Rui Almeida
(homenagem a Cristovam Pavia)
I.
De um lado
a sombra delicada dos que choram.
A tristeza virginal cosida ao forro do casaco
e os dedos viciados na textura
do tecido do interior dos bolsos.
Mergulhamos na terra
que já não nos dá pão ou sepultura.
Lá dentro
dizem qualquer coisa que nos ensina a ser velozes,
a estar perto da cegueira.
Depois calam-se dentro da violência
e do sussurro tremido.
Somos nós quem mente
quem abandona os ossos para não morrer,
antes mesmo de saber contar pelos dedos
a secura da cara que antecipa a nudez.
O golpe mais viável é o desespero.
Tudo o resto fere a sensibilidade da pele
sujeita ao frio que queima.
Como são belos os frutos
roubados das mãos dos suicidas.
II.
Do outro
o riso abundante chovendo sobre os mortos.
Amanhã não estou cá e não sei se volto.
Todo o gozo pode ser devolvido
e marcado com o sinal da virtude.
O zelo da coragem não compensa
e só a resposta dos que esperam pode salvar.
Falo das ruas onde não habita ninguém
mas não sou compreendido.
É como se todos desconhecessem
que tudo o que se pode comparar ao mar
permanece inteiro nas vísceras
e está acessível ao rubor da pele.
Os defuntos agonizam ainda
sem se lembrarem do sangue de quando viviam.
Não há qualquer solenidade nisto,
é apenas um veneno que serve para afiar facas
nos dedos dos desempregados;
um licor de calma que alivia
para que não se ausentem do registo.
A chuva é branca e suspende os olhos
no elogio do corpo reclinado sobre a aparência.
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