HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA
Faz hoje 40 anos que morreu em Lisboa Cristovam Pavia, aí nascido em 7 de Outubro de 1933. Estes dois poemas, da autoria do coordenador deste blogue e retirados do seu livro inédito Vale dos Homens, são os primeiros passos de uma homenagem alargada que aqui se publicará em primeira mão, visando uma futura edição em livro. Enquanto a poesia do filho de Francisco Bugalho não sai do limbo onde tem sido colocada pelo esquecimento dos editores portugueses de poesia - é mínimo que lhe devemos.
[entre Francisco Bugalho e Cristovam Pavia – 1968]
não pude, meu filho, acolher no peito
a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário
para aumentares comigo o fogo
em que fui depositando a minha sede.
perdeste a chave, eu sei. mas fertilizaste com a tua mão
o rosto dessa escultura virada a nascente.
na montanha, a água do tanque ficou límpida.
nela entalhaste o oiro e a agonia. o medo
desfez a porta. colocou sobre os músculos o lintel
dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.
o líquido assentou no coração.
só então pudeste beber desse cálice
esculpido pelo mar e pela sombra.
*
recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. procurei
nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração.
o campo enegrecia.
fui escutando, quando não conseguia vigiar,
essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia?
sem olhos, o verbo toldava o movimento.
a água corria entre os lençóis postos de novo.
colei retratos de gente. desenhei mapas, paisagens e rostos.
anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo.
contudo, o campo enegrecia.
transportei a humanidade inteira
no peso dos ossos e da carne.
atravessei a corrente transportando
sobre os ombros a viagem e o desespero.
em silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas.
espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne
para com ela fertilizar o vale e a ribeira.
sobre o arco registei o cântico dos mortos.
procurei uma paisagem para alimentar o coração.
diante da imagem tive de novo o corpo reunido.
o sangue desenhou no mármore
o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.
[p/ Cristovam Pavia]
escreve, sempre de novo,
o vento entre os pinheiros,
uma chuvada, antes da divisão da terra.
no sótão, a mão direita
(os dedos demasiado longos).
fragmentos de um texto circundam
a abóbada, o comboio, o coração.
plantaram carvalhos na encosta
dentro da viagem
na fresta virada a poente.
a legenda continua incompleta.
sob as letras nascem letras ainda mais antigas.
desapareceram as paredes,
a cal onde o texto surgiria.
vizinhos na infância,
resguardaram teu sangue nos limites do campo:
o sopro que escreveste nas ruínas,
o odor que sempre nos iluminou.
[Castelo de Vide, ruínas de S. Paulo]
Faz hoje 40 anos que morreu em Lisboa Cristovam Pavia, aí nascido em 7 de Outubro de 1933. Estes dois poemas, da autoria do coordenador deste blogue e retirados do seu livro inédito Vale dos Homens, são os primeiros passos de uma homenagem alargada que aqui se publicará em primeira mão, visando uma futura edição em livro. Enquanto a poesia do filho de Francisco Bugalho não sai do limbo onde tem sido colocada pelo esquecimento dos editores portugueses de poesia - é mínimo que lhe devemos.
[entre Francisco Bugalho e Cristovam Pavia – 1968]
não pude, meu filho, acolher no peito
a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário
para aumentares comigo o fogo
em que fui depositando a minha sede.
perdeste a chave, eu sei. mas fertilizaste com a tua mão
o rosto dessa escultura virada a nascente.
na montanha, a água do tanque ficou límpida.
nela entalhaste o oiro e a agonia. o medo
desfez a porta. colocou sobre os músculos o lintel
dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.
o líquido assentou no coração.
só então pudeste beber desse cálice
esculpido pelo mar e pela sombra.
*
recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. procurei
nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração.
o campo enegrecia.
fui escutando, quando não conseguia vigiar,
essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia?
sem olhos, o verbo toldava o movimento.
a água corria entre os lençóis postos de novo.
colei retratos de gente. desenhei mapas, paisagens e rostos.
anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo.
contudo, o campo enegrecia.
transportei a humanidade inteira
no peso dos ossos e da carne.
atravessei a corrente transportando
sobre os ombros a viagem e o desespero.
em silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas.
espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne
para com ela fertilizar o vale e a ribeira.
sobre o arco registei o cântico dos mortos.
procurei uma paisagem para alimentar o coração.
diante da imagem tive de novo o corpo reunido.
o sangue desenhou no mármore
o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.
[p/ Cristovam Pavia]
escreve, sempre de novo,
o vento entre os pinheiros,
uma chuvada, antes da divisão da terra.
no sótão, a mão direita
(os dedos demasiado longos).
fragmentos de um texto circundam
a abóbada, o comboio, o coração.
plantaram carvalhos na encosta
dentro da viagem
na fresta virada a poente.
a legenda continua incompleta.
sob as letras nascem letras ainda mais antigas.
desapareceram as paredes,
a cal onde o texto surgiria.
vizinhos na infância,
resguardaram teu sangue nos limites do campo:
o sopro que escreveste nas ruínas,
o odor que sempre nos iluminou.
[Castelo de Vide, ruínas de S. Paulo]
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