DOIS POEMAS
PARA A NOITE DE NATAL
nascimento
[presépio]
Sopra-nos do barro. Ilumina o cabelo, a voz da montanha.
(Sobre a mesa, a cinza deste corpo.)
A cidade cresce, sem casas. A respiração queima, lentamente, os olhos, as unhas, a mão. O sangue. A chama permanece, tão pequena. O calor repousa sobre o musgo. Uma lágrima irrompe pela manhã. A gilbardeira coloca, sobre o peito, um pouco de alegria.
Nos olhos e no cabelo (nesta mão), as imagens reverdecem. O fogo tece-nos, mesmo à distância. O vento apaga (acende?) essa chama nascida no interior da montanha.
A criança sopra – o barro que somos. A palavra aquece-nos. A flama aquece o coração e o mundo.
(Sobre a mesa, a cinza desse corpo.)
O corpo navega, flutua. Desenha na terra essa criança - nascida sobre as águas.
memória
[José, o carpinteiro]
Dissolvo o sangue e a memória nesta criança que acolho sobre os braços.
[Uma árvore floresce em pleno inverno, perto da luz que nos aquece as veias.]
Dissipei a dúvida e cansaço neste sorriso que domina a minha voz. A madeira floresce neste ouro feito de lágrimas, de sombra, de agonia. Recordo agora, aqui, a longa fuga pelo deserto, pelo sal, pela palavra. Fugindo de mim mesmo, encontrei neste menino a esperança, o sol, a alma.
Que sobra hoje do encantamento, do calor e da luz na manjedoura? O rosto de uma mãe tão perturbado p’lo nascimento desta alegria? O sangue cobrindo este corpo? Os anjos cantando, como água, no meio da secura e da saudade?
Pouco sei desse tempo recolhido no menino que guardo sobre os braços. Transporto no silêncio do meu rosto outro silêncio sem tempo nem lugar: o calor desta criança semi-nua num mapa onde cabem terra e mar.
****
Com estes dois pequenos poemas em prosa, desejo a todos os leitores um Natal cheio de alegrias espirituais e com muita saúde.
(Na imagem, escultura em barro de Maria Helena Lourenço (2004), em colecção particular.)
Teatro de Espelhos
(texto de Rui Lage)
Sócrates dizia: "conhece-te a ti mesmo". Pessoa inverteu a máxima e disse, na sua poesia (e nesse livro maior da literatura de todos os tempos e lugares, o Livro do Desassossego): desconhece-te a ti mesmo. A ironia, ou o paradoxo, desta inversão, é que também a formulação pessoana aspira a uma espécie de "maiêutica" que consiste em revelar a existência humana em todo o seu esplendoroso vazio − e beleza. Pessoa percebeu que cada indivíduo é também uma abstracção de si mesmo, um "Eu" disperso e fragmentado. É verdade que foi Rimbaud o primeiro a descobrir que "Je est un autre", mas só Pessoa conseguiria dialogar com esse "autre", elegê-lo como interlocutor legítimo. A sua obra é um espelho (aliás, um teatro de espelhos) onde cada indivíduo, olhando-se, não poderá deixar de se reconhecer − de reconhecer que é uma mentira (ou fingimento de si) e, em novo passe de mágica, que nessa mentira reside toda a sua verdade. A consciência de si, nele, levou à perda da consciência, permitiu-lhe olhar-se como se fosse estranho a si mesmo e concluir que, afinal, não havia nada a não ser o vazio. Foi, por isso, de todos os poetas ocidentais, o mais universal e o mais humano. Por outro lado, é sempre com pudor que se fala de Pessoa, e a poesia portuguesa, a partir dos anos 70, começou a desenvolver uma relação complexada com a sua obra "monstruosa". Muitos começaram, entretanto, a afiar as espadas. Aqui e ali, ainda a medo, já se vão desferindo uns golpes na herança pessoana, tentando menorizar ou relativizar a sua obra. É grande a tentação, para um crítico, ensaísta ou académico, de aparecer como aquele que colocou Pessoa no seu "devido lugar"... O fantasma de Pessoa, porém, é daqueles que resiste a todos os exorcismos. Quanto mais o procuram desvalorizar, mais o enriquecem, ele que, ainda por cima, previra tudo isso. Falar pois da influência de Pessoa na cultura portuguesa contemporânea é uma redundância, pois tudo o que foi escrito ou pensado depois dele denuncia, de alguma forma, a sua marca. A sua visão do mundo, articulada na sua poesia, é definidora da nossa identidade (não da pátria, pois que a sua única obra menor é, precisamente, a Mensagem). O que é o "medo de existir" desse inesperado "best-seller" de José Gil senão uma versão extensa do "Ó Portugal, hoje és nevoeiro"? Fernando Pessoa, o maior poeta e filósofo português de sempre, levou a cabo, sozinho, uma revolução de lucidez: conheceu-se desconhecendo-se.
(Publicado originalmente no JL nº 918)
O bisneto de Frankenstein
Aquele senhor de olhar alucinado, de conspícuas barbaças na face, o cómico-trágico que as “eleições” iranianas deixaram presidente da “pobre Pérsia” como dizia Nostradamus, alegrou novamente os cretinos com outra cházada (passe o termo) perfeitamente à altura doutras tiradas anteriores suas.
Desta vez quer que os judeus se mudem para o Alaska ou, caso sofram, acho eu, de reumatismo e constipação, pelo menos para a Europa – lugar onde aliás, segundo o mesmo fulano, nunca ninguém lhes fez mal. De caminho informou os mais distraídos que sim senhor, visa arranjar um punhado de bombas nucleares (o que não será decerto para ir aos pardais).
Para minha tranquilidade psicológica, urge dizer que na blogsfera os comentadores mais sensatos e capazes, de Eduardo Pitta (“da literatura”) a José Cartaxo (“Viagens em terra alheia”) souberam articular o tom apropriado para efectivarem textos adequados à situação.
Há que, a exemplo de Michel Houllebecq, não ceder a chantagens de asseclas ou familiares do “politicamente correcto” e dizer com galhardia: “Quem anda a provocar um choque de civilizações, ou pelo menos a pôr-se a jeito para uma bela trepa, são os ulemas e seus discípulos, escorados por fora em jeito de ‘criados do médico louco’ pelo rebanho de ‘revolucionários profissionais’ que esperam que eles os vinguem do tombo que deram a Leste”.
Já se percebeu que os apaniguados dos mullahs mais tarde ou mais cedo vão ter de levar com a bombita nas narinas. Fingir que isto é ficção-científica é levar de facto a cegueira demasiado longe.
Mas esta rapaziada simultaneamente sinistra e inquietante ainda não percebeu que com gente daquele perfil não se pode jogar a feijões? Hein?
Nicolau Saião
(c/ ilustração de Manuel Huerta, Chile)
Vozes do Brasil
FLORIANO MARTINS
Por trás da memória
Resplenda um mito, seu nome vago.
Manchas do ser, fuligem, contemplação.
Reino fugaz de formas, fulgor mutante.
A sombra concentrada na memória
define a cartografia do abismo, queda
abismada pelo equívoco da matéria.
Arquivo de sombras, zelos e fraudes,
a imagem duplica-lhe a horda de vultos,
errância fantasmagórica de conceitos.
Não importa Klee ou Bacon, anotações
sutis do assombro. Da própria cauda
cuida a memória, Uroboros regurgitada
a cada confronto com a matéria do ser.
(Ilustração de Hélio Rôla)
POETAS NOVOS DE PORTUGAL
PEDRO GIL-PEDRO
Pendem
nas leiras – um arado que cega
à cabeça.
no fulcro
da ira
fecundam os crivos da manhã.
e:
ganchos de pureza –
as mulheres
levantam-se como um dedo aberto
nas traves do silêncio.
*****
uma corola de obscuridade
o semeador entrelaça as mãos e o corpo
nos instrumentos da ira e propõe-se
enfim
a lascar o silêncio
por fora
e por dentro
até à fulguração da pedra.
*****
o semeador levantou alto a mão
e respirou a pedra como se a semeasse
as mulheres olhavam-no em sobressalto
como animais de silêncio nos prumos do estio.
e só então
o ciclo da chuva nos teares.
Pedro Gil-Pedro (Sesimbra, 1973) é o pseudónimo de José Pedro Francisco. Trabalha em Lisboa e publicou Animais Cheios de Movimento no Inverno (Quasi, 2000), de onde se retiraram os três poemas que aqui divulgamos.
PEDRO GIL-PEDRO
Pendem
nas leiras – um arado que cega
à cabeça.
no fulcro
da ira
fecundam os crivos da manhã.
e:
ganchos de pureza –
as mulheres
levantam-se como um dedo aberto
nas traves do silêncio.
*****
uma corola de obscuridade
o semeador entrelaça as mãos e o corpo
nos instrumentos da ira e propõe-se
enfim
a lascar o silêncio
por fora
e por dentro
até à fulguração da pedra.
*****
o semeador levantou alto a mão
e respirou a pedra como se a semeasse
as mulheres olhavam-no em sobressalto
como animais de silêncio nos prumos do estio.
e só então
o ciclo da chuva nos teares.
Pedro Gil-Pedro (Sesimbra, 1973) é o pseudónimo de José Pedro Francisco. Trabalha em Lisboa e publicou Animais Cheios de Movimento no Inverno (Quasi, 2000), de onde se retiraram os três poemas que aqui divulgamos.
As mortes exemplares
(texto de Nicolau Saião)
Os números aí estão, insofismáveis, com a dureza e a naturalidade próprias da amarga verdade: o distrito de Portalegre é a segunda região da Europa com mais elevada percentagem de suicídios. Só é ultrapassada por Beja, essoutra região desprotegida de Portugal.
Números divulgados pela Associação de Estudos Estatísticos, corroborados por organismos da União Europeia, abrem o pano de um triste cenário para quem tem o hábito de ler periódicos daquém e dalém mar.
E aí está a região chave do nordeste alentejano, mais uma vez, a ter o lamentável privilégio de se ver citada por razões negativas.
Razões? São muitas, desde o recalcamento psicológico-sexual propiciado pela pressão duma religião mal-assimilada e nos limites da medievalidade até aos preconceitos provindos duma vida de relação atabafante e mesquinha, com o espectro da debilidade económica e da falta de meios sempre no horizonte: onde o comércio e a indústria não conseguem ir além da ronceirice requentada, só quebrada pela prosperidade das grandes superfícies, onde se encara frequentemente como cultura a efectivação de acções para entreter e lançar poeira nos olhos; e se tenta colonizar os espíritos mediante sessões que não deixam resíduo, que nada criam e nada proporcionam de durável, buscando transfigurar medíocres boas-bocas em “génios por via administrativa”…
Onde os que se rebelam contra a impostura são em geral marginalizados e substituídos por gente sem talento e frequentemente sem ética.
Onde o turismo, apesar das encenações a que alguns se entregam para “deitar milho aos pombos”, alcandorando-se quiçá a prebendas, não anda nem desanda. Ou antes, sarabanda…
Que o perímetro desta região está de facto doente, eivado de neuroses sociais onde aflora o “discreto” desprezo pelo cidadão por parte de organismos de segurança, violências oficiais subterrâneas e desvigamentos socio-económicos, infelizmente já o sabíamos. Agora aí está preto-no-branco, para nosso desgosto, nossa vergonha - e falta dela nuns tantos.
Mas que fazer quando os organismos médicos são entidades persistentemente anquilosadas, nalguns casos até com gritantes fracturas no seu existir? Quando as "forças vivas" olham mais para o umbigo que para o bem-estar dos cidadãos a quem por vezes hostilizam quando não vergam o pescoço à canga com que habitualmente tentam jungi-los? Quando certas entidades espirituais-clericais avalizam a ignorância e substituem o esclarecimento e a autêntica vivência religiosa por actuações visando a permanência de teimas e de escleroses mais de cunho beato-falso que filho do legítimo cristianismo digno do século em que estamos?
Diz o ditado que “o pior cego é aquele que não quer ver”. Mas o pior mesmo, segundo creio, é o que tenta que os outros não vejam.
Pela minha parte acrescentarei que, mais que aos obstinados, a culpa de situações assim cabe aos que tentam substituir-se à vida clara, ao interesse dos concidadãos - para continuarem a seroar nas suas confortáveis posições extáticas, oportunistas e sectárias ainda que à custa de um ambiente ilegítimo e suicidário.
Que o “Deus das pequenas coisas”, como dizia Arundhati Roy, nos ajude neste período pré-natalício…
MEMÓRIAS
DE UM POETA COMOVIDO
Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra; humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões. Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das vidas que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na ESE de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitula-se (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos. O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992. Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si. A dado passo, Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido”. Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores.
As primeiras páginas do manuscrito estão escritas em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos versificatórios tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Numa delas, ainda actual, afirma (e assim termino):
“Com repúblicas e monarquias, / Assim vamos passando os dias, / Vivendo assim iludidos. / Em guerra vamos passando, / Por baixo do fogo chorando, / Uns já mortos, outros feridos. // Essas grandes democracias / Combatem todos os dias / Contra esses ditadores, / Porque na verdade porém / Deles só guerra nos vem, / Fome, lágrimas e dores. // [...] // Mal empregada Ciência / A custo e com paciência / Que hoje se está cultivando. / Só se emprega em maquinismo / Pra nos trazer o terrorismo / Para os inocentes ir matando. // Essas grandes construções / Tanto em barco como aviões, / Não tem fim o seu limite. / Afinal o que é que fazem [?] / A morte à gente nos trazem, / Construção de dinamite. // Maldita guerra afinal, / Que se torna universal. / Achando pouco a Europa, / Por toda a parte se grita, / Só se vê gente aflita, / Tanto civis como tropa. // [...] // Acabai com o armamento / Todas as nações ao mesmo tempo, / Sejam iguais as bandeiras. / Tenham-nos uma amizade, / Com tanta solidariedade / Com os irmãos de Além Fronteiras. // Esse grupo de vilões, / Ministros e patrões, / Esses que nada produzem. / Com a sua instituição, / Sem alma nem coração, / À miséria nos conduzem. // [...]”
DE UM POETA COMOVIDO
Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra; humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões. Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das vidas que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na ESE de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitula-se (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos. O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992. Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si. A dado passo, Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido”. Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores.
As primeiras páginas do manuscrito estão escritas em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos versificatórios tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Numa delas, ainda actual, afirma (e assim termino):
“Com repúblicas e monarquias, / Assim vamos passando os dias, / Vivendo assim iludidos. / Em guerra vamos passando, / Por baixo do fogo chorando, / Uns já mortos, outros feridos. // Essas grandes democracias / Combatem todos os dias / Contra esses ditadores, / Porque na verdade porém / Deles só guerra nos vem, / Fome, lágrimas e dores. // [...] // Mal empregada Ciência / A custo e com paciência / Que hoje se está cultivando. / Só se emprega em maquinismo / Pra nos trazer o terrorismo / Para os inocentes ir matando. // Essas grandes construções / Tanto em barco como aviões, / Não tem fim o seu limite. / Afinal o que é que fazem [?] / A morte à gente nos trazem, / Construção de dinamite. // Maldita guerra afinal, / Que se torna universal. / Achando pouco a Europa, / Por toda a parte se grita, / Só se vê gente aflita, / Tanto civis como tropa. // [...] // Acabai com o armamento / Todas as nações ao mesmo tempo, / Sejam iguais as bandeiras. / Tenham-nos uma amizade, / Com tanta solidariedade / Com os irmãos de Além Fronteiras. // Esse grupo de vilões, / Ministros e patrões, / Esses que nada produzem. / Com a sua instituição, / Sem alma nem coração, / À miséria nos conduzem. // [...]”
POETAS NOVOS DE PORTUGAL
RUI LAGE
Elipse
Nos pomares,
nas hortas ascendentes
a tarde inteira foram as vozes
sem quebras, sem omissões
e a crina do potro sacudiu a pastagem
palpitante de sol
sem que noite alguma viesse
elidir o pensamento.
(in Berçário)
Espanto
Os pardais dispararam das heras
a coberto da noite
que tacteava na lenha.
Primeiro o rufar das pequenas asas,
um estertor, uma arritmia, depois
as salvas secas
enquanto rodei sobre mim
o tempo de pressentir a sombra
que partiu com eles em busca de longe
(de bosque em bosque
de fonte em fonte
e de prado em prado).
(idem)
A Céu Aberto
Dizem que o Sr. João não se lava,
que em certas noites
dorme no monte junto ao cavalo;
que bebe muito e cai pela terra
em redondo o pensamento,
que a sua cama não tem lençóis
e que a suportam quatro tijolos;
que nunca lava as escadas
e que nunca lava a roupa
embora permaneça preso ao ribeiro
muito depois
de as mulheres terem partido.
Vejo
que a cova dos seus olhos
foi aberta num sítio
rodeado de terra por todos os lados.
As árvores, que se saiba,
não se lavam
e dormem ao relento
encostadas ao cavalo do estio
(se assim não fosse não amaria
o que já não seriam árvores).
(in Callipole – Revista de Cultura, nº 12, 2004)
Rui Lage (Porto, 1975), licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, é membro da Fundação Eugénio de Andrade e director da revista águasfurtadas (Porto). Publicou, em poesia, Antigo e Primeiro (Quasi, 2002) e Berçário (Quasi, 2004). É ainda autor de uma peça de teatro, Não há mais que Nascer e Morrer (Edições Mortas, 2004).
RUI LAGE
Elipse
Nos pomares,
nas hortas ascendentes
a tarde inteira foram as vozes
sem quebras, sem omissões
e a crina do potro sacudiu a pastagem
palpitante de sol
sem que noite alguma viesse
elidir o pensamento.
(in Berçário)
Espanto
Os pardais dispararam das heras
a coberto da noite
que tacteava na lenha.
Primeiro o rufar das pequenas asas,
um estertor, uma arritmia, depois
as salvas secas
enquanto rodei sobre mim
o tempo de pressentir a sombra
que partiu com eles em busca de longe
(de bosque em bosque
de fonte em fonte
e de prado em prado).
(idem)
A Céu Aberto
Dizem que o Sr. João não se lava,
que em certas noites
dorme no monte junto ao cavalo;
que bebe muito e cai pela terra
em redondo o pensamento,
que a sua cama não tem lençóis
e que a suportam quatro tijolos;
que nunca lava as escadas
e que nunca lava a roupa
embora permaneça preso ao ribeiro
muito depois
de as mulheres terem partido.
Vejo
que a cova dos seus olhos
foi aberta num sítio
rodeado de terra por todos os lados.
As árvores, que se saiba,
não se lavam
e dormem ao relento
encostadas ao cavalo do estio
(se assim não fosse não amaria
o que já não seriam árvores).
(in Callipole – Revista de Cultura, nº 12, 2004)
Rui Lage (Porto, 1975), licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, é membro da Fundação Eugénio de Andrade e director da revista águasfurtadas (Porto). Publicou, em poesia, Antigo e Primeiro (Quasi, 2002) e Berçário (Quasi, 2004). É ainda autor de uma peça de teatro, Não há mais que Nascer e Morrer (Edições Mortas, 2004).
O meu amigo Jagodes
(Texto de Nicolau Saião
com "Um anjo bondoso", de Yrmak Kazil)
Será preciso apresentar-vos o meu confrade José Jagodes? Creio que seria estultícia – como usa dizer o Prof. Pamplinas Miragaia – um tal procedimento.
Pois quem não conhece o famoso Dr. José Jagodes? O intelectual brilhante mas modesto, o aventureiro epicurista, o pensador profundo e o conhecido polemista - já terçando lanças com Edmundo Prates Carmelo, Silva Tavares ou Perneco Ferreira, já trocando farpas com o até à altura imbatível Ronaldo de Sousa, o único luso comentador que conseguiu num lance famoso polemizar consigo mesmo ao espelho mas que, no confronto com o Dr. Jagodes, teve de se calar pela primeira vez na vida, enfiado e tartamudeando.
Foi, com efeito, esta personalidade ímpar que me remeteu da sua casa de Linda-a-Velha uma carta que vos vou confiar com todo o gosto:
“Caro amigo: Já disseste, e talvez com razão, que algumas das palavras que te tenho escrito provavelmente ajudarão a fazer a “pequena história” desta região de nome Portugal e do muito povo que nela reside e mesmo vive. Por isso aqui vai um novo esboço...
Ontem, nessa caranguejola maravilhosa chamada televisão, vi um digno senhor acompanhado de outro senhor mui digno debaterem uma cousa assim a modos que presidencia da República, se não estou em erro, a que ambos e muito bem concorrem.
Um deles, magrito e taciturno e um bocadinho atabalhoado na fala (o que aliás até lhe fica a preceito, dá-lhe um ar peculiar e solene, agradável de ver, de homem de Estado cheio de donaire) esforçava-se por demonstrar que ao mais alto magistrado da Nação (como dizem os comentadores aperaltados) na pátria de Camões cabe-lhe ser uma espécie de mordomo – já porque dali não vem o perigo político de “agitar as águas” visto só servir para ajudar o povo a ter, digamos, socialmente maneiras e melhorias de estilo vivencial – ou uma espécie de conselheiro espiritual para o primeiro-ministro, já abrindo-lhe os olhos para as duras realidades da vida (como faziam as avózinhas antigamente) já ensinando-o talvez a comportar-se nas recepções (como se faz aos adolescentes pernetas). Quiçá servindo de manso excitante para que os empresários e os parceiros sociais consigam alcançar boas performances…
Mas se ao presidente da República cabe dest’arte o papel de ama-seca, de grilo-falante ao jeito do Pinóquio, quando muito de explicador escolar ou de “claque” para espevitar actuações governamentais ou populares – para que andam as gentes em polvorosa, inquietas porque parece estar para vir aí um tal Prof. Aníbal autoritário e rodeado de gente vigorosa que se diz não ser para brincadeiras?
Algo está muito mal contado. Ou então sou eu que sou ingénuo como uma ninfeta…”.
Li e engoli em seco. Decerto como todos vós engoliríeis...
Tenho de ter cuidado nestes meus contactos com o Jagodes. Até pode calhar que ele tenha razão no que diz. Mas…confesso que me começo a preocupar: qualquer dia, se mal se precata, o meu amigo “vai dentro” e eu não quero ser arrolado de embrulho, ainda tenho muito que fazer.
Vou ser prudente. Mesmo que me chamem um bocadinho medroso, quero lá saber! É que numa terra como a nossa, de gente de categoria, com doçura e bondade como aquele senhor de ontem - a tradicional “brandura dos nossos costumes” - todo o cuidado é pouco…
Será preciso apresentar-vos o meu confrade José Jagodes? Creio que seria estultícia – como usa dizer o Prof. Pamplinas Miragaia – um tal procedimento.
Pois quem não conhece o famoso Dr. José Jagodes? O intelectual brilhante mas modesto, o aventureiro epicurista, o pensador profundo e o conhecido polemista - já terçando lanças com Edmundo Prates Carmelo, Silva Tavares ou Perneco Ferreira, já trocando farpas com o até à altura imbatível Ronaldo de Sousa, o único luso comentador que conseguiu num lance famoso polemizar consigo mesmo ao espelho mas que, no confronto com o Dr. Jagodes, teve de se calar pela primeira vez na vida, enfiado e tartamudeando.
Foi, com efeito, esta personalidade ímpar que me remeteu da sua casa de Linda-a-Velha uma carta que vos vou confiar com todo o gosto:
“Caro amigo: Já disseste, e talvez com razão, que algumas das palavras que te tenho escrito provavelmente ajudarão a fazer a “pequena história” desta região de nome Portugal e do muito povo que nela reside e mesmo vive. Por isso aqui vai um novo esboço...
Ontem, nessa caranguejola maravilhosa chamada televisão, vi um digno senhor acompanhado de outro senhor mui digno debaterem uma cousa assim a modos que presidencia da República, se não estou em erro, a que ambos e muito bem concorrem.
Um deles, magrito e taciturno e um bocadinho atabalhoado na fala (o que aliás até lhe fica a preceito, dá-lhe um ar peculiar e solene, agradável de ver, de homem de Estado cheio de donaire) esforçava-se por demonstrar que ao mais alto magistrado da Nação (como dizem os comentadores aperaltados) na pátria de Camões cabe-lhe ser uma espécie de mordomo – já porque dali não vem o perigo político de “agitar as águas” visto só servir para ajudar o povo a ter, digamos, socialmente maneiras e melhorias de estilo vivencial – ou uma espécie de conselheiro espiritual para o primeiro-ministro, já abrindo-lhe os olhos para as duras realidades da vida (como faziam as avózinhas antigamente) já ensinando-o talvez a comportar-se nas recepções (como se faz aos adolescentes pernetas). Quiçá servindo de manso excitante para que os empresários e os parceiros sociais consigam alcançar boas performances…
Mas se ao presidente da República cabe dest’arte o papel de ama-seca, de grilo-falante ao jeito do Pinóquio, quando muito de explicador escolar ou de “claque” para espevitar actuações governamentais ou populares – para que andam as gentes em polvorosa, inquietas porque parece estar para vir aí um tal Prof. Aníbal autoritário e rodeado de gente vigorosa que se diz não ser para brincadeiras?
Algo está muito mal contado. Ou então sou eu que sou ingénuo como uma ninfeta…”.
Li e engoli em seco. Decerto como todos vós engoliríeis...
Tenho de ter cuidado nestes meus contactos com o Jagodes. Até pode calhar que ele tenha razão no que diz. Mas…confesso que me começo a preocupar: qualquer dia, se mal se precata, o meu amigo “vai dentro” e eu não quero ser arrolado de embrulho, ainda tenho muito que fazer.
Vou ser prudente. Mesmo que me chamem um bocadinho medroso, quero lá saber! É que numa terra como a nossa, de gente de categoria, com doçura e bondade como aquele senhor de ontem - a tradicional “brandura dos nossos costumes” - todo o cuidado é pouco…
Vozes do Brasil
Talvez nos deslumbre o crepúsculo, a ironia da imagem
débil em nosso começo quando vou a ti só com o murmúrio
da mente e chego a quatro paredes. Este é o privilégio
da noite, um abrir de conchas num mar quieto.
Reage o ser e o tempo nesse desesperado limite
em que a dor faz parte da matéria
sem gritos.
Há o tamanho do remoto que já vive
ao lado do que sonhamos depois de acabado o jogo
na claridade de outro infinito. Por que nunca gritam
os pássaros que nasceram com o poder do canto e as coisas
bem mais próximas deles? E os peixes mudos
entre as malhas da rede? Só destruímos como surdos.
O mundo pronto a ter com nossa vida o que é pequeno...
(in Gemônias, Universidade Federal de Santa Catarina,1982)
Um estádio repleto de torcedores tem mais
sonho que corpo: soma da matéria sem retorno.
Calculamos o centro dos desejos sempre em jogo
com aquilo que houve: rivalidade de homens.
O resto deposita-se na fonte. O mundo basta
para manter o acaso com a inocência das árvores.
Eis o álbum aberto sob as imagens de tantos
e o proveito de um erro nesse drible mal pensado
fora de todo o espaço nas horas sem realidade
quando surge o sentido da nossa nudez num quarto
e as árvores preparam-se para o próximo encontro
perdendo as folhas de antes pela verdade do tronco.
(idem)
Alguma necessidade impõe às rosas
a diferença de cores. Mas os pardais
que voam entre uma discussão
e outra, nem seriam pássaros,
não houvesse o voar constante
em tamanha proximidade com os homens.
Pouco me interesso por eles.
Maior é a certeza pelo que houve
dos sonhos. Mas por que vivem
se não cantam?
E que adianta a origem comum a todos
num destino insondável de poeta?
Já estivemos perto, a diferença
é só a entrada no infinito e basta
girar o mito numa esquina
de rua deserta.
(idem)
C. RONALD
Talvez nos deslumbre o crepúsculo, a ironia da imagem
débil em nosso começo quando vou a ti só com o murmúrio
da mente e chego a quatro paredes. Este é o privilégio
da noite, um abrir de conchas num mar quieto.
Reage o ser e o tempo nesse desesperado limite
em que a dor faz parte da matéria
sem gritos.
Há o tamanho do remoto que já vive
ao lado do que sonhamos depois de acabado o jogo
na claridade de outro infinito. Por que nunca gritam
os pássaros que nasceram com o poder do canto e as coisas
bem mais próximas deles? E os peixes mudos
entre as malhas da rede? Só destruímos como surdos.
O mundo pronto a ter com nossa vida o que é pequeno...
(in Gemônias, Universidade Federal de Santa Catarina,1982)
Um estádio repleto de torcedores tem mais
sonho que corpo: soma da matéria sem retorno.
Calculamos o centro dos desejos sempre em jogo
com aquilo que houve: rivalidade de homens.
O resto deposita-se na fonte. O mundo basta
para manter o acaso com a inocência das árvores.
Eis o álbum aberto sob as imagens de tantos
e o proveito de um erro nesse drible mal pensado
fora de todo o espaço nas horas sem realidade
quando surge o sentido da nossa nudez num quarto
e as árvores preparam-se para o próximo encontro
perdendo as folhas de antes pela verdade do tronco.
(idem)
Alguma necessidade impõe às rosas
a diferença de cores. Mas os pardais
que voam entre uma discussão
e outra, nem seriam pássaros,
não houvesse o voar constante
em tamanha proximidade com os homens.
Pouco me interesso por eles.
Maior é a certeza pelo que houve
dos sonhos. Mas por que vivem
se não cantam?
E que adianta a origem comum a todos
num destino insondável de poeta?
Já estivemos perto, a diferença
é só a entrada no infinito e basta
girar o mito numa esquina
de rua deserta.
(idem)
ESTA VIDA DE PROFESSOR (3)
Não gostaria que ficásseis com uma imagem demasiado negativa do mundo em que vivem os docentes portugueses. Embora se note um crescente desencanto em relação ao exercício profissional – motivado, em boa parte, pelos ataques movidos contra a sua imagem, que têm posto em causa a sua relevância social –, os professores têm ainda muitas razões para se sentirem felizes nas escolas. Claro, têm que vestir todos os dias uma boa dose de estoicismo, para se aguentarem de pé depois das rasteiras da tutela, de sindicatos desligados da realidade, de conselhos executivos míopes ou maldosos, de colegas pouco conscienciosos, de alunos com educação deficiente, de famílias irresponsáveis e/ou inconsequentes... Mas, mesmo assim, se ao fim de cada dia colocarem nos pratos da balança os aspectos negativos e os aspectos positivos, encontrarão um saldo muitas vezes positivo. E é esse saldo que os faz andar para a frente – resistentes, como são, todos os dias.
Um exemplo, entre muitos que poderia dar. Trabalho com os alunos da minha escola num “Clube de Escrita”, que visa promover o gosto pela criatividade verbal e pela leitura. Somos todos voluntários. Nas duas horas semanais que lhe são dedicadas, eu poderia estar na sala de professores à espera de Godot... Naquelas horas demasiado matinais (e agora frias, de Inverno...) os alunos poderiam estar na cama, no calor dos édredons... Mas não. Preferimos ambos estar ali a lidar com as palavras, retirando delas saber e sabor... Tenho-me surpreendido com o entusiasmo dos gaiatos (como se diz na nossa terra, em saboroso português): chegam ao ponto de querer trabalhar noutras horas, só para escreverem. O resultado está à vista numa página da internet (http://www.santanapequenosescritores.blogspot.com/); os textos são ingénuos – como seria de esperar –, mas não deixam de ser saborosos. Digam lá se tudo isto não vale muito mais do que as chatices que tanta gente nos causa...
Infelizmente há alguns aborrecimentos a que os professores que amam a sua profissão não podem escapar. Podem resignar-se a tudo – mas não podem esquecer que, hoje em dia, têm que trabalhar com um sistema educativo que promove tudo, menos o verdadeiro sucesso dos alunos na aprendizagem. Deixemo-nos de tretas: aquilo que nos querem impingir não passará nunca de um sucesso artificial, sem verdadeira qualidade – uma espécie de vinho a martelo que terá consequências graves no futuro...
Poderá ser sucesso verdadeiro o que nasce de um sistema em que a reprovação dos alunos é dificultada ao máximo, através da imposição de um sem-número de procedimentos burocráticos que visam passar os alunos, sem que estes o mereçam, e vencer os professores pelo cansaço? Poderá conduzir ao sucesso um currículo preenchido por áreas não-disciplinares (Estudo Acompanhado, Formação Cívica, Área de Projecto, etc.), aparentemente benéficas, mas que redundam apenas numa infrutífera ocupação de tempo roubado às diversas disciplinas (sobretudo Língua Portuguesa e Matemática!)? Poderá existir sucesso quando essa falácia chamada “autonomia” permite às escolas a fixação dos mais díspares critérios de transição ou retenção (o mesmo aluno, com as mesmas notas, pode passar numa escola e chumbar noutra...)? Poderá existir sucesso num sistema educativo que tem sido desvirtuado nos seus mais elementares fundamentos, nomeadamente na promoção do mérito e na sã correspondência entre desempenho e consequências do desempenho (nos conhecimentos e nas atitudes)? Poderá, enfim, existir sucesso numa Escola em que não se promove a disciplina e o respeito nas vivências sociais, fazendo corresponder aos direitos um claro quadro de deveres, cujo não cumprimento corresponderia a sanções rápidas e exemplares?
É fácil, quando se fala em insucesso escolar, atribuir todas as culpas aos professores e a factores sócio-ecónomicos. Algumas existirão, decerto. Não equacionar as questões anteriormente referidas é ter, contudo, uma visão coxa das suas causas. Infelizmente, poucos ou nenhuns sindicatos enfrentam o Ministério da Educação para que estas questões sejam resolvidas. Por esta e por outras razões não costumo fazer greves.
Natureza viva
com amigo
e telefone
(texto e ilustração
de Nicolau Saião)
Anteontem, aí pela tardinha, estive de longe à conversa com um amigo. Minto, a conversa foi de perto, as casas é que estavam longe mas o aparelhómetro aproximou-as.
Ambos emocionados recordámos velhos tempos dos inícios de oitenta: quando, acompanhados em geral por outro amigo – esse, então funcionário duma livraria-editora onde mais tarde iria justamente ocupar lugar bem mais importante, infelizmente já falecido – percorríamos muitos lugares de Lisboa aonde a nossa curiosidade nos levava.
Recordámos também os passeios que dávamos com um filho meu: esse amigo, que sempre teve para connosco uma maneira de ser bondosa e comunicativa, aberta e franca, levava-nos a galerias e, nos museus que visitámos, era uma espécie de cicerone para com o pequeno João. Comprava-lhe livros adequados à idade, guloseimas quando calhava, tinha para com ele atenções que não se esquecem.
Ficávamos sempre no sofá-cama dum “atelier” que ele tinha – pois o meu amigo pinta e também escreve. E de que maneira!
Comigo era um senhor companheirão – sempre muito direito nos seus cinquentas de mago e de cidadão. Por essa altura eu andei bastante atacado por uma nefrite de que só me livraria mediante uma operação no Santa Cruz de Carnaxide. Mas, até lá, estive uns tempos a perder tempo em consultas com outros Hipócrates. E esse amigo, desveladamente, procedia assim: ia esperar-me a Santa Apolónia, que era onde parava/pára o combóio que vai do nordeste alentejano à capital; ia comigo à consulta e, fosse durante uma, duas ou três horas, esperava pacientemente conversando comigo e até com outras pessoas presas ali ao ordálio da dor (e todas ficavam encantadas com o seu verbo amigável, comparticipativo e esfusiante de criatividade); depois, para me acalentar, levava-me a casas-de-pasto e restaurantes e a seguir ao cinema ou à Feira Popular a comprar livros, ou aos cafés duma Lisboa que já me parece perdida num sonho (bom).
O que a gente falava – de livros e de pinturas, de coisas de dentro e de coisas de fora, de projectos que em parte efectivámos e de sonhos comuns! “Mas por muito que falemos nunca chegaremos a dizer tudo!” me preveniu ele uma vez com a sabedoria e a sensatez que lhe é apanágio.
Tantas coisas que recordámos, que dissemos na hora ou apenas pensámos!
E é desse amigo, pessoa que dois dias antes se tivera a justeza de distinguir com um galardão (ou foi ele que distinguiu o galardão atribuído?) que eu vos deixo aqui um poema de que muito gosto – e creio que Vocês também irão gostar.
Vai à guisa de abraço que lhe endosso em público, fraterna e comovidamente.
O HERÓI
Herói é o meu nome.
Meu olhar frio, arguto
Não vê coisa que o dome.
Meu esforço rude e sano
Não desmaia um minuto.
Sou herói todo o ano.
Quando passar por vós, naturalmente,
com este meu ar simples e no entanto diferente
e no entanto diferente do ar do resto da gente
não digais: é fulano.
Dizei: é o Herói.
O herói, simplesmente.
Mário Cesariny
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