Amadeu Baptista
vence Prémio Literário Oliva Guerra/ Sintra 2008
O original de poesia Doze Cantos do Mundo, de Amadeu Baptista, venceu o Prémio Literário Oliva Guerra – Sintra 2008, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. A distinção mereceu a unanimidade do júri, que analisou 83 originais concorrentes. O júri integrou os escritores Liberto Cruz, em representação da Associação Portuguesa de Críticos Literários, José Correia Tavares, em representação da Associação Portuguesa de Escritores, e Ricardo António Alves, em representação da Câmara Municipal de Sintra.
O Prémio Literário Oliva Guerra é anualmente patrocinado pela Câmara Municipal de Sintra e consiste, além da publicação em livro da obra vencedora, no montante de 5.000 euros. A entrega do prémio ocorrerá em data a anunciar pela autarquia de Sintra.
Amadeu Baptista - a quem o Estrada do Alicerce endereça publicamente os parabéns - nasceu no Porto em 1953, onde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade daquela cidade.É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português.Tem colaboração dispersa em jornais, revistas, antologias e livros colectivos, em Portugal e no estrangeiro, designadamente: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Roménia e Uruguai.Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Publicou os seguintes livros de poesia: As Passagens Secretas (1982), Green Man & French Horn (1985), Maçã (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), Kefiah (1988), O Sossego da Luz (1989), Desenho de Luzes (1997), Arte do Regresso (1999) (Prémio Pedro Mir – Revista Plural, na categoria de Língua Portuguesa, México, 1993), As Tentações (1999), A Sombra Iluminada (2000), A Noite Ismaelita (2000), A Construção de Nínive (2001), Paixão (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Sal Negro (2003), O Som do Vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro (2003), O Claro Interior (2004), (Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 2000), Salmo (2004), Negrume (2006), Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007) (2007), Outro Domínios (2008), (Prémio Literário Florbela Espanca, 2007), O Bosque Cintilante (2008) (Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007), Sobre as Imagens (2008) (Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008), Poemas de Caravaggio (2008) (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007). Recentemente foi galardoado com o Prémio Literário Edmundo Bettencourt – Cidade do Funchal, pelo original Os Selos da Lituânia e o Prémio Espiral Maior (Galiza/Espanha), pelo original Açougue.
Do original premiado divulgamos em pré-publicação:
GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1800)
Assim como há o cinismo,
há uma gramática do cinismo.
Cada mestre usa o seu
à luz do seu compêndio,
com forças à deriva,
e consubstanciando
o alarde da pintura
Tomemos o exemplo
da família real,
esta ou qualquer outra.
Se olharmos bem os rostos
vemos o que Deus
falha no mundo
– as insipiências
onde a criação é um malogro.
Mas o cínico sou eu,
embora o Príncipe
esteja talhado para a maldade,
com o corpo a três quatro,
olhando para trás,
sem profundidade,
mas a arrogância que é própria dos príncipes.
O Rei é uma amálgama de sucata,
que a idade sutura
e um certo ‘ai que não dói’,
que se escuta em toda a corte,
lhe lava as mãos
na promiscuidade,
enquanto acata as ordens da Rainha.
Esta, ao centro do painel,
é só os braços
que mostra por contraste
com a riqueza insultuosa do vestido,
paramentado de rendas espanholas
e formas que, há muito,
exercem a lascívia
a bom recato.
O mais são tétricas figuras,
que uma Princesa apoia colocando a altivez
em contraponto com gente impaciente pelo almoço
e as fatias de presunto quando a tarde
os puser a caminho do curral.
Lamento que a pintura não faça ouvir
os ruídos da rua,
o povo com os sacos de carvão sobre os ombros
e as putas com os ombros sobre os sacos de carvão.
Lá fora o mundo é a mais valia
do conjunto,
sendo que tudo está lubrificado
para que se note o estupro
e seja Deus, Nosso Senhor, crucificado.
E o cínico sou eu.
Por isso, à esquerda,
onde há ponto de luz
que a sombra alcança,
olho de esguelha o universo
e quase que parece que sorrio.
Não é verdade.
A esse canto,
onde fito como posso os que estão,
sendo que os de vejo de frente
e de joelhos,
queixando-se do reumático,
apenas conjecturo
como há aberrações
que podem tudo.
Passei por Moncloa
a um fim de tarde,
começava Maio
e dos campos desprendia-se
o odor sereno e violento
que há na terra.
E vi
como os massacres são, ainda,
o pão de cada dia,
por mais ou menos cínicas
que sejam as pinturas,
ou as armas estejam prontas para o abate.
E o meu coração
anotou tudo:
- a luz, sempre vital,
o pelotão de anónimos
e as suas vítimas,
a centelha de fogo, ou água,
no olhar do condenado.
E, já tendo visto tudo,
quero dizer,
já tendo visto em excesso
deste excesso de vergonha
sem vergonha,
aferi o meu lugar
na tábua rasa em que vivo,
e morro,
e, sem sonhos, durmo.
Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.
Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal
de redenção,
enquanto o povo
é à míngua que morre
e eu, cínico sendo,
página a página leio este compêndio
que os cínicos maiores que o meu cinismo
instituíram.
Pudesse eu regressar a Fuendetodos,
ou fazer pintura sacra,
cheia de entorses e nervos,
com o Cristo ladeado de ladrões,
como eu estou.
Provavelmente,
entre a maga vestida e a desnuda,
preferiria chorar
até ao fim do mundo,
chorar
e abrir as veias:
para que o sangue corresse
e a pintura tomasse um outro rumo
de cores,
difusas, se possível,
repartidas.
Mas eis que a doença chega
e a vivacidade se esvai,
e estou cego,
e totalmente surdo
e sou, assim, o cínico do retrato
a conferir ao mundo o mundo retratado
e os seus caprichos,
enquanto os desastres
e a guerra submeto
nas gravuras.
Já nem sei o que digo,
o tempo sobrevoa-me as têmporas
e onde estive não estou,
estando sempre
algures,
mais ano para a frente ou para trás,
mais cão ou menos cão nas telas,
mais cínico ou menos cínico
entre os cínicos.
O Príncipe, o Rei e a Rainha:
vesti-os de cores vivas
e, contudo, é de luto que está a minha arte,
porque, por esta comitiva,
nem para a eternidade
ressuscito.
Mas persisto.
Para isso é que o cinismo
recebe do cinismo
moedas de oiro,
e posso, quando posso,
com o branco de espanha
misturar azul cerúleo,
e ao verde-bétula
juntar óxido de ferro,
para que o esplendor da luz
seja o que é, na obra:
– fútil, sem glória,
como é cada guerra,
embora lute sempre,
e não lhes dê tréguas.
Este é meu tempo:
tomai e bebei.
Este é meu tempo,
tomai e comei.
Por mim, como sempre, estou
cheio de fome.
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