Antologia “Fanal”
JOÃO RUI DE SOUSA
Declaração de Princípios
Não se pode enobrecer o sono.
É acordado
que as algemas se partem;
que o solo fica mais fértil,
que a luz, corda imaterial
e tão versátil,
melhor fulge na mente;
que a paz, ermo azulado,
mais junto fica ao latejar
do corpo, aos compassos
de voz e coração;
e que, felizes (beijando o sol
que as vê), brincam gaivotas,
lebres e crianças.
*
Sim, pois – caminhar num tempo raso
ainda que lúcido, seguir num tempo
brando de árvores carregadas:
o das palavras ágeis, mais exactas,
mais próximas das horas que levitam,
mais coladas aos corpos que se enlaçam,
mais junto à erva e ao rumor das águas
e mais perto das hélices dum futuro
que dê mais verde ao verde das planícies
e dissolva o bolor de tantas casas.
*
[...]
*
Que a voz enfrente sempre a violência,
mesmo o metal mais duro da peçonha.
Que um verso seja arremesso de pedra
contra feras de dolo e ramagens de dor.
Que palavras de brio, talvez ciscos de lava,
sejam das penhas soltas ou lançadas
a recusar cortinas de ardiloso sono.
Que as frases sejam pétalas despenhadas
com fraterno ardor e flocos de alvorada.
(nº 1, 19/05/2000)
Proibido andar sobre a relva
(crónica de José do Carmo Francisco)
Fiquei chocado, surpreendido e mesmo revoltado quando ouvi na televisão a notícia da morte do escritor Ferro Rodrigues anunciada como sendo a de um «colaborador dos Parodiantes de Lisboa». Para mim não está em causa que o escritor Ferro Rodrigues, tal como por exemplo escritor Santos Fernando, fosse amigo dos Parodiantes de Lisboa e tivesse colaborado com os seus programas «Graça com todos» e «Parada da paródia». E nem me interessa se esta notícia foi feita por ignorância ou por má fé. Para mim Ferro Rodrigues é o autor de três livros: Noite sem estrelas, Lusitânia Expresso e Proibido andar sobre a relva. E nem está em causa se ele era o pai do outro Ferro Rodrigues que exerceu funções governativas e foi secretário-geral de um partido. Isso não está em causa. Para mim o problema está em que a notícia refere a sua ligação aos Parodiantes de Lisboa e circunscreve as suas actividades a essa colaboração. Isso é que está mal, isso é que é incorrecto pois quem elaborou a notícia não pode ser refém de preconceitos. E a mim parece-me que a notícia deveria ter sido assim: «Faleceu Ferro Rodrigues, autor dos livros Proibido andar sobre a relva, Lusitânia Expresso e Noite sem estrelas. Foi amigo do escritor Santos Fernando com quem manteve parcerias no teatro de revista do Parque Mayer e colaborou nos programas dos Parodiantes de Lisboa.» Para dar uma ideia vou transcrever duas linhas do livro Proibido andar sobre a relva. Numa casa de fados alguém dirige-se a uma fadista e pergunta: «Rapariga queres uma letra para um fado novo?» E responde: «É um fado humorístico. O gozo dum fidalgo sem vintém que se vendeu à filha dum lavrador alentejano a troco duns cornos de cortiça.» É humor, um humor povoado pela tristeza porque Ferro Rodrigues sabia que «o humor é uma lágrima entre parêntesis.»
(crónica de José do Carmo Francisco)
Fiquei chocado, surpreendido e mesmo revoltado quando ouvi na televisão a notícia da morte do escritor Ferro Rodrigues anunciada como sendo a de um «colaborador dos Parodiantes de Lisboa». Para mim não está em causa que o escritor Ferro Rodrigues, tal como por exemplo escritor Santos Fernando, fosse amigo dos Parodiantes de Lisboa e tivesse colaborado com os seus programas «Graça com todos» e «Parada da paródia». E nem me interessa se esta notícia foi feita por ignorância ou por má fé. Para mim Ferro Rodrigues é o autor de três livros: Noite sem estrelas, Lusitânia Expresso e Proibido andar sobre a relva. E nem está em causa se ele era o pai do outro Ferro Rodrigues que exerceu funções governativas e foi secretário-geral de um partido. Isso não está em causa. Para mim o problema está em que a notícia refere a sua ligação aos Parodiantes de Lisboa e circunscreve as suas actividades a essa colaboração. Isso é que está mal, isso é que é incorrecto pois quem elaborou a notícia não pode ser refém de preconceitos. E a mim parece-me que a notícia deveria ter sido assim: «Faleceu Ferro Rodrigues, autor dos livros Proibido andar sobre a relva, Lusitânia Expresso e Noite sem estrelas. Foi amigo do escritor Santos Fernando com quem manteve parcerias no teatro de revista do Parque Mayer e colaborou nos programas dos Parodiantes de Lisboa.» Para dar uma ideia vou transcrever duas linhas do livro Proibido andar sobre a relva. Numa casa de fados alguém dirige-se a uma fadista e pergunta: «Rapariga queres uma letra para um fado novo?» E responde: «É um fado humorístico. O gozo dum fidalgo sem vintém que se vendeu à filha dum lavrador alentejano a troco duns cornos de cortiça.» É humor, um humor povoado pela tristeza porque Ferro Rodrigues sabia que «o humor é uma lágrima entre parêntesis.»
um poema de
NICOLAU SAIÃO
(no dia do seu 60º aniversário)
INTERIORES
Tentou olhar em volta: a cadeira
contudo, tapava-lhe a visão perfeita
do que estaria na sala, pela porta
um pouco menos que escancarada. Assim
se decidem movimentos minúsculos. Pensou: resolvi-me
a procurar vestígios de, por exemplo, antepassados
residentes entre folhagem e silêncios. Exemplificando:
perto duma bomba de gasolina, ao rés da estrada
mais para Oeste, parar por um momento. Porque
embora verdade, não há queimaduras na boca, isso não passa
de frase encolhida de vate relho. Nessa altura
sentir a dor habitual, o perfeito saber de quem
sempre desconhecerá tetravôs, ignóbeis
sedimentações de poeira, ceras, polpas de frutos.
Arrastam-se, minha pequena, por sobre as coisas
voos de aves, sensações
do não habitual, do não desfeito: lembrar-te-ás de mim
fígado contra fígado
nesse teu mapa de palavras, nessa
tua recordação despelada? Recordarás
este e aquele nome de cidades
o cheiro do café a ferver sobre um pulso
o instante repetindo-se sobre os meus pulmões?
Nunca fiz ou tentei
fazer um poema sobre Mozart. Lambo a pequena ferida
sobre o terceiro dedo, algo
provém de salas onde às vezes
se esquecem ora livros, ora peças de roupa: e essa
é a música feita na pleura e nos ossos
e alguém bate à porta
e um som de martelo vibra
e alguém procura provavelmente numa gaveta um objecto
e é de novo o princípio da noite
mesmo no chão, mesmo ao pé dos muros altos.
(in Os Objectos Inquietantes, Caminho, 1992 – livro vencedor do Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores)
AMADEU BAPTISTA
PREMIADO
O escritor Amadeu Baptista obteve o Prémio de Poesia e Ficção de Almada 2005, com a obra narrativa Estrela de Bizâncio, anunciou a autarquia local, que promove o galardão destinado a estimular a criação literária no concelho.
O autor, premiado com cerca de dois mil euros, foi escolhido, entre mais de uma dezena de concorrentes, por um júri formado por representantes da Câmara de Almada, Sociedade de Língua Portuguesa e Associação Portuguesa de Escritores.
O tema da edição do ano passado do prémio foi prosa de ficção.
O escritor, que tem vários livros de poesia editados em Portugal e no estrangeiro, recebeu o mesmo galardão em 2000, com a obra poética O Claro Interior.
Estrela de Bizâncio é o seu primeiro original em prosa.
Assinada com o pseudónimo de Paulo Andrade, a narrativa evoca os tempos de vida de uma mulher que, em registo de confissão, relembra passagens da sua infância, juventude e velhice: os amores, a guerra, a morte.
Em declarações à agência Lusa, o porta-voz do júri, José Costa Ideias, justificou a atribuição do prémio salientando no inédito de Amadeu Baptista "a qualidade poética do discurso e o rigor da expressão literária e da construção da ficção".
Amadeu Baptista contou à Lusa que Estrela de Bizâncio começou por ser "um poema excessivamente longo", mais tarde condensado num "monólogo narrativo".
Apesar de escrever "por instinto" e de forma "torrencial", o autor revelou que a obra faz uma referência "subliminar" à segunda invasão do Iraque, em 2003, pelas forças aliadas ocidentais.
Amadeu Baptista acrescentou que a obra é "um libelo contra a guerra" e que alude a "Bizâncio, ou Constantinopla, ou Istambul para universalizar a temática anti-bélica".
Nascida na Grécia Antiga com o nome de Bizâncio, a cidade de Constantinopla (actual Istambul, na Turquia) foi, durante séculos, a capital do Império Romano do Oriente e palco de várias guerras.
Natural do Porto, Amadeu Baptista, de 52 anos, é membro da Associação Portuguesa de Escritores e do PEN Clube Português, exercendo a sua actividade profissional como produtor de exposições na Casa da Cerca - Centro de Arte Contemporânea, em Almada.
Os seus poemas já foram traduzidos para castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês, neerlandês e romeno.
O escritor tem colaborações dispersas em jornais, revistas, livros colectivos e antologias de diversos países da Europa e América Latina.
Em 2001 organizou uma antologia de poesia e prosa brasileira contemporânea e uma outra de poesia e fotografia sobre o concelho de Almada.
O autor tenciona publicar em Março um novo livro de poemas, intitulado Negrume, e, em 2007, uma antologia da sua obra poética.
Além disso, está a finalizar um outro livro de poesia e a escrever uma pequena novela.
"A prosa é um projecto que me agrada e que ambiciono cada vez mais, embora verifique que requer dedicação e disponibilidade que não tenho, de todo", confessou.
Instituído desde 1995, o Prémio de Poesia e Ficção de Almada visa galardoar autores que nasceram, residem ou trabalham no concelho.
A notícia é da Agência LUSA. "Estrada do Alicerce" acrescenta apenas uma profunda adesão à poesia de Amadeu Baptista. Poderá parecer redundância escrevê-lo, mas nunca é excessivo afirmar que se trata de uma obra fundamental na poesia portuguesa contemporânea.
OS NOVOS EXCLUÍDOS
Segundo revelam os jornais de hoje, há bancos que recusam abrir contas a desempregados ou pessoas sem profissão. Também hoje ficámos a saber que o desemprego real já atinge 611 mil portugueses, com tendência para crescer.
Não bastava que muitos bancos fossem já, ele próprios, agentes directos e/ou indirectos de desemprego, para além de motores directíssimos do endividamento dos portugueses (mediante campanhas de desinformação que estão a colocar a corda no pescoço de muita gente) - e agora temo-los como agentes de exclusão social, papel que lhes assenta como fatinho bem talhado. Não nos esqueçamos de que um cidadão sem conta bancária não pode ter cheques nem multibanco, o que o impedirá de aceder a muitos bens e serviços que a sociedade deveria proporcionar a todos... o que fará com que seja olhado com desconfiança por muitos dos seus concidadãos.
A DECO e o Banco de Portugal já protestaram mas, como tudo isto fica no âmbito da liberdade contratual entre bancos e clientes, nada será feito (é o costume...).
E assim vamos institucionalizando os novos senhores feudais e, também, os novos servos da gleba. Basta ver que, em casos de falência, os primeiros credores a receberem nunca são os desempregados (por mais famintos que estejam) mas, sempre, inevitavelmente, as instituições bancárias.
PS - Uma dúvida me assalta. Suponhamos que um desempregado resolve investir dois euros num bilhete do euromilhões. Ganha uma pipa de massa. Tenta depositá-la. Mas como, tecnicamente, continua a ser um desempregado (não tem realmente emprego), será que os tais bancos lhe recusarão a abertura de uma conta?
A ARTE DE DESERTIFICAR
Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.
Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.
EXPOSIÇÃO
DE ANA SALAZAR
De 23 de Fevereiro a 16 de Marco de 2006, na Galeria Monumental (Lisboa, Campo dos Mártires da Pátria, 101) poderemos contemplar uma exposição individual de Ana Salazar, intitulada Peaceful Comics after Berlin. A inauguração decorrerá no dia 23 de Fevereiro com slide show e música de comics dos anos 80. A artista define assim o seu trabalho:
O meu trabalho reflecte sempre o meu quotidiano. Memórias e acontecimentos autobiográficos fazem parte do processo gráfico das colagens. As imagens dos comics que recolhi desde a minha infância. Estes aparecem no meu trabalho com sentido de humor, retratados por vezes em poses ridículas. Como nasci logo a seguir a Revolução dos Cravos, em 1974, em Portugal, deu-me a oportunidade de observar o país a abrir as portas a novas influência culturais de todo o mundo. E consequentemente a comics estrangeiros. O meu trabalho foi sempre muito influenciado ao mesmo tempo contra esta sociedade de consumo. O título de cada trabalho combina a carácter da personagem e um contexto social adaptado a cada comic - duma forma muito subtil. De certo modo considero o meu trabalho um diário da minha vida.
De 23 de Fevereiro a 16 de Marco de 2006, na Galeria Monumental (Lisboa, Campo dos Mártires da Pátria, 101) poderemos contemplar uma exposição individual de Ana Salazar, intitulada Peaceful Comics after Berlin. A inauguração decorrerá no dia 23 de Fevereiro com slide show e música de comics dos anos 80. A artista define assim o seu trabalho:
O meu trabalho reflecte sempre o meu quotidiano. Memórias e acontecimentos autobiográficos fazem parte do processo gráfico das colagens. As imagens dos comics que recolhi desde a minha infância. Estes aparecem no meu trabalho com sentido de humor, retratados por vezes em poses ridículas. Como nasci logo a seguir a Revolução dos Cravos, em 1974, em Portugal, deu-me a oportunidade de observar o país a abrir as portas a novas influência culturais de todo o mundo. E consequentemente a comics estrangeiros. O meu trabalho foi sempre muito influenciado ao mesmo tempo contra esta sociedade de consumo. O título de cada trabalho combina a carácter da personagem e um contexto social adaptado a cada comic - duma forma muito subtil. De certo modo considero o meu trabalho um diário da minha vida.
Vozes do Brasil
MIGUEL JORGE
NO MAR NENHUM BARCO
Os amores são largos e longos e não cabem nas cartas.
A noite lenta fere de faca a luz cega do medo.
Indiferentes, as borboletas são anjos vestidos de prata.
Assim, os musgos vão cobrindo de vermelho os moluscos
dentro das caixas.
São do domingo os escargots, lentas flores, colocadas sobre
bandejas de prata.
Talvez não se possa evitar a falta de pão, reflexos da ira,
a dor que não se quer dar aos filhos.
Dormem as naves sobre as janelas do mar, talvez um barco,
igual a um barco, indo além do mar, brasa da alma. (Baco
num riso igual a um risco de língua nas bocas.)
Igual a um casaco de frio que se pendura detrás da porta.
Igual às ondas a testemunhar as rosas se desfazendo no branco
laço das águas.
(A noite carrega os diamantes no impacto do chão que se faz
cinza).
Se viam roucas as Américas, a constituição dos ventos cobrindo
lábios muito finos. Estrelas ostentam um festim ameno de
vozes. Os ratos, os gatos o nojo anunciado. O gozo desfeito
em nada, se põem de lado, ainda mais quando do céu se
toma lei e posse de secretos códigos.
EM AZUL O MAR SE IMAGINA
Já não se vê o azul do azul, o mar que se imagina.
Um tempo que fora assim de uvas, de frases e vinhos
passados na memória.
- E quem cuida das vinhas do mar? O sono se desfaz
no fim da linha, sensual linguagem que mal se pronuncia.
Cospem chuvas as chuvas, verdes migalhas sobre a paisagem.
Alguém fecha os olhos da noite, as feridas travadas dentro da
casca, inutilmente expostas.
ESSES UMBIGOS
Umbigo nenhum autoriza a mostrar-se tanto,
às vezes apenas esboçado. Umbigo de fina
redondez, bico engomado a abrir-se em asas
igual coroa de pequenas brasas.
Apenas umbigo, menos que as nádegas,
posto em oferenda. Tornar-se coroa de Eros
a se dividir em pedaços.
A máscara talhada em fios de curta
linguagem, e o que mais se corteja:
umbigos roxos, acasos secretos,
pudicas histórias em seus espaços,
é forçoso buscá-las. Os rosados se pronunciam
de fina graça, aos cuidados de cada palavra dada.
Paisagem e domínio sob o canto do ouro e prata
os incêndios de suas chamas, os umbigos delatam.
Imaculado nunca é o umbigo, nascido
assim de redondos talhes, e dá-se ao mar
e dá-se às areias, e dá-se aos punhais,
e mais a outros deuses que nunca sabemos.
MIGUEL JORGE é um escritor de língua portuguesa que precisa ser descoberto em Portugal. Nascido em Campo Grande (Mato Grosso do Sul, Brasil) e residente em Goiânia, conta na sua bibliografia com 26 (!) títulos publicados, todos com qualidade ímpar, em áreas tão distintas quanto o romance, o conto, a poesia, o teatro e a narrativa infanto-juvenil. Recebeu vários prémios, como o prestigiado “Machado de Assis”. Tem narrativas suas adaptadas ao cinema. Sobre a sua obra debruçaram-se já vários ensaístas do país-irmão, dos Estados Unidos da América, etc.. Um ensaio recente, por exemplo, compara a força e a novidade da sua ficção à que é conhecida na obra de Júlio Cortazar. Com tudo isto, é quase totalmente desconhecido em Portugal. Tanto quanto sei, tem por cá publicados dois ou três poemas numa antologia de poesia brasileira lançada pelas edições Alma Azul e organizada por Álvaro Alves de Faria – e alguns textos que Nicolau Saião e eu demos à estampa no Fanal... Até quando?
Os dois poemas que hoje ofereço aos leitores foram retirado do seu mais recente livro, Marbrasa, comemorativo dos seus 40 anos de vida literária.
MIGUEL JORGE
NO MAR NENHUM BARCO
Os amores são largos e longos e não cabem nas cartas.
A noite lenta fere de faca a luz cega do medo.
Indiferentes, as borboletas são anjos vestidos de prata.
Assim, os musgos vão cobrindo de vermelho os moluscos
dentro das caixas.
São do domingo os escargots, lentas flores, colocadas sobre
bandejas de prata.
Talvez não se possa evitar a falta de pão, reflexos da ira,
a dor que não se quer dar aos filhos.
Dormem as naves sobre as janelas do mar, talvez um barco,
igual a um barco, indo além do mar, brasa da alma. (Baco
num riso igual a um risco de língua nas bocas.)
Igual a um casaco de frio que se pendura detrás da porta.
Igual às ondas a testemunhar as rosas se desfazendo no branco
laço das águas.
(A noite carrega os diamantes no impacto do chão que se faz
cinza).
Se viam roucas as Américas, a constituição dos ventos cobrindo
lábios muito finos. Estrelas ostentam um festim ameno de
vozes. Os ratos, os gatos o nojo anunciado. O gozo desfeito
em nada, se põem de lado, ainda mais quando do céu se
toma lei e posse de secretos códigos.
EM AZUL O MAR SE IMAGINA
Já não se vê o azul do azul, o mar que se imagina.
Um tempo que fora assim de uvas, de frases e vinhos
passados na memória.
- E quem cuida das vinhas do mar? O sono se desfaz
no fim da linha, sensual linguagem que mal se pronuncia.
Cospem chuvas as chuvas, verdes migalhas sobre a paisagem.
Alguém fecha os olhos da noite, as feridas travadas dentro da
casca, inutilmente expostas.
ESSES UMBIGOS
Umbigo nenhum autoriza a mostrar-se tanto,
às vezes apenas esboçado. Umbigo de fina
redondez, bico engomado a abrir-se em asas
igual coroa de pequenas brasas.
Apenas umbigo, menos que as nádegas,
posto em oferenda. Tornar-se coroa de Eros
a se dividir em pedaços.
A máscara talhada em fios de curta
linguagem, e o que mais se corteja:
umbigos roxos, acasos secretos,
pudicas histórias em seus espaços,
é forçoso buscá-las. Os rosados se pronunciam
de fina graça, aos cuidados de cada palavra dada.
Paisagem e domínio sob o canto do ouro e prata
os incêndios de suas chamas, os umbigos delatam.
Imaculado nunca é o umbigo, nascido
assim de redondos talhes, e dá-se ao mar
e dá-se às areias, e dá-se aos punhais,
e mais a outros deuses que nunca sabemos.
MIGUEL JORGE é um escritor de língua portuguesa que precisa ser descoberto em Portugal. Nascido em Campo Grande (Mato Grosso do Sul, Brasil) e residente em Goiânia, conta na sua bibliografia com 26 (!) títulos publicados, todos com qualidade ímpar, em áreas tão distintas quanto o romance, o conto, a poesia, o teatro e a narrativa infanto-juvenil. Recebeu vários prémios, como o prestigiado “Machado de Assis”. Tem narrativas suas adaptadas ao cinema. Sobre a sua obra debruçaram-se já vários ensaístas do país-irmão, dos Estados Unidos da América, etc.. Um ensaio recente, por exemplo, compara a força e a novidade da sua ficção à que é conhecida na obra de Júlio Cortazar. Com tudo isto, é quase totalmente desconhecido em Portugal. Tanto quanto sei, tem por cá publicados dois ou três poemas numa antologia de poesia brasileira lançada pelas edições Alma Azul e organizada por Álvaro Alves de Faria – e alguns textos que Nicolau Saião e eu demos à estampa no Fanal... Até quando?
Os dois poemas que hoje ofereço aos leitores foram retirado do seu mais recente livro, Marbrasa, comemorativo dos seus 40 anos de vida literária.
Eu,
comovido a Oeste
(crónica de José do Carmo Francisco)
Não, caros leitores. Não se trata de uma nova leitura do livro homónimo de Vitorino Nemésio. Eu comovido a Oeste sou eu mesmo. Eu, obscuro cronista numa manhã fria de Lisboa, pouco tempo depois de ter descoberto num alfarrabista o livro Litoral a Oeste de José Loureiro Botas. E fiquei comovido porque este livro agora por mim recuperado tem muito a ver com a minha educação sentimental. Alguns dos contos deste volume com capa de Manuel Ribeiro de Pavia estavam no livro de leitura do Ciclo Preparatório quando eu tinha dez anos. E fiquei comovido porque vi de novo aquelas figuras dos contos ao meu lado: a Tia Morganiça, o Pichelim, a Rita Rebocha, a Ana Fateixa, a Jacinta Caréoa, a Maria Rita, a Raposinha, a Leandra. Era gente que saltava das páginas dos livros e vinha para o pé de nós, misturando as suas vidas e as suas lágrimas com as ondas do mar na Praia da Vieira. A própria história do autor do livro, filho de gente humilde que começou a trabalhar com 12 anos e abriu uma pastelaria onde se juntavam escritores me comoveu. Eu próprio sou filho de gente humilde, comecei a trabalhar com 15 anos e tirei o Curso Comercial como o José Loureiro Botas. Também a mim me disseram que não tenho nome para ser escritor como se a qualidade da escrita dependesse do bilhete de identidade de cada um. Também fiquei comovido pelo prefácio de Tomás Ribeiro Colaço com palavras que deveriam estar à vista de todos em todas as redacções de todos os jornais e de todas as rádios: «Continue. Escreva mais, como sentir. Escrever é semear. É esperar, insistir. É amadurecer. É querer. É atirar pedaços de alma para uma folha de papel. É sofrer em silêncio e pensar em voz alta. É demandar perfeições que não se atingem, procurar ecos que não se ouvem, erguer castelos que ficarão desabitados, cantar ansiosas canções que ninguém escuta ou entende. Mas o espírito é terra abençoada à qual nunca se atira em vão uma semente viva; apenas sucede às vezes ser lento o germinar... E quando o escritor assim escreveu, sucede um dia que outros encontrem na sua obra todos os mundos que ele criou enquanto a servia» Fim de citação.
(na imagem: retrato de José Loureiro Botas - Vieira de Leiria, 1902 / Lisboa, 1963)
O SIGNIFICANTE E O SIGNIFICADO
Imagine que num destes dias toma conhecimento de que um cidadão residente numa localidade vizinha da sua o(a) acusou publicamente de ter praticado actos indignos ou ilegais. Suponha ainda que o dito senhor o fez através da comunicação social. Não interessa para o caso se os factos que lhe seriam atribuídos constituiriam uma verdade ou uma mentira. Para o nosso cenário, interessa apenas que você ficaria irritado ou ofendido com a situação e desejaria decerto resolvê-la. Que meios usaria? Procuraria repor a sua verdade, provando que os factos jamais haviam ocorrido ou teriam sucedido de outro modo? Processaria o autor da eventual difamação, procurando que a Justiça o castigasse? Ou arregimentaria amigos, vizinhos e outras pessoas devidamente remuneradas com o intuito de invadirem a localidade onde habitaria o acusador? Já na terra dele, quereria matá-lo ou ameaçá-lo-ia de morte? Procuraria castigar todos os moradores da urbe, quer tivessem algo a ver com o assunto ou não? Não é preciso ser mago para adivinhar a sua resposta. Usando práticas civilizadas e boas regras de convivência, certamente optaria por uma das duas primeiras opções – e rejeitaria a última, por lhe parecer típica de outras épocas menos cordatas.
Na minha opinião, o perigoso caso da publicação dos cartoons com a figura de Maomé na imprensa europeia é muito semelhante ao cenário que acabei de traçar consigo.
Usando a inalienável liberdade de expressão que lhe é concedida pela lei, um jornal resolveu publicar imagens satíricas que visam criticar alguns membros de uma comunidade religiosa. Essa comunidade não gostou do que viu. Não tentou, tanto quanto se sabe, negar os factos caricaturados. Ao que parece, quis que os tribunais levassem o autor dos desenhos a julgamento. Como a Justiça não deu provimento à queixa (situação normal num Estado de Direito), resolveu mergulhar meio-mundo no caos, promovendo manifestações (normais, não veiculassem ameaças muito graves à vida dos cidadãos de todos os países que ousaram publicar as caricaturas, não fossem muitas delas manipuladas por interesses que nada têm a ver com a religião e muito têm a ver com desejos de hegemonia de alguns políticos que abusam do nome de Maomé e de Alá como outros, noutros tempos, abusaram do de Cristo) e actos criminosos de vandalismo, como o assalto e a destruição das sedes de algumas embaixadas e de outros organismos.
Justa ou injustamente, os muçulmanos têm o direito de estar indignados com as representações caricaturais do seu profeta; têm ainda o direito de manifestar o seu repúdio, utilizando meios admissíveis numa civilização justa e plural. Têm porém o dever de compreender o que representam as caricaturas e, caso encontrem argumentos para tal, demonstrarem que o pensamento por elas veiculado se baseia em factos e fundamentos errados.
Quem caricatura Maomé não representa, como é óbvio, o profeta. (Numa caricatura, qualquer personagem importante de uma religião não se representa a si própria; torna-se símbolo de uma confissão religiosa, seja ela cristã, muçulmana ou budista.) A sátira e a crítica do caricaturista não se dirigem, assim, contra Maomé, mas contra os membros da comunidade que simboliza.
Não vi todas as caricaturas publicadas na Dinamarca. Aquelas que me foi dado analisar são apenas uma dura crítica ao terrorismo que vem assolando múltiplos países, realidade hedionda que ninguém, muito menos os muçulmanos, consegue esconder. Representar Maomé com uma bomba a servir de turbante não constitui portanto uma crítica ao profeta, mas tão só ao que ele representa, um islamismo dito “radical” ou “fundamentalista”. A maioria dos maometanos será gente de paz. Mas, quer se goste quer não, existe um número crescente de muçulmanos que – como “mártires”, em troca de um “paraíso” em que acreditam – matam os seus semelhantes, invocando “mandamentos” do profeta expressos, dizem, no Corão. Infelizmente, ainda não vimos nas ruas milhares de islâmicos afirmando que estes seus irmãos invocam o nome de Alá em vão para justificarem actos criminosos. Enquanto isso não acontecer, todos os seus protestos contra as caricaturas soarão a falso.
Imagine que num destes dias toma conhecimento de que um cidadão residente numa localidade vizinha da sua o(a) acusou publicamente de ter praticado actos indignos ou ilegais. Suponha ainda que o dito senhor o fez através da comunicação social. Não interessa para o caso se os factos que lhe seriam atribuídos constituiriam uma verdade ou uma mentira. Para o nosso cenário, interessa apenas que você ficaria irritado ou ofendido com a situação e desejaria decerto resolvê-la. Que meios usaria? Procuraria repor a sua verdade, provando que os factos jamais haviam ocorrido ou teriam sucedido de outro modo? Processaria o autor da eventual difamação, procurando que a Justiça o castigasse? Ou arregimentaria amigos, vizinhos e outras pessoas devidamente remuneradas com o intuito de invadirem a localidade onde habitaria o acusador? Já na terra dele, quereria matá-lo ou ameaçá-lo-ia de morte? Procuraria castigar todos os moradores da urbe, quer tivessem algo a ver com o assunto ou não? Não é preciso ser mago para adivinhar a sua resposta. Usando práticas civilizadas e boas regras de convivência, certamente optaria por uma das duas primeiras opções – e rejeitaria a última, por lhe parecer típica de outras épocas menos cordatas.
Na minha opinião, o perigoso caso da publicação dos cartoons com a figura de Maomé na imprensa europeia é muito semelhante ao cenário que acabei de traçar consigo.
Usando a inalienável liberdade de expressão que lhe é concedida pela lei, um jornal resolveu publicar imagens satíricas que visam criticar alguns membros de uma comunidade religiosa. Essa comunidade não gostou do que viu. Não tentou, tanto quanto se sabe, negar os factos caricaturados. Ao que parece, quis que os tribunais levassem o autor dos desenhos a julgamento. Como a Justiça não deu provimento à queixa (situação normal num Estado de Direito), resolveu mergulhar meio-mundo no caos, promovendo manifestações (normais, não veiculassem ameaças muito graves à vida dos cidadãos de todos os países que ousaram publicar as caricaturas, não fossem muitas delas manipuladas por interesses que nada têm a ver com a religião e muito têm a ver com desejos de hegemonia de alguns políticos que abusam do nome de Maomé e de Alá como outros, noutros tempos, abusaram do de Cristo) e actos criminosos de vandalismo, como o assalto e a destruição das sedes de algumas embaixadas e de outros organismos.
Justa ou injustamente, os muçulmanos têm o direito de estar indignados com as representações caricaturais do seu profeta; têm ainda o direito de manifestar o seu repúdio, utilizando meios admissíveis numa civilização justa e plural. Têm porém o dever de compreender o que representam as caricaturas e, caso encontrem argumentos para tal, demonstrarem que o pensamento por elas veiculado se baseia em factos e fundamentos errados.
Quem caricatura Maomé não representa, como é óbvio, o profeta. (Numa caricatura, qualquer personagem importante de uma religião não se representa a si própria; torna-se símbolo de uma confissão religiosa, seja ela cristã, muçulmana ou budista.) A sátira e a crítica do caricaturista não se dirigem, assim, contra Maomé, mas contra os membros da comunidade que simboliza.
Não vi todas as caricaturas publicadas na Dinamarca. Aquelas que me foi dado analisar são apenas uma dura crítica ao terrorismo que vem assolando múltiplos países, realidade hedionda que ninguém, muito menos os muçulmanos, consegue esconder. Representar Maomé com uma bomba a servir de turbante não constitui portanto uma crítica ao profeta, mas tão só ao que ele representa, um islamismo dito “radical” ou “fundamentalista”. A maioria dos maometanos será gente de paz. Mas, quer se goste quer não, existe um número crescente de muçulmanos que – como “mártires”, em troca de um “paraíso” em que acreditam – matam os seus semelhantes, invocando “mandamentos” do profeta expressos, dizem, no Corão. Infelizmente, ainda não vimos nas ruas milhares de islâmicos afirmando que estes seus irmãos invocam o nome de Alá em vão para justificarem actos criminosos. Enquanto isso não acontecer, todos os seus protestos contra as caricaturas soarão a falso.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
O poeta José do Carmo Francisco faz hoje 55 anos. Com um abraço de parabéns ao escritor, “Estrada do Alicerce” deixa aos seus leitores um poema de sua autoria, publicado no livro 1983 um resumo em 1991 e intitulado
A LUZ DUM SONHO
Posso desenhar no ar
Com lápis cheio de luz
O peso dum regresso
Limite da natureza
Será não poder voar
Senão o voo de metal
Asas curtas de falcão
Se as tivesse voaria
Perdido na luz do céu
O tempo que se rasga
Na força do vento
Não é tempo perdido
Fica sempre um resto
Falcão mecânico a voar
Gaivota de metal sem voz
Quem se senta e dorme
Não vê o outro céu
Nem sabe da chuva nas asas
O prazer da velocidade
Não é ainda o paraíso
Mas é quase a perfeição
A tensão nas asas
Diminui aos poucos
Na inclinação do sonho
A glória maior do voo
Entre a neblina e a chuva
É chegar à claridade
Assim se perde a luz
Na espuma das nuvens
Entre o sonho e o olhar
Será só acrobacia
A fronteira indefinida
Entre o sonho e o olhar?
O poeta José do Carmo Francisco faz hoje 55 anos. Com um abraço de parabéns ao escritor, “Estrada do Alicerce” deixa aos seus leitores um poema de sua autoria, publicado no livro 1983 um resumo em 1991 e intitulado
A LUZ DUM SONHO
Posso desenhar no ar
Com lápis cheio de luz
O peso dum regresso
Limite da natureza
Será não poder voar
Senão o voo de metal
Asas curtas de falcão
Se as tivesse voaria
Perdido na luz do céu
O tempo que se rasga
Na força do vento
Não é tempo perdido
Fica sempre um resto
Falcão mecânico a voar
Gaivota de metal sem voz
Quem se senta e dorme
Não vê o outro céu
Nem sabe da chuva nas asas
O prazer da velocidade
Não é ainda o paraíso
Mas é quase a perfeição
A tensão nas asas
Diminui aos poucos
Na inclinação do sonho
A glória maior do voo
Entre a neblina e a chuva
É chegar à claridade
Assim se perde a luz
Na espuma das nuvens
Entre o sonho e o olhar
Será só acrobacia
A fronteira indefinida
Entre o sonho e o olhar?
Antologia “Fanal”
NO CENTENÁRIO
DE AGOSTINHO DA SILVA
No seu número 9, editado a 26 de Janeiro de 2001, o suplemento “Fanal” resolveu homenagear Agostinho da Silva. Neste dia 13 de Fevereiro, se fosse corporalmente vivo, o filósofo e escritor faria 100 anos. Lembrando o amigo de quem recebi cartas que um dia publicarei, reproduzo hoje no “Estrada do Alicerce” quer o apontamento que então subscrevi com Nicolau Saião quer um poema de Agostinho.
UMA FOLHINHA DE VEZ EM QUANDO...
De vez em quando, num tempo que nos parece já distante e perdido numa certa neblina, Agostinho da Silva – o Professor Agostinho da Silva, viajeiro, estudioso, filósofo das sete partidas do mundo e fundador de universidades e fraternidades humanas – mandava-nos uma folhinha acompanhada frequentemente por um cartão escrito na sua letra quase críptica.
Era uma alegria recebê-las, evidentemente. E era evidente um gosto lê-las porque, para além dos temas recorrentes que o preocupavam, vinha sempre com elas o sinal de poesia e a atenção firme do confrade solidário. Aqui deixamos uma delas, de 91.
Com apreço, com saudade – porque gostaríamos de o ter neste milénio agora começado.
POEMA DO LUÍS AO PADRE ANTÓNIO
Eu bem te vi, Vieira, ler meu livro
com devidos cuidados pois o canto
não agradava muito aos companheiros
que ainda aí contigo estão no céu,
aquele em que eu narrei como é que a deusa
inventou para os nautas que voltavam
das Índias descobertas ilha bela
onde podiam descansar os corpos
e libertar as almas da prisão
de quem cercado está de espaço e tempo.
Uma razão seria não gostarem
da maneira por que eles se livravam
de todo o pesadelo que dá corpo
pois só assim podiam ouvir eles
a deusa que criava a própria vida,
e foi no fim o que ela encomendou,
que se dessem à vida criativa
quando ao seu Portugal regressassem.
E tu só alargaste este conselho,
que os gregos não seguiram apesar
de toda a paciência que tiveram
com a filosofia ou os mistérios,
o de que só criando se livravam
de serem personagens de tragédia
ou de comédia, o que é mais que pior,
o de criarem vida, pois poetas
somos nós todos quando à vida vimos.
Achaste ser pequena a deusa grega
para conselhos dar à forte gente
e lhe disseste que só Deus podia
vir lá do reino certo a nossas mentes,
desde que livres nós de nosso corpo
por outras formas que não são as minhas
mas para ti, António, são as justas,
para ti, padre, e para a Companhia.
Guerreiro e monge foste, pois, amigo,
eu marinheiro e monge, à minha moda,
sem negar-me a qualquer dos meus deveres
num e noutro sector, e bem cumpridos.
No campo que escolheste para seres
ou para o qual te escolheu teu Deus,
inteiro foste o que és, dever primeiro,
mesmo nas manhas de que rei sabia.
O teu renome durará que tempos,
o meu além do tempo alcançará.
E sabes tu porquê? Porque tu foste
sempre igual a ti mesmo e nada mais
quando o Deus que eu aceito é sempre o mesmo
e sempre diferente do que julgam,
ninguém, por isso, pode defini-lo.
Se marinheiro viam no Luís,
era só monge o que ele estava sendo,
se monge me supunham, logo viam
como eu ia sair-lhes marinheiro.
Tu foste sempre igual e definido,
eu sempre desigual, indefinido,
e mais perto de Deus do que julgaste.
UMA APROXIMAÇÃO À POESIA
DE JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Comemorando os 25 anos de vida literária de José do Carmo Francisco, as edições Mastigadores do Mundo acabam de lançar um livro - José do Carmo Francisco, uma aproximação - dedicado à poesia deste autor, nascido no concelho das Caldas da Rainha em 1951 e galardoado em 1981 com o Prémio Revelação de Poesia APE. Organizado pelo subscritor destas linhas, conta com um ensaio de sua autoria intitulado "Representações da Memória na Poesia de José do Carmo Francisco", a que se seguem uma interessantíssima entrevista com o poeta, uma cronologia por ele desenvolvida e uma antologia dos seus poemas. A obra conta ainda com uma introdução assinada pelo poeta e ensaísta António Cândido Franco.
O livro pode ser pedido à Travessa de São Pedro, 9, 4º esquerdo - 1200-432 Lisboa.
VOZES DE ESPANHA
ANTONIO RESECO
Antonio Reseco González (Villanueva de la Serena, Badajoz, 1973) acaba de publicar El Otoño Cotidiano, na colecção Litera Poesía, editada na sua cidade natal. Deu a lume, antes deste diário poético, Jardín Buscado (2000), Un Lugar Conocido (2002) e Anotaciones del Viaje (2005). Deste seu novo livro, traduzido para catalão pelo dramaturgo Emili Baldellou, aqui ficam duas páginas:
ANTONIO RESECO
Antonio Reseco González (Villanueva de la Serena, Badajoz, 1973) acaba de publicar El Otoño Cotidiano, na colecção Litera Poesía, editada na sua cidade natal. Deu a lume, antes deste diário poético, Jardín Buscado (2000), Un Lugar Conocido (2002) e Anotaciones del Viaje (2005). Deste seu novo livro, traduzido para catalão pelo dramaturgo Emili Baldellou, aqui ficam duas páginas:
19 de noviembre
La luz posee también sus argumentos.
Bajo el compás de la sobremesa, se subrayan los tonos de los objetos; el sillar, por ejemplo, que nos mira y nos recuerda, que nos sumerge en su lago de historias e batallas, que nos dirige al limo insalvable del olvido. Abordo algunos años después el mismo casco antiguo por donde se adentraba el fragor de tanta juventud y donde las monótonas lecciones de Derecho ablandaban su cuerpo estricto.
Ninguno está de los de antes.
Suenan pasos huecos, imaginario rosario de cabalgaduras, como inequívoco signo de la memoria cansina. Los mampuestos de cada rincón están habitados por nombres propios que, un buen día, dejan de usarse, se ocultan, hibernan y reaparecen, de pronto, recobrando su voz de acero.
*****
30 de noviembre
Los tejados nos engañan. Su quietud parece llenarnos las manos de espera. Repiten una crónica aprendida, con su musgo nuevo y su color, verde virgen. Aguardar, como siempre, la palabra de renuncia que esconde quien calla.
Por los canalones, con apariencia de savia estrenada, corre un hilo de agua. Sabemos desde los sofistas que todo es tránsito, dirección, deterioro. Inclusive la humedad reciente.
Un gato me sigue con la mirada.
Descubierta la indiscreción, detiene su paseo errante.
Abajo, en el patio de luz, las baldosas mojadas que respiran.
El empeño de permanecer es el empeño en naufragar. Donde se detiene el cambio que nos nace y nos muere?
Desde los sofistas lo sabemos.
ENCONTRO
Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
“Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956”
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje, salvo erro, no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
“Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]”
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.
(na imagem: pintura de Manuel D' Assumpção)
VOZES DO BRASIL
OZIAS FILHO
Ozias Filho, nascido no Rio de Janeiro em 1962, vive em Portugal há 14 anos. Depois de Poemas do Dilúvio (Alma Azul, 2001), chega-nos agora o seu segundo livro de poemas, Páginas Despidas, saído na colecção Pasárgada, publicada pela Associação Ardósia Cultural. Desde volume, destacamos os poemas que aqui apresentamos:
VERDADE SUBMERSA
trabalhar incessantemente a mentira da palavra
o discurso viola a abstracção
da boca que o pronuncia
a língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulo
pelo encantador de serpentes
enquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto
ILHAS FLUTUANTES
um caminho sem volta
quando nele se embarca
sabe-se de onde se parte
até ao momento em que se parte
pois que no instante seguinte
o ponto de partida
vira portos de fantasmas
casas de outros outrora sua casa
OZIAS FILHO
Ozias Filho, nascido no Rio de Janeiro em 1962, vive em Portugal há 14 anos. Depois de Poemas do Dilúvio (Alma Azul, 2001), chega-nos agora o seu segundo livro de poemas, Páginas Despidas, saído na colecção Pasárgada, publicada pela Associação Ardósia Cultural. Desde volume, destacamos os poemas que aqui apresentamos:
VERDADE SUBMERSA
trabalhar incessantemente a mentira da palavra
o discurso viola a abstracção
da boca que o pronuncia
a língua (precoce) permanece hipnotizada no seu túmulo
pelo encantador de serpentes
enquanto a verdade é só saliva no fundo do cesto
ILHAS FLUTUANTES
um caminho sem volta
quando nele se embarca
sabe-se de onde se parte
até ao momento em que se parte
pois que no instante seguinte
o ponto de partida
vira portos de fantasmas
casas de outros outrora sua casa
Antologia “Fanal”
CARLOS GARCIA DE CASTRO
Bolo-conforto
Ficamos aqui bem neste pousio.
- A chuva há-de voltar numa enxurrada à solta,
de madrugada, coração paciente.
Quem mais há-de saber para aqui ficar?
Espaldar duma cadeira onde me sento
de alerta no meu quarto a recordar.
Ficamos aqui bem neste pousio.
- A chuva há-de voltar numa enxurrada aos corpos.
Quantos já são os anos e as nervuras?
- cadeira do espaldar onde me sento
ao canto, deste quarto, coração paciente.
E para o depois da morte, que fazer
da nossa cama – esta! que aqui fica?
e mais a tal cadeira com o seu espaldar,
onde me sento alerta a recordar.
A chuva há-de voltar. A chuva é sempre solta.
Ficamos aqui bem neste pousio.
Deixa que tudo seja dimensão.
Que mais interessa do que vai ficar?
(nº 0, 14/04/2000; na imagem, quadro de Nicolau Saião)
O "ESPÍRITO SANTO" DO FUTURO
Como foi anunciado com abundância, o Banco Espírito Santo mudou a sua imagem. Alterou o "verde sério" para um "verde de futuro", segundo afirmam. Verde por verde, prefiro o da esperança... mas adiante.
Entretanto, reparei há poucos dias noutra alteração. O "espírito" do banco passou a escrever-se "espirito", assim mesmo, sem acento. Como não creio numa incapacidade ortográfica dos publicitários que criaram a nova imagem ou do banqueiro promotor, consigo apenas vislumbrar uma dimensão "filosófica" (digamos...) nesta alteração.
Um espírito sem acento é um espírito amputado na sua integridade, como é bom de ver. Deste modo, das duas uma: ou o sr. Salgado resolveu assumir que o espírito do seu banco não é assim tão santo quanto por vezes nos quer fazer crer, ou então resolveu anunciar subrepticiamente uma profecia para o futuro (lembremos que o verde novo do banco é "verde futuro"...): a erosão do Espírito Santo (talvez desejada pela administração da instituição bancária), para que a Matéria vença de vez a guerra que iniciou há muito tempo contra a Transcendência.
Como foi anunciado com abundância, o Banco Espírito Santo mudou a sua imagem. Alterou o "verde sério" para um "verde de futuro", segundo afirmam. Verde por verde, prefiro o da esperança... mas adiante.
Entretanto, reparei há poucos dias noutra alteração. O "espírito" do banco passou a escrever-se "espirito", assim mesmo, sem acento. Como não creio numa incapacidade ortográfica dos publicitários que criaram a nova imagem ou do banqueiro promotor, consigo apenas vislumbrar uma dimensão "filosófica" (digamos...) nesta alteração.
Um espírito sem acento é um espírito amputado na sua integridade, como é bom de ver. Deste modo, das duas uma: ou o sr. Salgado resolveu assumir que o espírito do seu banco não é assim tão santo quanto por vezes nos quer fazer crer, ou então resolveu anunciar subrepticiamente uma profecia para o futuro (lembremos que o verde novo do banco é "verde futuro"...): a erosão do Espírito Santo (talvez desejada pela administração da instituição bancária), para que a Matéria vença de vez a guerra que iniciou há muito tempo contra a Transcendência.
H. P. LOVECRAFT
(traduções de NICOLAU SAIÃO)
1. O LIVRO
O lugar era escuro e poeirento, meio perdido
Num labirinto de vielas junto aos molhes,
Cheirando a coisas raras trazidas de outros mares,
Envolto em estranhas névoas agitadas p’lo vento.
Uns vidros em losango, que a geada e o fumo velavam
Deixavam entrever pilhas de livros, como torcidas árvores
Desde o sobrado ao tecto – putrefacto amontoado
De sapiência antiga a baixo preço. Enfeitiçado
Entrei, e dum montão cheio de teias
Um cartapácio tirei e ao acaso o folheei,
Estremecendo ao ler palavras raras que pareciam
Esconder de olhares humanos um prodigioso segredo.
E então, quando o vendedor astuto em volta quis achar
Apenas um eco de gargalhadas pude encontrar.
17. UMA RECORDAÇÃO
Era um lugar de grandes estepes e mesetas rochosas
Que se estendiam sem limites sob a noite estrelada,
Com fogos de acampamento que iluminavam debilmente
Manadas de bestas hirsutas cujos chocalhos tilintavam.
Ao sul, na distância, a planície alargava-se e descia
Até uma escura muralha correndo em ziguezague
Como uma imensa jibóia das idades primevas
Que o tempo infinito gelara e petrificara.
Eu tiritava estranhamente no ar frio e rarefeito,
Perguntando-me aonde estava e como havia ali chegado,
Quando uma figura embuçada, na contraluz da fogueira
Se levantou e se acercou, tratando-me pelo nome.
E ao mirar aquela face morta debaixo da capuz,
Perdi toda a esperança – pois tinha compreendido
19. OS SINOS
Ano após ano ouvi, sumido e ao longe
O som grave dos sinos
Que o vento negro da meia-noite transportava.
Dobres que de nenhum campanário pareciam vir
Uns estranhos repiques – eram só o que achava.
Através dum enorme vazio tinham voado.
Em sonhos e lembranças uma pista busquei,
Nos carrilhões que minhas visões albergam eu pensei;
Os da plácida Innsmouth, onde as gaivotas brancas se demoram
Planando em volta da velha torre duma igreja
Que em tempos bem frequentei.
Perplexo, aquelas notas longínquas eu ouvia tombar,
Mas numa noite de Março a fria chuva que pingava
As portas da memória me fez de novo franquear
Até às velhas torres onde um louco badalar soava.
Como dobrava... Desde as sombrias correntes que através
Dos vales profundos manam e se derramam
No leito morto do mar.
(in Os Fungos de Yuggoth, Black Sun Editores, 2002)
Antologia “Fanal”
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
25. O sol acaba de brilhar e apagou-se
num instante apenas só pr’a mim.
E apagou-se no véu de água em gás
que cobre nuvens definidas
feitas de água nas três fases:
sólida, mais abaixo dominando, a líquida e a gasosa
(é de invocar a lei das Fases, de Gibbs, creio,
mas a químico-física não serve bem o papel).
Olha! Afinal voltou a brilhar!
Era de esperar mas não tão cedo.
Ai! Bom Sá de Miranda
“Oh cousas todas vãs, todas mutáveis...”
não sei, se é bem assim que ele escreve
- e continuava,
“Passa mais um dia, outro dia,
Incertas mais que ao vento as naves,
E tudo o mais renova, isto é sem cura”
Que diabo de memória em adulterar a citação.
Se quiser esmiuçar o poetar do humanista
exprimindo um vulgaríssimo desalento
concluo também que a ideia-imagem expressa
é de uma vulgaridade inultrapassável...
Pois sim! mas tem-me consolado
mais do que uma vez os maus bocados!
52. Ainda não me foi dado
cristalizar o que é já soluto
No universal solvente:
A água-mãe.
Não encontrando a palavra-coisa
cristal de oculta simetria
Vou escrevendo estrofes como esta
que poderia conter todo o que veramente
e, afinal, ocultamente, o contém.
Como a semente contém a flor.
(Poemas enviados ainda em vida do autor, mas publicados já postumamente no nº 1, 19/05/2000)
JOSÉ BLANC DE PORTUGAL
25. O sol acaba de brilhar e apagou-se
num instante apenas só pr’a mim.
E apagou-se no véu de água em gás
que cobre nuvens definidas
feitas de água nas três fases:
sólida, mais abaixo dominando, a líquida e a gasosa
(é de invocar a lei das Fases, de Gibbs, creio,
mas a químico-física não serve bem o papel).
Olha! Afinal voltou a brilhar!
Era de esperar mas não tão cedo.
Ai! Bom Sá de Miranda
“Oh cousas todas vãs, todas mutáveis...”
não sei, se é bem assim que ele escreve
- e continuava,
“Passa mais um dia, outro dia,
Incertas mais que ao vento as naves,
E tudo o mais renova, isto é sem cura”
Que diabo de memória em adulterar a citação.
Se quiser esmiuçar o poetar do humanista
exprimindo um vulgaríssimo desalento
concluo também que a ideia-imagem expressa
é de uma vulgaridade inultrapassável...
Pois sim! mas tem-me consolado
mais do que uma vez os maus bocados!
52. Ainda não me foi dado
cristalizar o que é já soluto
No universal solvente:
A água-mãe.
Não encontrando a palavra-coisa
cristal de oculta simetria
Vou escrevendo estrofes como esta
que poderia conter todo o que veramente
e, afinal, ocultamente, o contém.
Como a semente contém a flor.
(Poemas enviados ainda em vida do autor, mas publicados já postumamente no nº 1, 19/05/2000)
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