Nicolau Saião

CRISTOVAM PAVIA

a António Luís Moita

Entre mim e as casas estão as árvores e a ribeira
e milhões de anos feitos para a Lua e as estevas.
Essa ribeira que corre sabe-se lá para onde
talvez p'ra São Mamede, talvez p'ra esses campos
de Espanha - vida minha! - que jamais conhecerei.
Dionísio teria olhado o vale e a montanha
quando neles se ocultava o rasto de animais
depois desaparecidos. Pensamentos e memórias
entre um olhar e um silêncio, como o odor
do fumo dos lares ao fim da tarde.
Serena é a madrugada, despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem vela
- pastor ou aguadeiro
homem que na terra coloca a semente do tempo
ou do trigo fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristaliza a inocência e a perfídia
as abelhas são mais que uma simples razão
do Universo gerando recordação e inquietude
de anos e anos a vir: são o retrato
multiplicado da vida que fugiu
quando a nossa voz íntima se cala. Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós, do solitário
cão que me adorou na infância:
o contorno das palavras que escrevi e que despertam
as sombras do futuro e do passado. E lá entre segredos
de amigos, de quimeras, das ofertas
que nem ousamos preferir
- gramínea, barco, gazela, primavera -
e que por isso são nossas
mais que tudo o que foi
o nosso quinhão misericordioso
hei-de lembrá-las sempre, como puras
e felizes sombras sobre o rio
Sobre as casas que vi como as imagens

que tive e que inventei.

(in Os Olhares Perdidos, Universitária Editora)

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