – tantos séculos sepultada a nascente.”
olho a imagem. as interrogações surgem nesta agenda.
não consigo encontrar uma única hora
em que não estejam presentes o sangue e o fogo.
a mão desaparece. desaparece apesar do segredo.
a veste alcança o universo. a paixão
revolve a legenda que procuramos colocar
junto do mapa para conseguirmos encontrar o destino.
o friso estoura. quebra cada um dos selos
desta vinha e deste campo. um outro mar
a cidade que vemos. a dança e a morte
nos degraus do altar.
“nenhuma celebração nos redime. a tinta esconde
apenas um pigmento mais antigo. que nome possuo?
grande, talvez, a linguagem dos pássaros e das pedras,
do tronco desta árvore, da lombada deste livro
em que escrevo sem cessar. tudo dissolvo com o tempo:
a minha mão abençoando o vazio, a tua mão
acariciando essa criança
crescida demais para a idade, a mão do pastor
a semear insectos nas águas e no futuro, a mão
do mártir atada à distância, os estigmas do fogo
nessa mão que segura a morte e a vida.
tudo dissolvo.
só assim sei reunir as cartas que escrevi:
respigo primeiro, procuro depois a essência –
uma sombra, o milagre do reencontro,
a resistência e o desejo, a assinatura e o alimento.
a autópsia revela algumas palavras no estômago.
algumas palavras. o coração aberto sobre a cama.
a língua recolhendo na carne e na pintura
o escopro e o cinzel para fabricar
o sopro e a memória.”
2 comentários:
belíssimo poema, ruy. tens de fazer poemas piores, para contentares a crítica. coisas delicodoces, como o júdice, outros no género. assim não vais longe, não te perdoam o talento. eles é que sabem, eles é que têm os livros.
Boa brincadeira de palavras
:))
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