incêndio
[Lisboa, igreja de S. Domingos]



nenhum brilho poderia restaurar o esplendor do canto.
só uma flama nocturna seria capaz de devolver ao tempo
toda a fuligem que fora depositando sobre as paredes
(da alma?). mesmo depois, o cheiro (dos ossos, da carne,
da pele, dos cabelos) permanecera sobre a cidade.
a cinza ficara, talvez, na argamassa das casas.
não havia forno que queimasse
o sangue caído sobre as colunas, as manchas
de sal no pavimento, os gritos misturados com a terra
e com a tijoleira das abóbadas.


*


o incêndio purificou a pedra e a memória.

sem tecto, a casa soube então receber
a água do baptismo, libertando o mármore e a madeira
do hábito perpétuo e da falsa cruz
que destruíra as veias por onde circulavam
o ouro e o coração.

era preciso um incêndio
para apagar o fogo no terreiro.


*


corroídas, as colunas sustentam
a fragilidade da matéria. enegrecidas
recordam a oscilação das células
e a loucura.

resta-nos a pureza da imagem –
livre da tinta e do cinzel. sustenta
com o braço os pilares do edifício.

nada nos pertence. repugna-nos
a soturnidade da estrutura.
mas tudo em redor reflecte
a nossa face – reconstruída
incêndio após incêndio
cicatrizadas as feridas da memória.

1 comentário:

Anónimo disse...

'' Se tanta tristeza, pesar e desgosto,
Senti pelo rosto
Correr-me o suor.
Se neste universo só reina tortura
Devo ir à procura
De um mundo melhor ''
Desilusão / Patativa do Assaré.
envio esse poema em consonância com sua bela prosa-poética.
abraxas gnósticos
afonso alves