CRÓNICA(S) DO SÉCULO XX PORTUGUÊS


A antologia Crónica Jornalística – Século XX, organizada por Fernando Venâncio e editada há poucos anos pelo Círculo de Leitores é um livro imprescindível. Já antes devorara o volume dado a lume por Ernesto Rodrigues, com textos do século XIX. Mas este livro toca-nos de perto, sobretudo os textos nascidos depois de 1974 – que nos mostram o Portugal de esplendores e misérias em que todos vamos existindo.
Forte, cortante e luminoso, António José Saraiva (democrata até à raiz) desnuda uma revolução inepta e cobarde – e o país que dela nasceu. José Martins Garcia revela, com ironia, o fechamento e a violência da “democracia” existente em terras pequeninas. Luiz Pacheco relata-nos uma “jantarada” oferecida por Mário Soares a alguns escritores – expondo, com o desassombro e o humor cortante a que nos habituou, os ridículos de muito deles. Nuno de Bragança fala-nos de um “povo” que, embora “sereno”, não é politicamente “parvo”. Miguel Esteves Cardoso descreve Portugal como uma “república dos ananases”, onde a “burocracia convida os cidadãos a aldrabá-la, porque a alternativa à aldrabice é tão penosa, tão cara, tão morosa e tão chata”. Cáustico e irónico, Manuel António Pina desvenda os eufemismos utilizados pelos políticos, quando pretendem enganar os eleitores e/ou camuflar a acção de quem se serve do Estado para alimentar interesses particulares. Miguel Sousa Tavares desmonta o vazio chamado “revista feminina” que tem invadido o mercado de publicações. Viale Moutinho conta-nos como foi vítima da prosápia e da arrogância de um representante da classe dos poetastros. Fernando Dacosta dá-nos um murro no estômago, ao narrar o suicídio de um homem que “partiu para não ceder” à “ditadura de mercado”, que lança no desemprego pessoas válidas e competentes. Francisco José Viegas, num texto actualíssimo, escreve sobre o Bloco de Esquerda e o seu “folclore moderno”, que coloca “o acessório antes do essencial, a política do espírito antes da política real”, em questões como, por exemplo, a despenalização do aborto.
Mas este livro, crónica do século XX que todos os portugueses deviam ler, não se limita a compilar textos sobre a realidade portuguesa nascida depois da Revolução do Cravos. Nele podemos encontrar pérolas valiosas escritas por muitos dos vultos mais importantes e/ou mais conhecidos da Cultura do século XX: Pessoa, Almada, Proença, Aquilino, Régio, Irene Lisboa, Sebastião da Gama, Nemésio, Gomes Ferreira, Sena, Mourão-Ferreira, Araújo Correia, Mário Dionísio, Saramago, Rodrigues Miguéis, O’ Neill, Urbano, Luísa Dacosta, Maria Ondina Braga, Vergílio Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Guerra Carneiro, Agustina, Assis Pacheco, Cardoso Pires, António Osório, Mário de Carvalho, etc.. Como refere Fernando Venâncio, as cem crónicas que aí podemos apreciar e saborear são “impagáveis”, demonstrando “quanta agilidade mental, quanta inventiva, na feitura e na expressão, quanta finura e malícia, quanto domínio da persuasão e do divertimento, vão investidos num género tido, desde sempre, por marginal às artes sérias”.
Folheando as páginas desta antologia vêm ainda nosso encontro trechos lapidares, que nos fazem ver mais claramente o Portugal de 2007. Com duas delas termino: “O Estado português dá a impressão de uma tenda de louça onde entrou uma manada de toiros bravos.” (Aquilino Ribeiro, 1926); “As nossas dificuldades presentes (...) merecemo-las, moralmente. (...) Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.” (António José Saraiva, 1979).

1 comentário:

Anónimo disse...

Prendam o Ventura. É um subversivo. Em vez de dar mexericos ou lirismos apanascados,tão bonitos e politicamente correctos,dá artigos destes para atirar de pantanas a pátria socretina e companhia.
É uma vergonha. É um abuso.
...E já agora, parabéns.