João Garção

Educação e ensino - PROTEGER, CAPACITANDO

(Texto da conferência efectuada na FNAC da R. de Sta. Catarina, no âmbito da semana do Instituto Politécnico do Porto)




Há alguns anos, uma Universidade apresentou um cartaz promocional no qual se salientava que os peixes maiores comem os mais pequenos e que os primeiros, mais agressivos, estão em situação de vantagem perante os segundos na luta pela sobrevivência. A analogia com a vida social é evidente: extremando-se as posições, há que comer e evitar ser comido e há que matar para não morrer. Capacidades que, pelos vistos, essa instituição ajudaria a adquirir...
Pessoalmente, tenho sérias dúvidas sobre a correcção ética desta forma de procurar captar potenciais alunos, uma vez que a Escola - qualquer escola - deverá formar pessoas sensatas e creio não haver sensatez em apelos dirigidos às mais primitivas e menos nobres pulsões do ser humano, como não a haverá na aceitação fácil do ‘darwinismo social’ como fundamento da organização das sociedades.
Seja como for - e já fora deste quadro de valores - não estranharia se me dissessem que essa campanha promocional tinha sido, afinal, um sucesso, chegando a um número muito significativo de candidatos. Na verdade, em sociedades em acelerada transformação, como são aquelas da nossa contemporaneidade, a rápida redefinição/reinvenção dos quadros sociais no qual o indivíduo se move suscita-lhe vários temores e angústias, os quais parecem ser mais facilmente apaziguados e mesmo ultrapassados se houver a aquisição de um estatuto social que sobreleve o dos seus concidadãos. Ora, para muitos portugueses, as instituições de ensino superior continuam a ser encaradas como apetecíveis mecanismos que, num mundo crescentemente complexo e competitivo, conferem essa tão almejada posição. Contudo, como sabemos, a realidade não é assim tão linear.
As apreciações que acabei de fazer não impedem, é claro, que constate o óbvio: a existência (hoje como sempre, afinal) de um clima de profunda competição entre os indivíduos e entre as nações - agora talvez mais exacerbado por via das enormes mudanças, nos mais diversos domínios, que resultam das constantes inovações dos dispositivos tecnológicos de que os seres humanos vão dispondo. Esta nossa ‘Aldeia Global’ de que nos falou Marshall McLuhan parece estar cada vez mais globalizada, mais pequena e mais povoada e é neste contexto, frequentemente percepcionado como turbulento, que os Estados e os indivíduos vão procurando responder aos desafios que se lhes vão colocando.
O nosso país não é, obviamente, uma excepção. No esforço de modernização que tem empreendido ao longo das últimas décadas, Portugal tem sido apresentado de forma algo ambivalente – ora visto como ‘bom aluno’, ora encarado como exemplo a evitar. Independentemente deste facto – que, ao fim e ao cabo, reflectirá a existência de diversas boas práticas a correr em paralelo a outras profundamente reprováveis – a Educação tem estado sempre no centro dos diversos discursos relacionados com as correctas metodologias de promoção do desenvolvimento do país - mesmo que nem sempre a prática confirme essas disposições.
A recente implementação de uma nova oferta formativa profissionalizante, os denominados Cursos de Especialização Tecnológica, insere-se nesse esforço de modernização. O Decreto-Lei n.º 88/2006, de 23 de Maio, que reorganiza o funcionamento dos CET, é claro em relação a este aspecto, indicando que essa reorganização tem como objectivo último ‘fomentar a competitividade do país’, sendo para tal indispensável qualificar o seu capital humano, sobretudo o mais jovem, almejando-se que estes ‘não entrem para o mercado de trabalho sem uma prévia qualificação profissional orientada para os perfis profissionais em défice’. Tratando-se de Cursos pós-secundários não superiores, visando a aquisição do Nível 4 de formação profissional, possibilitam, no entanto, o prosseguimento de estudos a nível do ensino superior, sobretudo mediante a prévia definição de cursos existentes em estabelecimentos de ensino superior aos quais o detentor de um Diploma de Especialização Tecnológica se pode candidatar, bem como das unidades curriculares dos respectivos planos de estudos de cuja frequência se encontram dispensados.
Não deixa de ser interessante constatarmos que no Preâmbulo do diploma legal a que atrás aludo expressamente se indica, por duas vezes nos três primeiros parágrafos, que um dos objectivos do Governo é o incremento da competitividade do país, mas com coesão social.
Permito-me sublinhar este aspecto porque ele me parece ser bem sintomático de um dilema com que os actuais governantes dos diferentes países estão a ser confrontados e a que o sociólogo Jacques Donzelot tem dedicado particular atenção: o facto de a competitividade e a coesão social já não andarem necessariamente de mãos dadas. Com efeito, a chamada ‘Crise do Estado Providência’, que, independentemente da componente ideológica adversa com que alguns se têm armado para contra ele arremeterem, me parece ser, sobretudo, o resultado de uma constatação óbvia – a de os recursos disponíveis serem finitos, ao passo que as solicitações são potencialmente ilimitadas - essa crise, dizia, tem obrigado os Estados a redefinirem algumas das suas formas de actuação. A própria OCDE tem entendido como indispensável que essa reforma se processe e que os Estados, mais do que efectuarem despesas sociais, façam investimentos sociais. A mudança não é superficial, apesar de, à primeira vista e com uma apreciação simplificada, poder parecer pouco profunda. Não nos deixemos enganar, pois essas alterações semânticas traduzem, afinal, uma maneira muito diferente de entender o papel do Estado no seu relacionamento com os cidadãos que o integram. Mais do que protegê-los, entende-se actualmente que o Estado os deve capacitar, dotando-os de meios que lhes permitam adquirir uma melhor formação, visando uma igualmente melhor integração no mercado de trabalho e, por essa via, na própria sociedade. Daí que o investimento no chamado capital humano seja considerado indispensável atendendo a duas vertentes, afinal complementares: a que se refere ao actual quadro de redefinição do papel do próprio Estado relativamente aos indivíduos; e a que tem a ver com o actual panorama de exacerbada competição à escala mundial.
Para que essa integração se processe de forma tendencialmente perdurável (e para além desse trabalho formativo visando ‘armar’ os indivíduos de maneira conveniente), entende-se que é indispensável, em paralelo, inseri-los no esforço colectivo de construção da sociedade, fazê-los sentir que devem integrar esse trabalho sinérgico ao invés de apenas se limitarem a esperar dela protecção na sua existência, por vezes isolada.
Por outras palavras, considera-se que, se o nosso país não terá possibilidades de se excluir desta competição global e que, em consequência, para melhor a enfrentarmos, aos portugueses devem ser facultadas possibilidades de obterem sólidas capacidades operativas, tal não deve ser efectuado sem se ter igualmente em consideração que a esse empreendimento deve corresponder também um acréscimo de coesão social, mediante a partilha de valores e a participação dos indivíduos num desígnio comum.
Ora, este incremento da competitividade do país com coesão social parece-me cada vez mais difícil de alcançar atendendo ao facto de não se estar a conseguir esbater o fosso entre ricos e pobres – pelo contrário, parece tender a aumentar. Com dois milhões de pobres – os tais 20% que teimosamente persistem, como refere Alfredo Bruto da Costa – Portugal tem um número avassalador de indivíduos que se encontram em diversos estádios de privação. Como esperar, pois, que estas pessoas, que se encontram impossibilitadas de satisfazerem algumas das mais elementares necessidades básicas e que estão muito diminuídas no domínio das relações sociais, consigam – e queiram – sentir-se como parte de um todo que parece negligenciá-las? O escritor espanhol Benito Peres Galdós, referindo-se, há várias décadas, ao agricultor castelhano, afirmou que este era ‘um santo condenado e um guerreiro sem glória’. Infelizmente, a meu ver, essa referência poderia ser feita, igualmente, em relação a muitos dos nossos concidadãos.
Estamos claramente perante um problema com significativos contornos políticos, na medida em que a participação cívica destas pessoas é extraordinariamente reduzida ou mesmo nula, com consequências óbvias (e graves!) para a saúde da nossa Democracia. E se a Política, tal como a definiu Daniel Innerarity, é ‘a capacidade de transformar o disjuntivo em aditivo’, importa dizer que, neste domínio do incremento da coesão social, os ditos poderes públicos têm, pois, falhado de forma muito expressiva. E, a meu ver, não nos deveremos deixar embalar pela utilização do pensamento politicamente correcto, frequentemente execrável em diversos domínios, e com argumentações de que ‘todos somos responsáveis por esta situação’ e que ‘todos temos que fazer algo para que ela se altere’, pois tal apenas servirá para que se esfumem responsabilidades já que, na verdade, nem todos os portugueses tem idêntico grau de poder na definição do rosto da nossa sociedade e, dessa forma, na concretização das mudanças que se afiguram necessárias para que esta progrida de maneira consolidada e harmoniosa.
Serão os CET, então, um mecanismo verdadeiramente válido para que o nosso país veja aumentada a sua capacidade competitiva e, paralelamente, se atenuem internamente as desarmonias sociais?
A meu ver, só por si, não, é claro. Mas parecem-me possuir algumas virtualidades significativas, que considero poderem ser tanto mais eficazes quanto melhor se integrem num sistema mais amplo de reestruturação da Formação e da Educação no nosso país.
Desde logo, porque se afirmam como modelos alternativos de aprendizagem que poderão, por um lado, contribuir para minorar as elevadíssimas taxas de abandono escolar e, por outro, por responder às necessidades específicas sentidas pelo tecido sócio-económico no tocante a quadros intermédios convenientemente qualificados – venho de um concelho onde esta questão é frequentemente focada pelos empregadores. Este último aspecto das especificidades locais afigura-se-me bastante importante. Entendo que há que não ceder a tendências centralistas que as negligenciem e que, a pretexto de serem abrangentes e globais, possam acabar por tenderem a uniformizar ideias, indivíduos e comportamentos, com nefastas consequências. Como dizia José Régio, ‘há mais mundos’ e a riqueza do ser humano reside precisamente na sua singularidade, que não tem que ser negada para se afirmarem outras identidades mais amplas. E essa singularidade dos indivíduos, bem como as especificidades locais onde ele actua e se desenvolve, deverá necessariamente ser considerada pelo sistema educativo. Daqui decorre, pois, que, em minha opinião, deverão multiplicar-se as tipologias da oferta formativa, assentes também em contextos de especificidade territorial, para que as oportunidades educativas também se multipliquem e para que, em última instância, o sistema educativo possa acolher, bem melhor do que agora o faz, cada vez mais franjas da população que acabaram por ficar à sua margem – embora formalmente até o possam ter frequentado.
Outro aspecto que me parece muito interessante nos CET é a possibilidade de formação em alternância, ou seja, o processo que permite que se alternem ‘sequências de formação ministradas por instituições de formação com sequências de formação prática realizadas em contexto de trabalho’, por poder constituir uma relevante experiência de vida activa. Este aspecto da formação no terreno é, a meu ver, muito importante.
Se atendermos ao Despacho com que a ESTGF regulamenta, em 20 de Setembro, os três CET que está autorizada a ministrar, verificaremos que estes também compreendem, na formação geral e científica, áreas de cidadania e sociedade e de línguas e comunicação, o que considero de particular relevância. Por um lado, porque essa formação não se demitirá de afixar a referência a estruturas ideativas e comportamentais que se poderão traduzir numa melhor compreensão do próprio processo de cidadania; por outro, porque a instituição atenderá ao desenvolvimento de competências que o mundo profissional cada vez mais exige, como são, por exemplo, as referentes a capacidades de comunicação e de relacionamento.
Finalmente, importa que estes cursos incorporem – como, afinal, todo o sistema de ensino deverá incorporar – uma cultura de exigência, quebrando aquilo que, há meses, Josep Varela i Serra definiu no El Pais como a dinâmica perniciosa da dupla comodidade – a que existe primeiro em casa e depois na Escola. E tal pode ser feito sem que isso se traduza, necessariamente, em os peixes se comerem uns aos outros…
Numa das suas Greguerias, Ramón Gomes de la Serna afirmou que ‘não há relógio nas horas felizes’. É um facto, mas, em situações como esta, impõe-se que não se exija demais da benevolência dos nossos ouvintes, pelo que prefiro seguir agora o conselho que Churchill dava para se conseguir um bom discurso – levar sempre o fim preparado, pelo menos, e introduzi-lo tão cedo quanto possível. Assim sendo, termino agradecendo o gentil convite que a ESTGF me endereçou, ao qual correspondi menos por obrigação de função do que por amizade e por imperativo de cidadania, agradecendo a atenção de todos os presentes e, eventualmente, a paciência.

1 comentário:

José Carrancudo disse...

O maior problema do nosso Ensino - é a incapacidade da Escola de produzir, em número suficiente, alunos competentes que possam ingressar nos cursos superiores.

A Escola, na sua vez, fica incapacitada de funcionar devidamente, estando constrangida pelas incoerências pedagógicas impostas há 30 anos. Devemos começar é pela primária!