PÁGINAS DE UM DIÁRIO

Há cidades (Portalegre, por exemplo) que são como o vinagre: amolecem os ossos, se não nos precavemos. Só assim se pode explicar que cidadãos com algum exercício de verticalidade e de clarividência aceitem, mais tarde, colaborar com algumas das manifestações mais nocivas e repugnantes da sua vivência social.

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Portugal traduzido - abecedário de reflexões, de John Wolf. Este livro tem a virtude de sistematizar a existência nacional, apertando-lhe o pus quando necessário. Fica-me uma frase: "Caberá a cada um assumir a sua quota de responsabilidade na gestão da 'honra nacional', procurando contrabalançar os comportamentos marginais, através da assunção do contrato individual de consciência própria."

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Percorrer as estantes dum alfarrabista é confrontarmo-nos com quanta erosão apaga as esperanças de notoriedade pública. Isso nos angustia? Trabalhar é contudo preciso. Mesmo que seja para o esquecimento (sempre relativo). Somos todos transeuntes nesta sociedade. Areias anónimas neste deserto.

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O perigo de lermos livros de Claude Roy ou de C. Ronald é que nada, depois, nos aproveita, se não tiver a mesma altura ou uma dimensão estética e ética semelhante.

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Um olhar para os dias, novo livro do poeta brasileiro C. Ronald. Diário de resignação na aproximação do fim? Sobretudo, uma linguagem arcana, simbolizadora, em que até as palavras chãs (ou sobretudo elas) assumem uma dimensão transcendente, que barrela a realidade mais concreta.

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Instalou-se na Itália aquilo a que alguns analistas chamam um "regime pós-democrático" (eufemismo bárbaro para designar um novo autoritarismo, fundado sobre a alienação televisiva, o consumismo, a impunidade e a rasquice). Aqui, em Portugal, como bem viu José Gil na Visão de 2/10/2008, estamos dominados por políticos com capacidade anestesiante, veiculadores duma propaganda ignóbil, porque avilta para dominar.

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A revista Ler trouxe uma entrevista de um poeta transmontano. A principal qualidade desta conversa é não esconder o calculismo e a hipocrisia do autor. Outros, por este país, têm a mesma face, mas escondida.

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O primeiro andamento do Te Deum de Marc-Antoine Charpentier é um bom exemplo de uma obra a tocar a alegria divina do inefável. Transformaram-no no hino da televisão europeia... Emporcalharam-no.
Maria do Sameiro Barroso
vence «Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2009"

Maria do Sameiro Barroso, com o original Uma Ânfora no Horizonte,acaba de vencer a edição portuguesa do "Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica 2009".
O Prémio, instituído pela Câmara Municipal de Vila Real de SantoAntónio, numa parceria com o Ayuntamiento de Punta Umbria e acolaboração de Sulscrito – Círculo Literário do Algarve, tem o valor de 2500 euros, estando prevista a publicação, em edição bilingue, daobra vencedora.
O júri, constituído por Casimiro de Brito, Fernando J. B. Martinho e Manuel Frias Martins, escolheu o original Uma Ânfora no Horizonte de entre os 86 originais a concurso. Realçando a elevada qualidade das obras concorrentes, o júri recomendou ainda para publicação o original Labirintos Cruciais, assinado com o pseudónimo de Eva Maria. De acordo com o autor – Paulo Renato Cardoso – Eva Maria é mais que um pseudónimo, assumindo-se como entidade co-autoral num livro em que os poemas são atravessados por uma voz feminina. Em 2007, Paulo Renato Cardoso venceu o Prémio Daniel Faria com o livro Órbitas Primitivas: Fracções de um Tratado Heliocêntrico.

Maria do Sameiro Barroso nasceu em Braga em 1951. Médica, germanista,ensaísta e investigadora, licenciada em Filologia Germânica e emMedicina, fez a sua estreia literária em 1986. Publicou os seguintes livros de poesia: O Rubro das Papoilas, Rósea Litania, Mnemósine,Meandros Translúcidos e Amantes da Neblina. Vindimas da Noite é o seu livro mais recente, editado por edições Labirinto. Maria doSameiro Barroso é ainda a responsável pela organização das antologias Um Poema para Ramos Rosa (com prefácio de Paula Cristina Costa) e Um Poema para Agripina, com prefácio de Ana Paula Coutinho.

A edição anterior do Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibéricatinha sido vencida por Amadeu Baptista, com o livro Sobre as Imagens.


A ALMA ANTIGA DOS PÁSSAROS

Nada poderei esquecer, nem as algas nem os mapas,
nem a escrita, que em seu nimbo florindo,
tantas vezes me elege, chama, ou equivoca.
O girassol do amor esconde-se na relva, nas flores,
nas searas de nuvens.
De nada serve procurar a água, os pássaros,
os laboriosos elementos.

Quando as entranhas de luz se acendem,
bebo, nas águas macias do silêncio, a sagração,
o vinho, as plumas, o hausto condensado,
os cones de penumbra,
o veludo que levanta a ruga, a cicatriz, a leveza
da avenca.

Nas cartilagens de barro, violinos, artérias abruptas
pernoitam, entre formas de luz que se auscultam
na língua, no corpo, ilhéu azul, onde nada ressoa,
no cetim incandescente dos joelhos, da pele.

Numa aura magnética de ossos, sellaginelas,
a alquimia da escrita desenha, pelo ar de chumbo,
transparências, perfume, a lua claríssima,
estrias douradas, álamos aquáticos,
pássaros de penumbra

e um rasto estranho de rupturas, dicção.


in As Vindimas da Noite, Labirinto, 2008
Seis escritores portugueses
na Oitava Bienal do Livro do Ceará, Brasil

Os escritores Fernando Aguiar, Maria Estela Guedes, Joana Ruas, Nicolau Saião, Rosa Alice Branco e José do Carmo Francisco vão participar em Novembro na Oitava Bienal do Livro do Ceará, Brasil, que este ano tem como tema "A aventura cultural da mestiçagem".
A Bienal, que decorre entre 12 e 21 de Novembro em Fortaleza (Ceará), contará com a presença de agentes culturais (autores e editores) de 30 países de quatro continentes - África, América, Ásia e Europa.
A organização do encontro é da responsabilidade da secretaria da Cultura do Estado do Ceará.
O escritor Floriano Martins, curador do evento, esclareceu que este se destina a "revelar as diversas culturas envolvidas, reconhecendo os seus hábitos, costumes e literatura e comprometer-se com a democratização e mobilização do acesso universal ao livro, à leitura e à produção literária".
Numa entrevista recente a um jornal cearense, o curador declarou ter escolhido os autores - brasileiros e estrangeiros - para o encontro, tendo em conta a "qualidade da obra" e a "diversidade estética e geracional".
"A estranheza que se possa ter em relação à maior parte dos nomes não é demérito da parte deles e sim reflexo de nosso descompasso cultural em relação a esses países", disse.
Do lote de autores convidados fazem parte, segundo o mesmo responsável, os peruanos Carlos Garayar de Lillo e Carlos Germán Belli, o galego Carlos Quiroga, o cubano Abel Prieto, o argentino Rodolfo Alonso, o colombiano Jotamario Arbeláez, o mexicano Carlos Montemayor e a paraguaia Susy Delgado.
No tocante a brasileiros, citou os nomes de Ana Miranda, Isabel Lustosa e Chico Anysio (cearenses), Lêdo Ivo, Afonso Henriques Neto e Lauro César Muniz (não-cearenses).

(A partir de RMM, comunicado da Lusa, 27/10/2008)



José do Carmo Francisco



BILHETE NO BOLSO

Às vezes está tão longe
Às vezes está mais perto
Fala e ninguém o ouve
Como telefone no deserto

Vai dar uma longa volta
Pode morrer e não morre
Com um bilhete no bolso
Anda a pé, viaja e corre

Apanha a chuva dos outros
Porque é poeta concreto
Suja as mãos fica na rua
E desenha um ângulo recto

Traz às costas uma dor
Sem peso nem dimensão
Com um bilhete no bolso
Já não ouve o coração

Faz os poemas devagar
Num forno feito de fogo
Que nasce da combustão
Duma voz fora de jogo

Defende sem bem saber
Justos contra tiranos
Com um bilhete no bolso
Anda assim há muitos anos

Um quase nada lhe chega
Para o que vai sonhar
Um futuro sem a morte
Em todo e qualquer lugar

Escondido na multidão
Atravessa as ruas só
Com um bilhete no bolso
Há-de voltar para o pó

(in Leme de Luz, Sol XXI, 1993)
Amadeu Baptista
vence Prémio Literário Oliva Guerra/ Sintra 2008

O original de poesia Doze Cantos do Mundo, de Amadeu Baptista, venceu o Prémio Literário Oliva Guerra – Sintra 2008, promovido pela Câmara Municipal de Sintra. A distinção mereceu a unanimidade do júri, que analisou 83 originais concorrentes. O júri integrou os escritores Liberto Cruz, em representação da Associação Portuguesa de Críticos Literários, José Correia Tavares, em representação da Associação Portuguesa de Escritores, e Ricardo António Alves, em representação da Câmara Municipal de Sintra.
O Prémio Literário Oliva Guerra é anualmente patrocinado pela Câmara Municipal de Sintra e consiste, além da publicação em livro da obra vencedora, no montante de 5.000 euros. A entrega do prémio ocorrerá em data a anunciar pela autarquia de Sintra.

Amadeu Baptista - a quem o Estrada do Alicerce endereça publicamente os parabéns - nasceu no Porto em 1953, onde frequentou a Faculdade de Letras da Universidade daquela cidade.É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do Pen Clube Português.Tem colaboração dispersa em jornais, revistas, antologias e livros colectivos, em Portugal e no estrangeiro, designadamente: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, México, Roménia e Uruguai.Poemas seus foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, francês, hebraico, italiano, inglês e romeno.
Publicou os seguintes livros de poesia: As Passagens Secretas (1982), Green Man & French Horn (1985), Maçã (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), Kefiah (1988), O Sossego da Luz (1989), Desenho de Luzes (1997), Arte do Regresso (1999) (Prémio Pedro Mir – Revista Plural, na categoria de Língua Portuguesa, México, 1993), As Tentações (1999), A Sombra Iluminada (2000), A Noite Ismaelita (2000), A Construção de Nínive (2001), Paixão (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004), Sal Negro (2003), O Som do Vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro (2003), O Claro Interior (2004), (Prémio de Poesia e Ficção de Almada, 2000), Salmo (2004), Negrume (2006), Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007) (2007), Outro Domínios (2008), (Prémio Literário Florbela Espanca, 2007), O Bosque Cintilante (2008) (Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama 2007), Sobre as Imagens (2008) (Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008), Poemas de Caravaggio (2008) (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007). Recentemente foi galardoado com o Prémio Literário Edmundo Bettencourt – Cidade do Funchal, pelo original Os Selos da Lituânia e o Prémio Espiral Maior (Galiza/Espanha), pelo original Açougue.
Do original premiado divulgamos em pré-publicação:


GOYA: A FAMÍLIA DE D. CARLOS IV (1800)

Assim como há o cinismo,
há uma gramática do cinismo.

Cada mestre usa o seu
à luz do seu compêndio,
com forças à deriva,
e consubstanciando
o alarde da pintura

Tomemos o exemplo
da família real,
esta ou qualquer outra.

Se olharmos bem os rostos
vemos o que Deus
falha no mundo

– as insipiências
onde a criação é um malogro.

Mas o cínico sou eu,
embora o Príncipe
esteja talhado para a maldade,
com o corpo a três quatro,
olhando para trás,
sem profundidade,
mas a arrogância que é própria dos príncipes.

O Rei é uma amálgama de sucata,
que a idade sutura
e um certo ‘ai que não dói’,
que se escuta em toda a corte,
lhe lava as mãos
na promiscuidade,
enquanto acata as ordens da Rainha.

Esta, ao centro do painel,
é só os braços
que mostra por contraste
com a riqueza insultuosa do vestido,
paramentado de rendas espanholas
e formas que, há muito,
exercem a lascívia
a bom recato.

O mais são tétricas figuras,
que uma Princesa apoia colocando a altivez
em contraponto com gente impaciente pelo almoço
e as fatias de presunto quando a tarde
os puser a caminho do curral.

Lamento que a pintura não faça ouvir
os ruídos da rua,
o povo com os sacos de carvão sobre os ombros
e as putas com os ombros sobre os sacos de carvão.

Lá fora o mundo é a mais valia
do conjunto,
sendo que tudo está lubrificado
para que se note o estupro
e seja Deus, Nosso Senhor, crucificado.

E o cínico sou eu.

Por isso, à esquerda,
onde há ponto de luz
que a sombra alcança,
olho de esguelha o universo
e quase que parece que sorrio.

Não é verdade.

A esse canto,
onde fito como posso os que estão,
sendo que os de vejo de frente
e de joelhos,
queixando-se do reumático,
apenas conjecturo
como há aberrações
que podem tudo.

Passei por Moncloa
a um fim de tarde,
começava Maio
e dos campos desprendia-se
o odor sereno e violento
que há na terra.

E vi
como os massacres são, ainda,
o pão de cada dia,
por mais ou menos cínicas
que sejam as pinturas,
ou as armas estejam prontas para o abate.

E o meu coração
anotou tudo:

- a luz, sempre vital,
o pelotão de anónimos
e as suas vítimas,
a centelha de fogo, ou água,
no olhar do condenado.

E, já tendo visto tudo,
quero dizer,
já tendo visto em excesso
deste excesso de vergonha
sem vergonha,
aferi o meu lugar
na tábua rasa em que vivo,
e morro,
e, sem sonhos, durmo.

Preciso de água forte para dessedentar
o rumo a que o desespero obriga,
pincéis de cerdas duras,
espátulas cortantes,
paletas invisíveis
onde as cores, fortíssimas, latejem.

Preciso de fulgores
e circunstâncias
onde uma ardência nos olhos possa ser
um sinal
de redenção,

enquanto o povo
é à míngua que morre
e eu, cínico sendo,
página a página leio este compêndio
que os cínicos maiores que o meu cinismo
instituíram.

Pudesse eu regressar a Fuendetodos,
ou fazer pintura sacra,
cheia de entorses e nervos,
com o Cristo ladeado de ladrões,
como eu estou.

Provavelmente,
entre a maga vestida e a desnuda,
preferiria chorar
até ao fim do mundo,
chorar
e abrir as veias:

para que o sangue corresse
e a pintura tomasse um outro rumo
de cores,
difusas, se possível,
repartidas.

Mas eis que a doença chega
e a vivacidade se esvai,
e estou cego,
e totalmente surdo

e sou, assim, o cínico do retrato
a conferir ao mundo o mundo retratado
e os seus caprichos,
enquanto os desastres
e a guerra submeto
nas gravuras.

Já nem sei o que digo,
o tempo sobrevoa-me as têmporas
e onde estive não estou,
estando sempre
algures,
mais ano para a frente ou para trás,
mais cão ou menos cão nas telas,
mais cínico ou menos cínico
entre os cínicos.

O Príncipe, o Rei e a Rainha:
vesti-os de cores vivas
e, contudo, é de luto que está a minha arte,
porque, por esta comitiva,
nem para a eternidade
ressuscito.

Mas persisto.

Para isso é que o cinismo
recebe do cinismo
moedas de oiro,
e posso, quando posso,
com o branco de espanha
misturar azul cerúleo,
e ao verde-bétula
juntar óxido de ferro,
para que o esplendor da luz
seja o que é, na obra:

– fútil, sem glória,
como é cada guerra,
embora lute sempre,

e não lhes dê tréguas.

Este é meu tempo:
tomai e bebei.

Este é meu tempo,
tomai e comei.

Por mim, como sempre, estou
cheio de fome.

Nicolau Saião


SOBRE CRISTOVAM

Dizia o célebre inquisidor-mor de Richelieu, com um cinismo não isento de senso de humor, “Dai-me uma frase qualquer e conseguirei que ela ponha um baraço ao pescoço do seu autor”. E embora se trate aqui de poesia e de um poeta, talvez faça sentido suspender a respiração por uns segundos.
Porque, com efeito, a poesia é um perigoso ofício. E se não pelas partes de fora, pelo menos pelas partes de dentro.
Será verdade que os poetas são sobreviventes? Talvez sejam - sobreviventes do tal lugar onde se acoita a verdadeira vida a que aludia, entre outros, o sobrevivente de Charleville (Rimbaud). A poesia será também, assim, uma certa arte das retiradas, a forma mais pessoal de combater a adversidade. Quem diz pessoal diz eficaz. Eficaz, na verdade, porque nisto de coisas de dentro temos de nos haver com presenças muito mais perigosas que os habituais fantasmas do quotidiano. Daí que, por vezes, como (não) queria Cristovam Pavia, só possa haver “saída pelo fundo”. Pelo fundo, pelo meio, por cima, em suma e afinal: pelo lugar onde, no encalço de Flamel, “os touros encantados que deitam fumo e fogo pelas narinas” encontram finalmente a brancura da verdade perseguida.
De Cristovam sei muito pouco. Quer dizer, talvez saiba relativamente muito – porque vou a ele inteiramente pelo coração. Como fascinado leitor, primeiro, de uns raros poemas inseridos numa pequena antologia algo precária e, depois, dum livro muito pundonorosamente feito, com os seus poemas completos - publicados, esparsos e inéditos – que li inteirinha num pedaço de tarde de verão, sentado sob uma das nogueiras citadinas em frente do edifício barroco do antigo Hospital da Misericórdia portalegrense.
Cristovam falava (fala) de pequenas coisas, o que é indício de que o fazia de grandes coisas: da morte do seu cão, da luz difusa batendo na parede da casa da velha quinta alentejana dos ancestros, da recordação que sua mãe teria na noite do seu hipotético e afinal sucedido funeral. Coisas assim leves para quem julga que o poeta é uma espécie de artilharia pesada.
E porque o tom em que o fazia é dos mais belos (e estou a lembrar-me da emoção em Rilke, em Hesse, mas também em Marie-Noel), há-de encontrar sempre quem através dele possa olhar as tardes de negrume e, simultaneamente, de inteira claridade onde se vão reflectindo ora um rosto, ora um ombro, ora uma mão escapando ao nevoeiro...
Rui Almeida





(homenagem a Cristovam Pavia)


I.


De um lado
a sombra delicada dos que choram.

A tristeza virginal cosida ao forro do casaco
e os dedos viciados na textura
do tecido do interior dos bolsos.

Mergulhamos na terra
que já não nos dá pão ou sepultura.

Lá dentro
dizem qualquer coisa que nos ensina a ser velozes,
a estar perto da cegueira.
Depois calam-se dentro da violência
e do sussurro tremido.

Somos nós quem mente
quem abandona os ossos para não morrer,
antes mesmo de saber contar pelos dedos
a secura da cara que antecipa a nudez.

O golpe mais viável é o desespero.
Tudo o resto fere a sensibilidade da pele
sujeita ao frio que queima.

Como são belos os frutos
roubados das mãos dos suicidas.




II.


Do outro
o riso abundante chovendo sobre os mortos.

Amanhã não estou cá e não sei se volto.
Todo o gozo pode ser devolvido
e marcado com o sinal da virtude.

O zelo da coragem não compensa
e só a resposta dos que esperam pode salvar.

Falo das ruas onde não habita ninguém
mas não sou compreendido.
É como se todos desconhecessem
que tudo o que se pode comparar ao mar
permanece inteiro nas vísceras
e está acessível ao rubor da pele.

Os defuntos agonizam ainda
sem se lembrarem do sangue de quando viviam.
Não há qualquer solenidade nisto,
é apenas um veneno que serve para afiar facas
nos dedos dos desempregados;
um licor de calma que alivia
para que não se ausentem do registo.

A chuva é branca e suspende os olhos
no elogio do corpo reclinado sobre a aparência.

Aurélio Porto


Dois poemas



(um quase haiku)

Cristovam, mastigadores do mundo
somos, e de tuas glicínias.
Doce flor na saliva, passado menino.

1983


A uma cadela

Enquanto vives,
Diana, e teus olhos do teu mais profundo sono
jamais me perdem e vigilantes
ao menor gesto meu se sobressaltam,
enquanto o sopro que não há te atravessa inteira
e te mantém a nosso lado,
na poeira e no vento, e no sol o xisto
abrindo,
digo-te agora que o teu sopro é o meu sopro,
e enquanto imóveis na memória
frescas glicínias tombam sob o calor de agosto
sob a sombra tombam onde Farrusco
o cão dormindo outro cão lembra
esse que Cristovam amou onde outras glicínias engrinaldam
esse menino só
lembrança,
digo-te enquanto vives a alegria a dor
do coração compassivo,
a ferida funda rasgada e o golpe
à faca o corpo já morto e agoniza,
digo-te aí o lugar único
onde o coração repousa,
e quando tuas orelhas ao longe se erguem
ao curto silvo que o vento traz,
não há,
Diana,
outra alegria.

1988


in Flor de um Dia
no prelo

Amadeu Baptista

PARA UMA HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA


1.
Se eu tivesse uma pistola em vez de um abre-latas,
obviamente não me inquietaria esta manhã.
Há opções a que o livre arbítrio força
e alvos a que disparo mesmo às escuras.

De tanto protagonizar a solidão
respiro o ar rarefeito dos cafés.
Não fossem Plutão e a Atlântida
não sei onde esconderia o coração.

Raios partam a vida e quem lá ande,
já o outro disse e viu-se o fim que teve.
Eu sou daqueles que sabem por experiência

a que mundos virtuais nos leva a maledicência.
Um barco é que eu assaltava, se pudesse.
Se tivesse uma pistola em vez de um abre-latas.


2.
Na capital do império às nove da manhã
reflicto sobre alguma gente que aqui vive
e faz das letras portuguesas
a história da carochinha que se vê.

A esta hora o monstro ainda dorme
infinitamente cansado da crítica hebdomadária.
Há bons empregos pela noite dentro
entre o cais das colunas e a cruz quebrada.

Sejam quem sejam os da academia
deviam dedicar-se à vaselina
em vez da ambiguidade que mantêm

no exercício frustrado da alquimia
ao politicamente correcto hipotecado.
Tivesse eu uma pistola em vez de um abre-latas.


3.
Entre o engarrafamento geral e a loira do cais
fico de rastos com tanta violência.
Valha-me o rio e aquela coisa alta
que deste lugar de luz ao longe se avista.

Embora saiba que nada me convence
e a insurreição prometida ainda não basta,
obrigado, destino, pela feliz desgraça
que veio a mim neste desatino.

Uma criança soletra no autocarro
um sorriso perverso para os que passam
e avança sobre mim com a metralhadora de plástico.

Ao menos tenho um cúmplice nesta selva urbana.
Do mesmo modo sorrindo já nada mais me resta
que premeditar o disparo que o abre-latas adestra.
Nos 15 anos de
OS OBJECTOS INQUIETANTES

de Nicolau Saião

Por um acaso em que o destino e os meios editoriais são férteis, para a saída dos meus livros de poesia foi-me oferecida de bandeja uma sucessão de datas como que numa graça temporal. Assim, fez agora 15 anos que o primeiro veio a lume, 5 anos depois sairia o segundo (Flauta de Pan), um lustro depois o terceiro (Os olhares perdidos) e à guisa de irónico “gran finale” que, querendo os deuses, terei por provisório, o quarto – o qual em parte antologiou os outros (Olhares perdidos, antologia - Brasil).
Não houve nisto nenhuma premeditação - tanto mais que na aventura de editar sou uma espécie de “
prima da província” como dizia Balzac: nunca tive o que se chama editor, aquele cidadão empenhado ou interessado que, olhando para a fila de autores no largo principal da vila, aponta este, escolhe aquele, toca no ombro de outro...Na verdade, com excepção da Ed. Caminho e da Ed. Escrituras, até fui poupado ao acto de assinar contrato... O que, dizem-me, costuma ser usual em certos meios.
Ou seja: as minhas andanças enquanto objecto de edição partiram apenas de um enfoque fortuito, bilateral é certo mas sem sequência que desse para me permitir pensar que, elaborada uma obra, esta indubitavelmente veria a seguir as luzes dos prelos.
Aliás, tal facto talvez me tenha permitido um maior à-vontade ao cruzar os mares e continentes da versejação não obrigada a mote ou a prazos.
E permite agora, digamos desta maneira, que numa sequência que espero vos quadre eu vá apresentando a livralhada em causa no decorrer dos tempos a vir. -
NS






OS “OBJECTOS” E O SEU SUJEITO
por Levi Condinho


1. Sendo-me o seu nome já familiar, foi só na Feira do Livro de 1994, em Lisboa, que me encontrei com NS, que me foi apresentado pelo comum amigo, o escritor José do Carmo Francisco. A dedicatória que inscreveu no livro (e que me dirigiu) reza assim: ”Para o meu Amigo imediato Levi Condinho, poeta e pessoa de bem. N.Saião, 94. Assina também Flora Garção”. Poeta e pessoa de bem – retribuo o “galhardete” - é, isso sim, NS, cuja simpatia me cativou. Um intelectual, um artista, homem cheio de imaginação e de sereno humor, mas dessa estirpe dos simples que, em substância profunda, navegam na boa nau da fraternidade e da generosidade universais.
Pouco depois, escrevi sobre Os objectos inquietantes um texto que só passados 9 anos publiquei e dei a conhecer nas páginas respeitáveis e valiosas do suplemento alentejano Fanal.
Como disse Pilatos, de acordo com “A paixão segundo São João”, “o que escrevi, está escrito”. Terei acertado, mesmo a alguma distância do centro do alvo? Tarefa difícil para um texto tão exíguo e sem pretensões. Mas os leitores do livro – e que tenham sido ou venham a ser muitos – ajuizarão.


2. NS, pintor e poeta, não esconde a sua filiação, embora não exclusiva, na área do surrealismo. Por vezes, este aparece na sua escrita de forma deliberadamente “ortodoxa” funcionando aí, em pleno, a consagrada fórmula de “automatismo psíquico” verbalizado ou figurado plasticamente, em que a síntese obtida pela fricção ou embate de forças/signos antitéticos aparentemente desconexos não nos surge como produto simbólico e evidente, pronto à digestão, mas como uma “outra coisa”. Coisa essa que despertará em nós energias e formas outras de reconhecimento, nem sempre traduzíveis pela racionalidade da linguagem corriqueira. Aí, “isto” não significa “aquilo”, antes se detendo radicalmente no próprio “isto”, que possuirá, entretanto, uma força tão poderosa que dispensará o comentário absolutista da razão lógica. O que, é certo, exige as necessárias disponibilidade e cumplicidade do imaginário e de alguma “vocação” por parte do receptor. E, quanto mais rico esse imaginário, mais perspicaz será o funcionamento da “leitura”...(“Um indivíduo não é a sombra de outro indivíduo/ a não ser que o asfalto permita cogitações quotidianas.”).
Julgo, e penso não estar só neste juízo, que raramente no surrealismo (literário) português o automatismo total, o abandono “desumanizado” como sistema de destruição da razão e do(s) sentidos, funcionou como estaria previsto nos programas do “líder” André Breton e seus cúmplices. Com poucas excepções, o nosso surrealismo agiu sobretudo como uso de técnicas, de possibilidades metodológicas, arsenal de energias, ou até como instrumento ou “arma” de múltiplos combates ideológicos. Uma das excepções, talvez a mais notória, radicará em António Maria Lisboa, autor de textos como, nomeadamente, “Isso ontem único”. Mas, curiosamente, essa quase impossibilidade de automatismo total, constituindo-se, quiçá, de um utópico voluntarismo, conduziu a uma maior humanização e ao enriquecimento das conhecidas tendencias líricas da poesia portuguesa, pelo reforço de uma mais poderosa expressividade, mais agressiva, mais incandescente. E aqui encontramos o verdadeiro terreno de implantação da “casa” de NS.
Humanização. Tónica dominante de um livro que de “objectos” se ocupa. Sucede que esses objectos, pelo uso, aproximação, contiguidade, complementaridade ou sobreposição, constituem-se sempre em entidades antropófilas...(mesa, cadeira, janela, chapéu, garfo, prato, penico, pente) corpóreas (pé, molar, mão) ou justapostas no ente/ser humano (homem, ferreiro, poeta, pintor, defunto, futebolista, árbitro, etc, etc).
Mas essas entidades, na sua relação de empatia, funcionalidade e comunhão histórica com o homem, são também objectos de “inquietação” - suspeita, temor – não só pela reminiscencia de ancestrais lendas e conjecturas metafísicas que, a todos ou a alguns em particular, sempre atribuíram propriedades enigmáticas, mágicas, maléficas ou sofredoras (os tachos e panelas no livro ameríndio Popol Vuh) mas principalmente, aqui, por outros motivos. É que, em Saião, os objectos entendem-se como coisas familiares que nos podem comover, como nos comovem a cadeira ou o par de botas de Van Gogh ou do Charlot, ainda que nos possam atingir por alguns súbitos e inesperados calafrios de estranheza, e de algum terror. Inquietantes até pela má consciência que podem despertar em nós, pela utilização que deles fazemos, quantas vezes de forma distraída, alienada, desprovida de afecto, “injusto” uso de coisas que julgaremos inanimadas. Sê-lo-ão? (“As coisas// nossas irmãs de mundo, nossas filhas, nosso sinal perfeito/ nesse universo que é o nosso resumido encontro/ com a sua// eternidade acontecida.”).
Poesia onde o cosmopolitismo se conjuga com a sobranceira implantação telúrica na rus alentejana, onde o humor fino e certeiro, por vezes dramático, nunca exalta o grotesco em detrimento do Belo (veja-se a segunda parte do poema “O pão”, constante na antologia anexa).



Resta referir que Os objectos inquietantes foram publicados pela Editorial Caminho (92) e pela mesma distribuídos (93), uma vez que o livro recebeu o Prémio Revelação APE/IPLL de Poesia-1990, tendo uma nota introdutória de M. Pons, foto do autor e apontamentos críticos e biográficos, nas badanas, de António Luís Moita e João Garção, que efectuou também a ilustração sobre a qual foi construída a capa.




ANTOLOGIA


A JANELA

Às vezes o poeta tira
coisas da cidade: um muro, a sombra
dum morto, cores que o obrigam
a ficar ligeiramente envergonhado. Dizem
que é operação vulgar esta pesquisa
de memória rendida em geografia
adormecida. Mas o poeta insiste: tira
por exemplo uma janela. Tira três ou quatro
belíssimas pernas de mulher, um sentimento
um cheiro, endomingadas recordações
em suma: elementares presenças
comunicadas entre os anos. Tira a janela. E coloca
a janela em diversos pontos
do Universo: aqui vê um rio
acolá sente através da janela gritos e risos
e depois a janela esvoaça
com as mãos e a cabeça do poeta enrodilhadas
como que perdidas
solenemente atentas
na noite ardida. A janela reparte-se
por países e por rostos. O poeta perde
a janela de vista. A janela desapareceu.
A janela repousa nas paredes
a janela cola-se-lhe à roupa, a janela
obriga o poeta a pestanejar. A janela talvez
seja menos ou mais que um simulacro
de animais que viajam no triângulo dos tectos
no impenetrável reflexo das madrugadas
na palma da mão de alguém que já não pode
abrir ou fechar uma janela.

A janela constrói-se
pouco a pouco, a janela diz
milhares de palavras inventadas
e nuas, é uma imagem
em equilíbrio subtil. A janela é agora
quase porta, parece feita de
altas meditações familiares. Nem precisa de ser
ausência, como um retrato

que sai de nós para todas as ruas
onde irrompe um perfil enegrecido
onde alguma outra vida se acolheu.


O PÉ

Em todos os lugares, é
sempre pé: pé de mundo
pé de mando, pé de mar. Sem par
é pé de coxo. Pé
parado. Morto em pé.
Por vezes
os pés desaparecem
durante anos: esconderam-nos
em claustros, chaminés, prisões.

O pé no fundo
é estranho: de noite
parece um ser solar. Um pé
sem perna já foi mais frequente do que pensam.
Um pé de casa é uma vírgula posta
entre o campo e as estrelas. Um pé arabesco
é um pé a cavalo. E um pé que se preza
ama a liberdade. De contrário é pé chato
pé de planeta aziago.
Um pé sem suor é pé desafinado.
Lagosta, pé carregado
O pé costuma ver (o pé tem sorte)
o começo da vida, ou o fim do corpo:
ir de pés para a frente
fazendo finca-pé
à própria morte.

O pé de flor vive em todo o lado.
Planta de pé é um silêncio vegetal.
Pé de cabra é bom na magia oculta.
O pé de cão tem horror aos polícias.
O pé de amor é um bicho esquisito: mede
os outros pelo seu tamanho – pé universal

Pé ou mão? Doce animal
dentro do coração.


O PENICO

Perdoa-se o mal que nos fazem
pela beleza do que se contempla. Maganão
que não quis ser caneca ou bilha d’água
preso ao sonho erótico de ter
outros horizontes a conhecer: fagulha
imaginária
levemente odorífera
sempre provocante
ou incómoda.

Lumpen-proletário abismado
num Universo de águas e fezes lustrais.


O PÃO

1.

Eis o pão sobre a toalha:
não se agita, não grita
- está ali, simplesmente
como uma ilha a descobrir
pelo sabor e o cheiro.

Um pão morto, um pão vivo
o cortado ou o inteiro?

O pão por vezes geme
como uma égua louca
e cresce, cresce ardendo
no sangrento e lavrado
triste e desabitado
nevoento, esfomeado
céu da boca.

O pão é a substância
dum bicho transformado:
o tempo e a terra
onde foi criado.

2.

Tronco de paz, tronco de escuridão
erguendo o cadafalso para todos

Suavíssimo, cercado de claridade
um avião gelou o sonho e a aurora

Uma flor crepuscular desafia o delírio
litania de fome destruindo o desejo

e uma cidade, angustiada, afoga-se
na sua própria imagem
sem que lembrada seja
como o sabor do pão

para ninguém.


Nicolau Saião

CRISTOVAM PAVIA

a António Luís Moita

Entre mim e as casas estão as árvores e a ribeira
e milhões de anos feitos para a Lua e as estevas.
Essa ribeira que corre sabe-se lá para onde
talvez p'ra São Mamede, talvez p'ra esses campos
de Espanha - vida minha! - que jamais conhecerei.
Dionísio teria olhado o vale e a montanha
quando neles se ocultava o rasto de animais
depois desaparecidos. Pensamentos e memórias
entre um olhar e um silêncio, como o odor
do fumo dos lares ao fim da tarde.
Serena é a madrugada, despertando
um vôo de coruja sobre os ombros de quem vela
- pastor ou aguadeiro
homem que na terra coloca a semente do tempo
ou do trigo fremente para os sonhos e os minutos.

Algures, junto a uma parede devastada
onde a cal cristaliza a inocência e a perfídia
as abelhas são mais que uma simples razão
do Universo gerando recordação e inquietude
de anos e anos a vir: são o retrato
multiplicado da vida que fugiu
quando a nossa voz íntima se cala. Na terra
marco os dedos e os vestígios
de avós e bisavós, do solitário
cão que me adorou na infância:
o contorno das palavras que escrevi e que despertam
as sombras do futuro e do passado. E lá entre segredos
de amigos, de quimeras, das ofertas
que nem ousamos preferir
- gramínea, barco, gazela, primavera -
e que por isso são nossas
mais que tudo o que foi
o nosso quinhão misericordioso
hei-de lembrá-las sempre, como puras
e felizes sombras sobre o rio
Sobre as casas que vi como as imagens

que tive e que inventei.

(in Os Olhares Perdidos, Universitária Editora)
Maria do Sameiro Barroso



CRISTOVAM PAVIA

Sei que todos os rouxinóis já morreram,
no centro das paisagens amarelas,
onde os cães já não uivam, nem os galgos
choram.
Sei que todos os pássaros que me trazem
a névoa são cometas efémeros.
Por isso, nada designo.

Hoje, tudo é triste, como um poema que desaba
na Rua dos Fanqueiros.
Talvez os meteoros ainda pulsem, algures,
na estrada sinuosa do meu sangue.
Sei que todos os rouxinóis já morreram
e que os lobos e os homens apenas desfiam
a sua teia de morte.

Que pode o silêncio quando a luz se cinde?
Que pode o corpo, quando o coração se prende
e se estilhaça?
Que pode a sede, o magma, o vulcão,
quando as faíscas cintilam

apenas para perfilar o nada?


Lisboa, 13 de Outubro de 2008






HOMENAGEM A CRISTOVAM PAVIA

Faz hoje 40 anos que morreu em Lisboa Cristovam Pavia, aí nascido em 7 de Outubro de 1933. Estes dois poemas, da autoria do coordenador deste blogue e retirados do seu livro inédito Vale dos Homens, são os primeiros passos de uma homenagem alargada que aqui se publicará em primeira mão, visando uma futura edição em livro. Enquanto a poesia do filho de Francisco Bugalho não sai do limbo onde tem sido colocada pelo esquecimento dos editores portugueses de poesia - é mínimo que lhe devemos.



[entre Francisco Bugalho e Cristovam Pavia – 1968]

não pude, meu filho, acolher no peito
a carne e a madeira. nesta terra
reservei de antemão o espaço necessário
para aumentares comigo o fogo
em que fui depositando a minha sede.
perdeste a chave, eu sei. mas fertilizaste com a tua mão
o rosto dessa escultura virada a nascente.
na montanha, a água do tanque ficou límpida.
nela entalhaste o oiro e a agonia. o medo
desfez a porta. colocou sobre os músculos o lintel
dessa torre, como se fora um tronco de carvalho.
o líquido assentou no coração.
só então pudeste beber desse cálice
esculpido pelo mar e pela sombra.


*


recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. procurei
nesta terra um veio de água
para lavar e alimentar o coração.
o campo enegrecia.
fui escutando, quando não conseguia vigiar,
essa ponte sobre o mundo.
que lugar me pertencia?
sem olhos, o verbo toldava o movimento.
a água corria entre os lençóis postos de novo.
colei retratos de gente. desenhei mapas, paisagens e rostos.
anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo.
contudo, o campo enegrecia.
transportei a humanidade inteira
no peso dos ossos e da carne.
atravessei a corrente transportando
sobre os ombros a viagem e o desespero.
em silêncio, tentei regressar. a semente ardia entre os dedos
queimando lentamente a pele e as unhas.
espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne
para com ela fertilizar o vale e a ribeira.
sobre o arco registei o cântico dos mortos.
procurei uma paisagem para alimentar o coração.
diante da imagem tive de novo o corpo reunido.
o sangue desenhou no mármore
o canto da devesa.
entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.



[p/ Cristovam Pavia]

escreve, sempre de novo,
o vento entre os pinheiros,
uma chuvada, antes da divisão da terra.

no sótão, a mão direita
(os dedos demasiado longos).
fragmentos de um texto circundam
a abóbada, o comboio, o coração.

plantaram carvalhos na encosta
dentro da viagem
na fresta virada a poente.

a legenda continua incompleta.
sob as letras nascem letras ainda mais antigas.
desapareceram as paredes,
a cal onde o texto surgiria.

vizinhos na infância,
resguardaram teu sangue nos limites do campo:

o sopro que escreveste nas ruínas,
o odor que sempre nos iluminou.

[Castelo de Vide, ruínas de S. Paulo]
LE CLÉZIO HONRA A ACADEMIA








Há duas categorias de premiados: aqueles que a Academia Sueca notabiliza com o galardão e, num outro mundo, aqueles que honram a Academia com a sua aceitação do prémio. Jean-Marie Gustave Le Clézio pertence, quanto a mim, ao segundo grupo - enquanto outros, como por exemplo Cholokov ou Saramago, fazem parte do primeiro. A distinção nada acrescenta à obra. Mas não deixa de ser muito justa, embora justificada - como é costume - com um chorrilho de chavões.



Nascido a 13 de Abril de 1940 em Nice, no Sul de França, Jean-Marie Gustave Le Clézio é um dos nomes cimeiros da literatura francesa contemporânea. Publicou mais de 50 romances, contos, ensaios, novelas e mesmo traduções de mitologia ameríndia. É formado em Letras e trabalhou na Universidade de Bristol, em Londres. Aos 23 anos foi distinguido em França com o Prémio Renaudot pelo ensaio Le procès-verbal. Em 1967, após uma experiência de ensino nos Estados Unidos, partiu para a Tailândia em serviço militar. Acabaria por ser expulso depois de denunciar a prostituição infantil, partindo então para o México. Entre 1970 e 1974, Le Clézio viveu junto de índios do Panamá. Durante os anos de 1970, trabalhou no Instituto da América Latina. Reside em Albuquerque, no Novo México, mas viaja com frequência para França. A obra-prima Deserto, O Processo de Adão Pollo, O Caçador de Tesouros, Estrela Errante, Diego e Frida e Índio Branco são os títulos do Nobel da Literatura com tradução para Português.

(Título e introdução de RV, nota biobibliográfica a partir texto de Carlos Santos Neves - RTP, foto de Jessica Gow)
CARTA AO SENHOR PRESIDENTE

"Porque quem merece deferência e respeito é o povo, não esses sujeitos que continuamente, baseados no poder de que disfrutam, tripudiam sobre os cidadãos e fazem pouco de todos nós!
Creio que é notório que a Nação, senhor Presidente, espera de V.Exa. mais que simples paliativos...
Ainda não percebeu que o tempo começa a esgotar-se?
”.

Todos deveríamos escrever ao senhor Presidente Cavaco uma carta como esta. Nicolau Saião fê-lo no Triplov. Ler o texto completo aqui.

Nicolau Saião

ELE E O CHANDLER E OUTROS PARCEIROS

Há textos que custam a escrever. Mas ainda custaria mais se não escrevêssemos nada. Porque o silencio é, na verdade, o pior de tudo. E, assim, impõe-se ao menos, como homenagem e derradeiro aceno fraternal, o pequeno ruído de umas palavras escritas.

Sim. E congemino que a estas horas estarão eles já em amena cavaqueira, possívelmente degustando um “on the rocks” de excelente qualidade. Em jeito de recepção, pelo menos, ao novel companheiro de situação...
O Dashiell Hammet chegara primeiro, vai p'ra meio século, colhido pela tísica e por uns cheirinhos de ópio com todos. A seguir foi o Chandler, que não gastava do triste fumo mas se deixara cilindrar pelo generoso “bourbon” dos “saloons” de Santa Mónica ou de Hollywood e pela amargura que o estorvava, sem que o Marlowe lhe pudesse valer.
E agora, há poucas horas como me elucidou o José do Carmo Francisco, foi o Machado. O Dinis Machado. Sim, o do Molero, mas também a almaviva do Tintim, essa nave para viajar na imaginação onde emparceirava com o Vasco Granja. O Dennis Mc Shade dos policiais a caracter mas com sabor a Bairro Alto, português dos quatro costados com pseudónimo estrangeiro – para dar mais sustância à intriga de mistérios e tiros a granel como não houvera ainda daquela maneira no país dos brandos costumes... Ceifado, no seu caso, pelo tal de nome impronunciável alojado num pulmão, ajudado pelo excessivo apego – mais diria gosto, ainda que letal – às cigarrilhas Mercator, “as melhores do mundo” como ele dizia e explicou a um dos meus filhos fumadores, na altura, na noite (inesquecível, yep) em que o fômos levar do Alentejo a Lisboa após estarmos num programa de rádio precisamente dedicado aos segredos da novela policiária.

Recordei, com o JCF, em jeito de necrológio apreciativo e saudoso, os textos em que na Ler evocámos a “Barateira”, essa instituição de encartados cultores do alfarrabismo. E algumas jornadas nos entrepostos duma Lisboa de bairro popular que ele tanto apreciava (o seu pai fôra o dono de um arqui-conhecido restaurante de meia-desfeita, o famoso “Farta-Brutos”) e que lhe dera o tom do seu justamente apreciado (pese a alguns neófitos da escrita obrigada a mote) O que diz Molero, que por muitos e bons anos se me afigura que não o esquecerá o lote de gente que por cá sabe ler.

Era um homem de facto bom e leal. E fraternal. E amigo com os olhos e o coração bem abertos.
Este, que segue, foi o poema que um dia lhe dediquei, juntando num ramalhete a sua personagem detectivesca preferida e os mitos de que se reivindicava uma certa rapaziada boa, prenhe de imaginação e dignidade que decerto irá durando pelos tempos.




MARLOWE

a Dinis Machado

Aos deuses, que o sereno céu sustenta
entre Amarillo Road ou Canyon Drive
ou em em esquinas de ruas indiscretas
como luzes num bosque além dos montes
ofereço as minhas horas de amargura
e muitas meias-noites em meu rumo.

Acresce que
fui sempre muito pouco metafísico
mau grado a nostalgia que me punge
ao longo de não poucos boulevards.

Morenas tive algumas, mas não foram
mais que pistas abertas p'lo destino
como louras que rápido olvidamos
- fios de música correndo pelo tempo
e uns sopapos ao norte da figura.

Fiz de conta que os anos eram flores
numa campa de amigos ou de amores
sonhos que o vento leva quando calha
como folhas das árvores de Los Angeles.

Saber de mais é obra que não chega
p'ra ti, p'ra mim, p'ra todos os que sofrem
em vernáculo ou calão.

Dizer da vida o pouco que nos dá?

Prefiro um highball bem fornecido
um disco de hot jazz a meio da tarde
(solarenga ou chuvosa)
- até as convenções nos são propícias
se a carne é fraca, posto que perspicaz.

Nos meus arquivos guardo alguma 'sperança
mesmo que o tempo venha e me devore.


in Os olhares perdidos

O OURO DO TEJO

Não existem fronteiras nas duas margens de um rio. Existem margens. Margens só – e água pelo meio. Podemos encontrar símbolos e colá-los à matéria – mas esta continuará sendo apenas o que é e sempre foi: rocha e terra rasgadas e esculpidas por uma corrente.
Todos os rios são, assim, internacionais, mesmo quando sulcam um só país. Internacionais porque sem nacionalidade (ou com todas as nacionalidades). Por mais que os Homens desejem o contrário, nas suas águas não se espelham línguas nem dialectos – e muito menos bandeiras ou linhas administrativas. A sua gramática é outra. Mesmo quando os seres humanos os transformaram em fronteiras, ditas (erradamente) “naturais”.
Creio que tudo isto entenderam os criadores do Parque Natural do Tejo Internacional. Não é possível separar o que a geografia une. Não se trata apenas de uma questão cultural. Os pontos de contacto e de continuidade são imensos – mas ainda assim insuficientes para o estabelecimento de pontes invisíveis e indissolúveis. A água não separa, une. As margens são metades de um mundo que a corrente bravia, precedida por fortes movimentos tectónicos, afastou, mas não separou. Não por acaso, quando um rei português do século XII doou aos Templários a enorme “herdade de Açafa”, soube incluir nela territórios de ambas as margens do Tejo, tanto do sul da actual Beira Baixa, quanto do norte do Alentejo e do que seriam terras de Cedillo, Herrera e Valencia de Alcántara.
A paisagem é a mesma, sulcada pela espinha dorsal do ocidente peninsular, um Tejo hoje amansado pelas barragens que tentam canalizar toda a sua energia (tradicionalmente temível) para as necessidades humanas. Quem se digne subir a um dos miradouros do termo de Herrera (Negrales, vg.), verá de um e de outro lado das águas uma sucessão de montes agrestes, em que o cinzento-acastanhado das rochas se mistura com a vegetação resistente às inclemências do Verão e do Inverno, à escassa pluviosidade, aos devastadores incêndios que por vezes a atacam. Sobreiros, azinheiras, oliveiras, em simbiose com uma infinidade de espécies integráveis na flora de tipo mediterrânico, podem ser olhadas como indícios de uma abundante fauna – também ela adaptada aos rigores do clima e da geografia.
Entre os habitantes que o tempo colocou nestas partes – ou que a ela aportaram subindo o Tejo, provenientes da Fenícia ou doutras partes –, não podemos deixar de realçar uma população humana que, sendo escassa, merece a nossa admiração pela sua capacidade de resistência ao meio e, até, às investidas de quantos procuraram diminuí-la ao longo de séculos ou milénios. Houve sempre barcas a ligar a sua dispersão. Foi essa necessidade de intensificar o contacto que, na época romana, levou estes povos a construírem uma das mais impressionantes obras da engenharia, a ponte de Alcántara, que – segundo consta numa lápide – existirá “enquanto o mundo durar” (crendo nós que a frase se referirá mais ao contacto entre Homens e menos às pedras talhadas que um dia se dispuseram em ponte).
Andar pelas terras de Herrera e de Cedillo é encontrar costumes, cultos e monumentos que reproduzem, surpreendentemente (ou não), os existentes noutras margens do Tejo. Os monumentos megalíticos (as antas de Bodegas, Cerro de la Caldera, Sesmo, etc.) não podem ser entendidos, como viu Jorge de Oliveira, sem uma visão de conjunto que abarque os seus congéneres portugueses. Não se podem compreender rituais cíclicos como a “hoguera del gallo”, “enfariñar” ou o “jueves de compadres”, sem conhecermos o que acontece do outro lado da fronteira. O mesmo acontece com o culto de São Sebastião em terras de Herrera, tão ligado na “Açafa” às ordens militares.
As margens do rio Tejo foram até há poucas décadas locais de exploração de ouro. Já em épocas muito antigas assim era. Hoje o ouro é outro. Está à nossa espera – na água, na terra, nas rochas, na flora e na fauna, nos seres humanos (e na sua memória) que convivem e conviveram com tudo isto. Saibamos nós descobrir e trabalhar, em filigrana espiritual, todo este minério – produzindo riqueza, uma riqueza sempre interior.

(Artigo publicado, em versão castelhana, tal como os dois anteriores de temática raiana, na revista Imagen de Extremadura, publicada em Mérida.)