Teatro de Espelhos
(texto de Rui Lage)

Sócrates dizia: "conhece-te a ti mesmo". Pessoa inverteu a máxima e disse, na sua poesia (e nesse livro maior da literatura de todos os tempos e lugares, o Livro do Desassossego): desconhece-te a ti mesmo. A ironia, ou o paradoxo, desta inversão, é que também a formulação pessoana aspira a uma espécie de "maiêutica" que consiste em revelar a existência humana em todo o seu esplendoroso vazio − e beleza. Pessoa percebeu que cada indivíduo é também uma abstracção de si mesmo, um "Eu" disperso e fragmentado. É verdade que foi Rimbaud o primeiro a descobrir que "Je est un autre", mas só Pessoa conseguiria dialogar com esse "autre", elegê-lo como interlocutor legítimo. A sua obra é um espelho (aliás, um teatro de espelhos) onde cada indivíduo, olhando-se, não poderá deixar de se reconhecer − de reconhecer que é uma mentira (ou fingimento de si) e, em novo passe de mágica, que nessa mentira reside toda a sua verdade. A consciência de si, nele, levou à perda da consciência, permitiu-lhe olhar-se como se fosse estranho a si mesmo e concluir que, afinal, não havia nada a não ser o vazio. Foi, por isso, de todos os poetas ocidentais, o mais universal e o mais humano. Por outro lado, é sempre com pudor que se fala de Pessoa, e a poesia portuguesa, a partir dos anos 70, começou a desenvolver uma relação complexada com a sua obra "monstruosa". Muitos começaram, entretanto, a afiar as espadas. Aqui e ali, ainda a medo, já se vão desferindo uns golpes na herança pessoana, tentando menorizar ou relativizar a sua obra. É grande a tentação, para um crítico, ensaísta ou académico, de aparecer como aquele que colocou Pessoa no seu "devido lugar"... O fantasma de Pessoa, porém, é daqueles que resiste a todos os exorcismos. Quanto mais o procuram desvalorizar, mais o enriquecem, ele que, ainda por cima, previra tudo isso. Falar pois da influência de Pessoa na cultura portuguesa contemporânea é uma redundância, pois tudo o que foi escrito ou pensado depois dele denuncia, de alguma forma, a sua marca. A sua visão do mundo, articulada na sua poesia, é definidora da nossa identidade (não da pátria, pois que a sua única obra menor é, precisamente, a Mensagem). O que é o "medo de existir" desse inesperado "best-seller" de José Gil senão uma versão extensa do "Ó Portugal, hoje és nevoeiro"? Fernando Pessoa, o maior poeta e filósofo português de sempre, levou a cabo, sozinho, uma revolução de lucidez: conheceu-se desconhecendo-se.

(Publicado originalmente no JL nº 918)

2 comentários:

Anónimo disse...

E mesmo a "Mensagem", apesar de relativamente menor (e digo relativamente com, acho eu,inteira propriedade) bate aos pontos muitas obras maiores de geniaços posteriores que "as trombetas de lata" lusas incensam (e mirram...).
Uma das minhas pequenas histórias de horror: em Paris(1999),com um grande progressista e revolucionário profissional que o Ruy Ventura também conhece/conhecia (e que entretanto passou a espingardear-nos depois de tentar evangelizar-nos e incensar-nos como as "vedetas" da revista que mantinha) sofri eu várias duríssimas investidas,que depois resultaram em tentar difamar-me, porque para o homem o Pessoa não era mais que um fascista e um engrolador de retórica. E para mim não era, claro, e embora com amenidade assim lho disse na cara.
Que fazer perante monstros semelhantes?
O texto de Rui Lage é pois de saudar, porque é sensato e adequado.
...E bom fim de semana.

Duarte disse...

Não há lugar certo para Pessoa. Ele é do mundo, quiçá do Universo. A Estrada do Alicerce é muito interessante, felicito-me pela descoberta desta estrada. Um abraço