José do Carmo Francisco
A «árvore de Natal» de António Ferro e a «Trama»
Há coisas no mínimo misteriosas. Minutos depois de receber a mensagem de telemóvel com Rita Ferro a anunciar o facto de uma rua em Cascais passar a ter o nome de António Quadros, descobri uma nova Livraria Alfarrabista. A nova rua é perto do Hotel Cidadela e será António Capucho a fazer a inauguração. A «Trama» é um jovem estabelecimento livreiro que fica na Rua de São Filipe Nery nº 25B, ali ao Largo do Rato. Pois lá descobri um livro de António Ferro com o curioso título de Árvore de Natal. A editora é a Portugália e os desenhos são de Jorge Barradas. O livro é de 1920. Vejamos um poema que poderá ser para muitos de nós (como foi para mim) uma revelação. Por detrás do editor do Orpheu e do homem que deu um jeito para não se perder o tal livro do Fernando Pessoa (Mensagem) há uma voz poética. Vejamos o soneto "Madrugada":
«Tu vais ser mãe… Tu vais amanhecer…/ No teu ventre suave que se enflora / Eu sinto já prenúncios de uma aurora / O sol que, atrás das nuvens, quer romper/ Vais ter um filho de outro, meu amor / Tu que já foste mãe dum filho meu! /Um filho sim… Que o meu amor nasceu /Como um menino, no teu corpo em flor…/ Mesmo esse filho que tu vais gerar / É quase meu… Pois com o coração /É que o teu corpo o tem que imaginar / Lê esta sina, escuta esta adivinha: / Parecer-se-á com ele na expressão / Mas vai ter uma alma igual à minha!»
Há coisas no mínimo misteriosas. Com minutos de intervalo um rua nova com o nome de António Quadros em Cascais e um livro antigo de António Ferro numa livraria nova aqui ao pé do Rato.
A «árvore de Natal» de António Ferro e a «Trama»
Há coisas no mínimo misteriosas. Minutos depois de receber a mensagem de telemóvel com Rita Ferro a anunciar o facto de uma rua em Cascais passar a ter o nome de António Quadros, descobri uma nova Livraria Alfarrabista. A nova rua é perto do Hotel Cidadela e será António Capucho a fazer a inauguração. A «Trama» é um jovem estabelecimento livreiro que fica na Rua de São Filipe Nery nº 25B, ali ao Largo do Rato. Pois lá descobri um livro de António Ferro com o curioso título de Árvore de Natal. A editora é a Portugália e os desenhos são de Jorge Barradas. O livro é de 1920. Vejamos um poema que poderá ser para muitos de nós (como foi para mim) uma revelação. Por detrás do editor do Orpheu e do homem que deu um jeito para não se perder o tal livro do Fernando Pessoa (Mensagem) há uma voz poética. Vejamos o soneto "Madrugada":
«Tu vais ser mãe… Tu vais amanhecer…/ No teu ventre suave que se enflora / Eu sinto já prenúncios de uma aurora / O sol que, atrás das nuvens, quer romper/ Vais ter um filho de outro, meu amor / Tu que já foste mãe dum filho meu! /Um filho sim… Que o meu amor nasceu /Como um menino, no teu corpo em flor…/ Mesmo esse filho que tu vais gerar / É quase meu… Pois com o coração /É que o teu corpo o tem que imaginar / Lê esta sina, escuta esta adivinha: / Parecer-se-á com ele na expressão / Mas vai ter uma alma igual à minha!»
Há coisas no mínimo misteriosas. Com minutos de intervalo um rua nova com o nome de António Quadros em Cascais e um livro antigo de António Ferro numa livraria nova aqui ao pé do Rato.
AL BERTO E JOAQUIM CARDOSO DIAS
(Vislumbres de uma Amizade)
A grande maioria dos poetas, após a sua morte, tende a entrar num limbo que precede ou o esquecimento ou uma consagração duradoura. Numa sociedade como a nossa – em que a exposição pública nos grandes meios de comunicação social faz a notoriedade dos seres, mas nunca o seu génio –, a ausência física de um autor pode relegá-lo para as caves de um injusto (ou justo) esquecimento. A não ser que, previdente, tenha tratado em vida da sua presença póstuma, tenha deixado uma influência suficientemente forte para permitir uma continuidade temporal ou uma obra dotada de importância incontestável. Há ainda o caso de herdeiros diligentes ou de amigos bem colocados que, para não desmentirem as devoções manifestadas durante a presença biológica do poeta (seria vergonhoso reconhecer um erro ou uma amizade interesseira...), continuam a incensá-lo. Temos, depois, os casos (transversais) de necrofilia ou de antropofagia, em que certas hienas do meio literário aproveitam o silêncio de um autor morto para se banquetearem à vontade com a sua obra suculenta, manipulando-a ou mostrando dela apenas aquela parte que não incomoda ninguém ou, sobretudo, não macula a sua própria imagem de “especialistas”.
Existem sempre, é claro, os amigos e os leitores desinteressados que se encarregam de zelar pelo futuro da arte édita e/ou inédita dos seus poetas, mas esses pertencem a outro campo – e não é bom misturar o ouro com a trampa...
Reconheçamos, no entanto, com Fernando Pessoa: “o presente não vê para além do óbvio.” O futuro, às vezes longínquo, é sempre o grande juiz. O autor de Heróstrato ou a busca da imortalidade chega mesmo a afirmar: “Não é possível servir simultaneamente a nossa época e todas as outras, nem escrever o mesmo poema para deuses e homens.” E acrescenta: “Que as obras superiores acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade é verdadeiro; mas também é verdadeiro que uma obra meritória de segunda categoria acaba sempre por se evidenciar na sua própria época. / [...] / Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria para reparar nele? Quem poderá dizer se não apareceu já? O público leitor vê nos jornais recensões da obra de homens cuja influência e amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os tornou aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido [...].”
Quer se goste quer não da poesia de Al Berto, todos temos a obrigação de reconhecer que o autor d’ O Medo tem, por enquanto, fugido ao limbo que sucede aos poetas mortos. Em parte porque foi/é um autor influente – com a sua poesia desmedida, de um confessionalismo torrencial, matizado por imagens surreais –, em parte porque os seus herdeiros materiais têm diligenciado pela contínua publicação e divulgação da sua obra (por vezes em edições que nada acrescentam à glória do autor, mas apenas ao pecúlio de quem recebe os direitos), em parte porque a sua personalidade transgressora mas afectiva deixou marcas fundas de amizade em seres que, desinteressadamente, pensam ser seu dever pugnar pela memória integral do poeta de Horto do Incêndio, mesmo que isso os obrigue a sofrer a hostilidade de alguns habitantes das trevas do nosso pífio meio literário.
Joaquim Cardoso Dias – autor de um auspicioso O Preço das Casas – pertence ao último grupo. Fiel a uma amizade intensa (“Al Berto [...] foi o mais perfeito dos amigos que a vida me ofereceu”), resolveu organizar um livro como forma de homenagem ao autor nos dez anos da sua morte. Sem interesses subreptícios. Apenas com o desejo de conservar a presença de um ser humano singular feito poeta. Apesar de, noutros tempos de maior inocência, não ter reconhecido a dura verdade das palavras de Pidwell Tavares (“Vivemos num país de merdas, Quim”), Joaquim Cardoso Dias vê-se obrigado a revelar no prefácio que “todos aqueles que de qualquer forma ou de todas as maneiras tentaram impedir a edição desta antologia [...] pensaram que este livro de homenagem a Al Berto seria um perigo explícito para as suas mentes perversas, circulares, mesquinhas”.
Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto é um belo livro, introduzido por um texto de Joaquim Cardoso Dias com passos comoventes. Discreto, atinge os seus objectivos. Entre as “quase duas centenas de cartas, postais, poemas, textos, recados, convites, confidências, desabafos, conselhos e tanta solidão”, o organizador escolheu uma dezena de missivas, de modo a apresentar “uma espécie de microbiografia” do autor, embora tendo o cuidado de seleccionar textos que não revelassem ou expusessem “entidades, acontecimentos ou situações susceptíveis de ferir ou desnudar atitudes, ressentimentos e interesses que se referem à vida privada de pessoas que conviveram com Al Berto”. Convidou ainda dez escritores (Alexandre Nave, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, José Luís Peixoto, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Nuno Júdice, Tiago Torres Silva e Vasco Graça Moura) que aceitassem homenagear o poeta, comentando ou escrevendo a partir de cada uma das cartas, os quais produziram textos com género, intensidade e interesse muito diferentes.
Leitor assíduo de textos íntimos de artistas de todo o mundo, neste livro interessam-me sobretudo as dez cartas do poeta homenageado, reproduzidas em fac-símile e cuidadosamente transcritas. Se não constituem, de facto, uma “microbiografia” de Al Berto, estruturam-se enquanto retrato revelador, políptico com os traços sinuosos de Lucien Freud ou de Francis Bacon. Em todas elas, desnudam-se um imenso abandono e uma enorme melancolia, cortados apenas pela necessidade de intensificar um contacto epistolar e uma amizade que se estruturam enquanto analgésicos possíveis, enquanto dádivas: “é-me tudo tão indiferente, distante, aborrecido. mas por hoje basta de lamúria. tenho-te a ti, a quem escrevo, e que me dá imenso prazer fazê-lo. não devia queixar-me tanto.”
Quem deseje conhecer um pouco melhor a verdadeira face do poeta que se refugiava por vezes em Sines – localidade com que tinha uma relação contraditória (“nada é como era há alguns anos. tudo se modificou. as pessoas voltaram a uma espécie de bimbalhice surpreendente. Aflitivo.”) –, tem neste livro documentos indispensáveis. Entre 30.07.1989 e 17.04.1997 existiu uma intensa amizade entre dois autores que, quando um dia for totalmente revelada nas suas epístolas, permitirá entender melhor não só os sujeitos escreventes, mas também o meio literário e artístico em que se inseriram. Vislumbre desse documento, estas dez cartas merecem o tempo devotado à sua leitura.
Duas frases de Al Berto ficam na cabeça, talvez como máximas de vida. Conhecemos a doença que o afectava quando as escreveu, meses antes de morrer. Mas, mesmo assim, teimam não sair da memória: “Apenas o silêncio... depois da barafunda. Olhar para dentro e limpar... limpar – apenas o silêncio.”
Joaquim Cardoso Dias (org.)
(Vislumbres de uma Amizade)
A grande maioria dos poetas, após a sua morte, tende a entrar num limbo que precede ou o esquecimento ou uma consagração duradoura. Numa sociedade como a nossa – em que a exposição pública nos grandes meios de comunicação social faz a notoriedade dos seres, mas nunca o seu génio –, a ausência física de um autor pode relegá-lo para as caves de um injusto (ou justo) esquecimento. A não ser que, previdente, tenha tratado em vida da sua presença póstuma, tenha deixado uma influência suficientemente forte para permitir uma continuidade temporal ou uma obra dotada de importância incontestável. Há ainda o caso de herdeiros diligentes ou de amigos bem colocados que, para não desmentirem as devoções manifestadas durante a presença biológica do poeta (seria vergonhoso reconhecer um erro ou uma amizade interesseira...), continuam a incensá-lo. Temos, depois, os casos (transversais) de necrofilia ou de antropofagia, em que certas hienas do meio literário aproveitam o silêncio de um autor morto para se banquetearem à vontade com a sua obra suculenta, manipulando-a ou mostrando dela apenas aquela parte que não incomoda ninguém ou, sobretudo, não macula a sua própria imagem de “especialistas”.
Existem sempre, é claro, os amigos e os leitores desinteressados que se encarregam de zelar pelo futuro da arte édita e/ou inédita dos seus poetas, mas esses pertencem a outro campo – e não é bom misturar o ouro com a trampa...
Reconheçamos, no entanto, com Fernando Pessoa: “o presente não vê para além do óbvio.” O futuro, às vezes longínquo, é sempre o grande juiz. O autor de Heróstrato ou a busca da imortalidade chega mesmo a afirmar: “Não é possível servir simultaneamente a nossa época e todas as outras, nem escrever o mesmo poema para deuses e homens.” E acrescenta: “Que as obras superiores acabam sempre por se evidenciar no decurso da sua futuridade é verdadeiro; mas também é verdadeiro que uma obra meritória de segunda categoria acaba sempre por se evidenciar na sua própria época. / [...] / Se o grande poeta aparecesse, quem aqui estaria para reparar nele? Quem poderá dizer se não apareceu já? O público leitor vê nos jornais recensões da obra de homens cuja influência e amizades os tornaram conhecidos, ou cuja subalternidade os tornou aceites pela multidão. O grande poeta pode já ter aparecido [...].”
Quer se goste quer não da poesia de Al Berto, todos temos a obrigação de reconhecer que o autor d’ O Medo tem, por enquanto, fugido ao limbo que sucede aos poetas mortos. Em parte porque foi/é um autor influente – com a sua poesia desmedida, de um confessionalismo torrencial, matizado por imagens surreais –, em parte porque os seus herdeiros materiais têm diligenciado pela contínua publicação e divulgação da sua obra (por vezes em edições que nada acrescentam à glória do autor, mas apenas ao pecúlio de quem recebe os direitos), em parte porque a sua personalidade transgressora mas afectiva deixou marcas fundas de amizade em seres que, desinteressadamente, pensam ser seu dever pugnar pela memória integral do poeta de Horto do Incêndio, mesmo que isso os obrigue a sofrer a hostilidade de alguns habitantes das trevas do nosso pífio meio literário.
Joaquim Cardoso Dias – autor de um auspicioso O Preço das Casas – pertence ao último grupo. Fiel a uma amizade intensa (“Al Berto [...] foi o mais perfeito dos amigos que a vida me ofereceu”), resolveu organizar um livro como forma de homenagem ao autor nos dez anos da sua morte. Sem interesses subreptícios. Apenas com o desejo de conservar a presença de um ser humano singular feito poeta. Apesar de, noutros tempos de maior inocência, não ter reconhecido a dura verdade das palavras de Pidwell Tavares (“Vivemos num país de merdas, Quim”), Joaquim Cardoso Dias vê-se obrigado a revelar no prefácio que “todos aqueles que de qualquer forma ou de todas as maneiras tentaram impedir a edição desta antologia [...] pensaram que este livro de homenagem a Al Berto seria um perigo explícito para as suas mentes perversas, circulares, mesquinhas”.
Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto é um belo livro, introduzido por um texto de Joaquim Cardoso Dias com passos comoventes. Discreto, atinge os seus objectivos. Entre as “quase duas centenas de cartas, postais, poemas, textos, recados, convites, confidências, desabafos, conselhos e tanta solidão”, o organizador escolheu uma dezena de missivas, de modo a apresentar “uma espécie de microbiografia” do autor, embora tendo o cuidado de seleccionar textos que não revelassem ou expusessem “entidades, acontecimentos ou situações susceptíveis de ferir ou desnudar atitudes, ressentimentos e interesses que se referem à vida privada de pessoas que conviveram com Al Berto”. Convidou ainda dez escritores (Alexandre Nave, Fernando Pinto do Amaral, Francisco José Viegas, José Agostinho Baptista, José Luís Peixoto, Luís Quintais, Nuno Artur Silva, Nuno Júdice, Tiago Torres Silva e Vasco Graça Moura) que aceitassem homenagear o poeta, comentando ou escrevendo a partir de cada uma das cartas, os quais produziram textos com género, intensidade e interesse muito diferentes.
Leitor assíduo de textos íntimos de artistas de todo o mundo, neste livro interessam-me sobretudo as dez cartas do poeta homenageado, reproduzidas em fac-símile e cuidadosamente transcritas. Se não constituem, de facto, uma “microbiografia” de Al Berto, estruturam-se enquanto retrato revelador, políptico com os traços sinuosos de Lucien Freud ou de Francis Bacon. Em todas elas, desnudam-se um imenso abandono e uma enorme melancolia, cortados apenas pela necessidade de intensificar um contacto epistolar e uma amizade que se estruturam enquanto analgésicos possíveis, enquanto dádivas: “é-me tudo tão indiferente, distante, aborrecido. mas por hoje basta de lamúria. tenho-te a ti, a quem escrevo, e que me dá imenso prazer fazê-lo. não devia queixar-me tanto.”
Quem deseje conhecer um pouco melhor a verdadeira face do poeta que se refugiava por vezes em Sines – localidade com que tinha uma relação contraditória (“nada é como era há alguns anos. tudo se modificou. as pessoas voltaram a uma espécie de bimbalhice surpreendente. Aflitivo.”) –, tem neste livro documentos indispensáveis. Entre 30.07.1989 e 17.04.1997 existiu uma intensa amizade entre dois autores que, quando um dia for totalmente revelada nas suas epístolas, permitirá entender melhor não só os sujeitos escreventes, mas também o meio literário e artístico em que se inseriram. Vislumbre desse documento, estas dez cartas merecem o tempo devotado à sua leitura.
Duas frases de Al Berto ficam na cabeça, talvez como máximas de vida. Conhecemos a doença que o afectava quando as escreveu, meses antes de morrer. Mas, mesmo assim, teimam não sair da memória: “Apenas o silêncio... depois da barafunda. Olhar para dentro e limpar... limpar – apenas o silêncio.”
Joaquim Cardoso Dias (org.)
Dez Cartas para Al Berto, Dez Cartas de Al Berto
Quasi Edições, 2007
Tempo do Advento
Fui buscar a minha filha ao infantário. Havia, por todos os espaços, enfeites de Natal. Fitei paredes e recantos. Barbas e mais barbas, árvores fingidas – mas do eixo e justificação da festa da Natividade, nem sombras. Do Menino Jesus, que tanto agradaria aos petizes (um entre iguais, pensariam...), nem vestígios. À entrada da sala da Sofia vi um conjunto de anjos, cada um com o nome de uma criança. Foi fraca compensação.
O cenário repete-se um pouco por todo o lado. Deus Menino é sinal de escândalo. A sua pobreza, fonte de fortaleza, não se encaixa na sociedade de consumo, onde todos somos vítimas de um anti-Cristo chamado “Economia”, que nos quer fracos e alienados. É preciso esconder (manipular, ridicularizar até) essa frágil criança que (se) tornou Deus presente. A ameaça é muito perigosa para o comércio do mundo.
Entrei em casa irritado. Tentei esbater esse mau sentimento com a leitura de um livro do poeta congolês Alain Mabanckou, Tant que les arbres s’ enracineront dans la terre. As suas palavras vieram no entanto ao encontro do que não me saía da cabeça. Traduzo: “eis que veio o tempo dos risos hipócritas / o tempo da mediocridade servida com todos os molhos / o tempo em que o homem já não descende do macaco / mas a ele retorna / o tempo dos vendedores ambulantes de quimeras / o tempo dos aprendizes de feiticeiro // eis que veio o reino dos homens vestidos de mentira / os novos Sísifos transportando o rancor / como insectos apocalípticos / condenados a rebolar trampa até à margem seguinte”. O bálsamo deste poeta vem da natureza (“eis contudo a montanha altiva / orgulhosa da sua altura // eis a montanha da alma / silenciosa guardiã da imensidade // eis a montanha que se cala há séculos / deseja apenas uma nesga de céu azul / erva sempre verde / orvalho matinal / um rebanho a pastar nas suas cercanias / pássaros de todas as espécies / a cantar”). As imagens de despojamento seduziram-me – sobretudo essa “montanha da alma”, tão ligada à espiritualidade de São João da Cruz – mas não me satisfizeram completamente.
*
Dia santo. Conforme a tradição recebida dos antepassados serranos, pus-me a preparar o presépio. Não tinha musgos, nem me dispus a comprá-los na florista. Os musgos precisam de pedras – e as que existem nesta minha colina de exílio não prestam para o seu crescimento. Reciclei a caixa dum brinquedo, oferecido à Sofia no dia do seu baptizado, para montar o altar doméstico ao Deus Menino. Peguei em cavacos de azinho e ramos de sobreira para criar um cenário plausível. (Cheira a Serra de São Mamede... Anestesia a distância...) Dispus as peças, este ano de marfinite, bonitas mas sem arte, resistentes contudo aos possíveis avanços de uma bebé activa (as de barro ficaram a espreitar no móvel). Terminado o trabalho, dei por mim reconciliado. Pelo menos aqui tentamos que as coisas sejam de outra maneira.
Folheando livros na biblioteca, veio ao meu encontro um velho conhecido, Antonio Colinas. Involuntariamente quase, pus-me a traduzir um poema seu que – talvez sem querer – me desejou um tempo do Advento tranquilo. Com a mesma intenção aqui deixo. Desejo-vos dias felizes “Com o Deus escondido”:
“Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio. / Que faze-mos tu e eu / aqui, nesta penumbra? // Tu escutas o meu silêncio / e eu escuto o teu, / e até parece que esquecemos / essoutro silêncio deste lugar sagrado / pelo qual estamos aqui, em princípio, / sem sequer sabermos para quê. / Talvez seja por esta ignorância, / pela qual decidimos ir cerrando os lábios, / e cerramos os olhos como se / nada nos importassem as nossas vidas e o mundo. // Uma mulher e um homem ardem no seu silêncio, / buscam no seu interior / o que não encontram fora: / o escondido deus, o deus desconhecido, / esse ser, ou esse espírito ou silêncio, / que se cala mais do que ninguém há muitos séculos? / Ou fala-nos oscilando na chama do altar? // E, no entanto, há entre tu e eu / uma gozosa atmosfera, / pois algo vem e vai entre os nossos corpos, / da tua mente para a minha mente, / dos teus olhos fechados para os meus olhos fechados, / do teu silêncio para o meu silêncio. // Talvez o que flui de maneira tão doce / seja essoutro silêncio / do deus desconhecido que se esconde, / mas que, por vezes (é certo!), nos envolve / como fogo, pois vai e vem como música, / recorda-nos e prova-nos / que estar contigo aqui, / que viver é, simplesmente, um milagre.”
AMADEU BAPTISTA
VENCE "PRÉMIO DE POESIA NATÉRCIA FREIRE"
O poema seguinte, que agradecemos a Amadeu Baptista, faz parte do seu livro "Poemas de Caravaggio", galardoado há poucos dias com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente.
Nesse concurso, foram atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa, e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.
O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês, Hebraico e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Publicou “As Passagens Secretas” (1982), “Green Man & French Horn” (1985), “Maçã” (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), “Kefiah” (1988), “O Sossego da Luz” (1989), “Desenho de Luzes” (1997), “Arte do Regresso” (1999) (Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, México), “As Tentações” (1999), “A Sombra Iluminada” (2000), “A Noite Ismaelita” (2000), “ A Construção de Nínive” (2001), “Paixão” (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes 2004), “Sal Negro” (2003), “O Som do vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro” (2003), “O Claro Interior” (2004) (Prémio de Poesia e Ficção de Almada), “Salmo” (2004), “Negrume” (2006), “Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007)” (2007) e “O Bosque Cintilante” (2007) (Prémio Nacional Sebastião da Gama 2007).
CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA
(para Silvino Oliveira)
Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:
sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial
– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.
A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.
Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.
Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.
Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.
Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.
O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.
Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:
a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.
Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.
Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.
Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.
Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.
Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.
No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado
e é nosso irmão.
VENCE "PRÉMIO DE POESIA NATÉRCIA FREIRE"
O poema seguinte, que agradecemos a Amadeu Baptista, faz parte do seu livro "Poemas de Caravaggio", galardoado há poucos dias com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente.
Nesse concurso, foram atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa, e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.
O Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.
Amadeu Baptista nasceu no Porto em 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e tem colaborações dispersas em vários jornais e revistas nacionais e estrangeiros. Poemas seus foram traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês, Hebraico e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos. Está representado em diversas antologias e livros colectivos. Publicou “As Passagens Secretas” (1982), “Green Man & French Horn” (1985), “Maçã” (1986) (Prémio José Silvério de Andrade - Foz Côa Cultural, 1985), “Kefiah” (1988), “O Sossego da Luz” (1989), “Desenho de Luzes” (1997), “Arte do Regresso” (1999) (Prémio Pedro Mir, na categoria de Língua Portuguesa, México), “As Tentações” (1999), “A Sombra Iluminada” (2000), “A Noite Ismaelita” (2000), “ A Construção de Nínive” (2001), “Paixão” (2003) (Prémio Vítor Matos e Sá e Prémio Teixeira de Pascoaes 2004), “Sal Negro” (2003), “O Som do vermelho - Tríptico Poético sobre pintura de Rogério Ribeiro” (2003), “O Claro Interior” (2004) (Prémio de Poesia e Ficção de Almada), “Salmo” (2004), “Negrume” (2006), “Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007)” (2007) e “O Bosque Cintilante” (2007) (Prémio Nacional Sebastião da Gama 2007).
CARAVAGGIO: SETE OBRAS DE MISERICÓRDIA
(para Silvino Oliveira)
Uma atitude plástica indomável
e arrebatamento rítmico nas figuras,
eis o que me interessa transmitir:
sou panteísta,
e sei como nas cores há um luxo físico
que torna o que é palpável
imaterial
– de modo que o que faço
é da rua que vem,
para que se transfigure em dom de imanência
e a alma e o espírito se cumpram nos pigmentos
para que tudo seja obra compassiva,
como um enigma de arrebatamento.
A minha vida é a cor
– e o recorte que o relevo da luz
lhe introduz
serve para que o universo vibre
e uma tensão grandíloqua se estabeleça,
entre a detonação da tela
e o espectador,
num repto total,
esmagador.
Ouso o fascínio,
mas, mais do que o fascínio,
aspiro ao coração
dos que vêem a tela interiormente,
sendo que os olhos
acumulam sortilégio
para que o entendimento desmorone
a falsidade que nos cerca e mata.
Eis a encomenda:
um quadro de grandes dimensões
que patenteie
as sete obras de misericórdia corporais,
dando relevo aos justos, obviamente,
mas também aos pecadores,
já que cada um deles é cada um de nós,
se a nossa prudência souber dizê-lo
de modo a não ardermos na fogueira.
Deu-me trabalho, o esboço:
a caridade existe,
mas é tão raro vê-la
que um pintor não sabe onde encontrar
modelo adequado,
mesmo que vá de igreja em igreja
a cuidar que, de repente,
encontra exemplo para a missão.
Tentei de tudo. Tentei, até, de mais.
Mas os dias passavam, e as noites,
e não me satisfazia com o que via,
os palácios a abarrotar de nobres
sem magnanimidade, e os pobres
sempre mais pobres, a morrer à míngua.
O mundo, agora, é só hipocrisia.
E, por isso mesmo, a minha regra
é não ter regra nenhuma
– em busca da brandura
vou de sítio em sítio,
a procurar um sentido nos sentidos,
ou alguém que não difame,
ou que não roube.
Só posso pelo sonho exorcizar-me;
mas o facto é que na rua é que anda tudo
– abrindo bem os olhos, em lida
extenuante, mas de grande prazer,
basta só olhar em volta e ver:
e ver é uma arte que faz toda a diferença.
E assim foi que vi os anjos nesta esquina,
e uma profusão de personagens
a perfazer o périplo das obras
misericordiosas:
a visitar os presos,
a dar de comer a quem tem fome,
a enterrar os mortos,
a cuidar dos enfermos,
a vestir os nus,
a dar de beber a quem tem sede,
a dar pousada aos peregrinos.
Olhando o quadro, agora pronto,
exposto na igreja do Pio Monte della Misericordia,
em Nápoles,
entendo que é pelo arrojo
que vou bem
– e fico impressionado
pelo que faço dos temas,
e como os meus impulsos artísticos resultam
em explosões categóricas de beatitude
de que até eu me assombro.
Toda a beleza é transcendência,
afirmo, de mim para comigo.
No meu tempo poucos haverá
que isto entendam, embotados
que estão de dogmas e preceitos
em que se relega o mundo
e nada vive como a vida é.
Martinho tira a capa e dá-a a um pobre.
Uma jovem mulher oferece o seio
a um velho preso da sua miserável condição
matando-lhe a fome e aliviando-o
do desgaste do castigo.
Um diácono clemente
manda que os coveiros
abram a terra e sepultem os cadáveres.
Um jovem, em tronco nu, ampara os doentes.
Um Sansão, sequioso, dessedenta-se com água
que alguém pôs no maxilar de um asno.
E Santiago aloja os peregrinos
com a ajuda de um almocreve adolescente.
Eis o meu quadro, a que juntei,
sobre a multidão,
uns anjos
para que se saiba
que não são dos anjos as tarefas dos homens,
e que o que é possível pode até tocar-se
se estendermos a mão ao nosso semelhante
– mesmo que ninguém veja,
mesmo que fique no segredo dos anjos a nossa acção,
mesmo que a partilha seja, apenas, nossa
e que nada, nem ninguém, nos agradeça
o gesto,
o acto.
Chamo-me Michelangelo Merisi Caravaggio
e ignoro
se sou cristão, ou não.
No caso, interessa pouco quem eu sou.
Sei é que deixo nesta terra
uma pequena herança
de luz
e movimento
e cor
que me fará feliz
se os homens se lembrarem
que pior que o esquecimento é a ingratidão,
e que ser ingrato nesta terra é não estar ao lado
de quem na vida vai ao nosso lado
e é nosso irmão.
José do Carmo Francisco
Padre Abel Varzim
– Uma memória viva que não é totalmente «pura»
Nasci em Santa Catarina (Caldas da Rainha) no ano de 1951 e vim morar para Lisboa em 1966 para a freguesia de Santa Catarina. O pároco era o Padre Rocha que dava sempre uma galinha ao aluno mais assíduo da catequese. Não tinha grandes dotes oratórios e por isso muitos dos seus fiéis «atraiçoavam» a paróquia e iam à missa da igreja da Encarnação para ouvir o Padre Oliveiros. Eu tinha quinze anos e naturalmente lá ia com os meus pais ouvir as histórias do Padre Oliveiros que punha muita gente a chorar com as vidas dos santos mas nunca falava dos assuntos que verdadeiramente faziam chorar as pessoas: a guerra colonial e as perseguições políticas da PIDE. Estávamos em 1966, eu tinha acabado o Curso Geral do Comércio com boas notas e, por isso, tinha começado logo a trabalhar num Banco. Mas em Vila Franca de Xira, onde tinha vivido desde 1961 a 1966, eu tinha pertencido à Pré-JOC que era impulsionada pelo senhor Vladimiro, o entusiasta da JOC que se deslocava numa bicicleta de três rodas e falava muito do fundador da JOC (monsenhor Cardjan) e do Padre Abel Varzim. As nossas reuniões começavam sempre com uma oração lembrando o exemplo do fundador da JOC.
Só muito tempo depois é que descobri as memórias, por interpostas pessoas, do Padre Abel Varzim no Bairro Alto. Bastou algum convívio com os vizinhos aqui da freguesia para ficar a saber que eram dois os grandes campos da preocupação do Padre Abel Varzim enquanto pároco: as prostitutas e os rapazes. Tentou dar às raparigas da vida uma nova vida levando-as para a Amadora onde aprendiam a costurar. O Mário Correia que foi muitos anos presidente da Assembleia de Freguesia da Encarnação é uma testemunha viva desse trabalho que o Padre Abel Varzim desenvolveu aqui.
O Mário Correia fazia parte de um grupo de rapazes, eram seis, que iam à missa do meio-dia mas não se queriam integrar em nenhum grupo: nem Escuteiros, nem Acção Católicas nem JOC, nem JEC. Percebendo o que se passava, o Padre Abel Varzim abordou o grupo e levou os rapazes para a sacristia onde falaram à vontade. Acabaram por fundar um movimento paroquial que foi uma escola de vida para todos. Passados cinquenta anos todos recordam os teatros e os jogos de futebol que o Padre Abel Varzim organizava para os seus rapazes.
Num tempo cinzento e fechado, num espaço bafiento e cheio de sombras, o Padre Abel Varzim tudo fez para iluminar caminhos. Fazendo o essencial: informando. Num país dominado pela Censura informar era (em si) um heroísmo. Por isso mesmo a PIDE o veio incomodar em 1959 por causa de uma carta a Salazar na qual ele e alguns católicos denunciavam a brutalidade da PIDE. O ditador endossou a carta à mesma PIDE que veio incomodar aqueles que tinham denunciado as suas brutalidades. O Padre Abel Varzim já não estava na paróquia desde 1957 mas continuava activo.
A morte em 1964 veio interromper uma trajectória de intervenção mas a sua memória continua a ser venerada por todos os que tiveram o privilégio de acompanharem a sua acção em prol da justiça social. Mesma aqueles que, como eu, apenas o conheceram numa memória transmitida e não totalmente pura. Mas atenção: é uma memória que não é pura porque foi diluída e alterada pelo afecto daqueles que com ele privaram em directo.
Padre Abel Varzim
– Uma memória viva que não é totalmente «pura»
Nasci em Santa Catarina (Caldas da Rainha) no ano de 1951 e vim morar para Lisboa em 1966 para a freguesia de Santa Catarina. O pároco era o Padre Rocha que dava sempre uma galinha ao aluno mais assíduo da catequese. Não tinha grandes dotes oratórios e por isso muitos dos seus fiéis «atraiçoavam» a paróquia e iam à missa da igreja da Encarnação para ouvir o Padre Oliveiros. Eu tinha quinze anos e naturalmente lá ia com os meus pais ouvir as histórias do Padre Oliveiros que punha muita gente a chorar com as vidas dos santos mas nunca falava dos assuntos que verdadeiramente faziam chorar as pessoas: a guerra colonial e as perseguições políticas da PIDE. Estávamos em 1966, eu tinha acabado o Curso Geral do Comércio com boas notas e, por isso, tinha começado logo a trabalhar num Banco. Mas em Vila Franca de Xira, onde tinha vivido desde 1961 a 1966, eu tinha pertencido à Pré-JOC que era impulsionada pelo senhor Vladimiro, o entusiasta da JOC que se deslocava numa bicicleta de três rodas e falava muito do fundador da JOC (monsenhor Cardjan) e do Padre Abel Varzim. As nossas reuniões começavam sempre com uma oração lembrando o exemplo do fundador da JOC.
Só muito tempo depois é que descobri as memórias, por interpostas pessoas, do Padre Abel Varzim no Bairro Alto. Bastou algum convívio com os vizinhos aqui da freguesia para ficar a saber que eram dois os grandes campos da preocupação do Padre Abel Varzim enquanto pároco: as prostitutas e os rapazes. Tentou dar às raparigas da vida uma nova vida levando-as para a Amadora onde aprendiam a costurar. O Mário Correia que foi muitos anos presidente da Assembleia de Freguesia da Encarnação é uma testemunha viva desse trabalho que o Padre Abel Varzim desenvolveu aqui.
O Mário Correia fazia parte de um grupo de rapazes, eram seis, que iam à missa do meio-dia mas não se queriam integrar em nenhum grupo: nem Escuteiros, nem Acção Católicas nem JOC, nem JEC. Percebendo o que se passava, o Padre Abel Varzim abordou o grupo e levou os rapazes para a sacristia onde falaram à vontade. Acabaram por fundar um movimento paroquial que foi uma escola de vida para todos. Passados cinquenta anos todos recordam os teatros e os jogos de futebol que o Padre Abel Varzim organizava para os seus rapazes.
Num tempo cinzento e fechado, num espaço bafiento e cheio de sombras, o Padre Abel Varzim tudo fez para iluminar caminhos. Fazendo o essencial: informando. Num país dominado pela Censura informar era (em si) um heroísmo. Por isso mesmo a PIDE o veio incomodar em 1959 por causa de uma carta a Salazar na qual ele e alguns católicos denunciavam a brutalidade da PIDE. O ditador endossou a carta à mesma PIDE que veio incomodar aqueles que tinham denunciado as suas brutalidades. O Padre Abel Varzim já não estava na paróquia desde 1957 mas continuava activo.
A morte em 1964 veio interromper uma trajectória de intervenção mas a sua memória continua a ser venerada por todos os que tiveram o privilégio de acompanharem a sua acção em prol da justiça social. Mesma aqueles que, como eu, apenas o conheceram numa memória transmitida e não totalmente pura. Mas atenção: é uma memória que não é pura porque foi diluída e alterada pelo afecto daqueles que com ele privaram em directo.
Nicolau Saião
(imagem & texto)
CHAVEZ PERDEU O APITO
Nas urnas, o Povo venezuelano disse a Chavez como queria por lá o panorama político: sem mandantes vitalícios. A pouco e pouco o mito "índio" deste cavalheiro primário e demagogo, falso amigo do Povo e malcriadão de primeira, vai-se desfazendo. Este émulo de Cunhal, de Fidel e, agora, de Sócrates, verá a sua hipocrisia de assecla de Stalin quebrar-se contra a democracia. Porque, entendamo-nos: não é por ser a favor do pobre que é nefando. Não! É porque é contra ele, fingindo que é a favor. Como todos os demagogos fazem, a exemplo destes aparatchikis lusitanos que nos fritam a paciência. O que está mal, pois, não é haver gente de esquerda. É haver gente que disso se finge e é apenas totalitária. Como Chavez. Como Fidel. Como o senhor de cá.
Permitir-me-ão que solte um viva à democracia e à liberdade?
SURREALISMO E FILOSOFIA PORTUGUESA
A troca de ideias (chamar-lhe polémica seria exagerado...) entre Pedro Sinde e António Cândido Franco sobre a relações entre o Surrealismo e a Filosofia Portuguesa continua no blogue Maranos. Sejam quais forem as nossas opiniões, são reflexões interessantes.
A troca de ideias (chamar-lhe polémica seria exagerado...) entre Pedro Sinde e António Cândido Franco sobre a relações entre o Surrealismo e a Filosofia Portuguesa continua no blogue Maranos. Sejam quais forem as nossas opiniões, são reflexões interessantes.
BOA NOTÍCIA!
Publicado aqui, este texto de José do Carmo Francisco constitui uma boa notícia para todos quantos apreciam a Poesia:
Poesia de todo o Mundo na Rua da Rosa
Soube por acaso que abriu uma livraria só de poesia na Rua da Rosa nº 145 em Lisboa. Além de livraria, o espaço também inclui um bar. Lá fui hoje beber uma taça de vinho branco à saúde de livraria e do bar, incluindo nos votos o Miguel Martins, poeta e contista, recém-chegado de Cabo Verde, autor dum livro com o curioso título de «Cirrose».
Para vos dar uma ideia da variedade dos livros desta jovem livraria, aí vão alguns nomes: José Blanc de Portugal, António José Forte, Carlos Queirós, Emanuel Félix, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Alexandre O’Neill, David Mourão Ferreira, Francisco Bugalho, Bocage, Al Berto e Carlos de Oliveira. Dos estrangeiros, Drummond de Andrade, Adélia Prado, Agostinho Neto e Ho Chi Minh com os seus célebres poemas de prisão. E muitas antologias: poesia argentina, poesia soviética, poesia brasileira, um nunca mais acabar. O horário é das 15 às 23 horas de segunda a sábado.
Um aspecto curioso é que eles procuram ter não só as novidades mas também clássicos, como (por exemplo) a colecção «Poetas de Hoje» da Portugália e o «Círculo de Poesia» da Moraes. Pessoalmente foi emocionante descobrir um livro meu de 1982 ainda à procura de leitor ao lado de um livro da minha filha, que desapareceu horas depois.
Não queria deixar de vos dar conta desta descoberta. Sei que nunca foi tão fácil publicar livros, mas também nunca foi tão difícil colocá-los no leitor. Comprar muitos livros não quer dizer ler muito. Mas é bonito ver esta teimosia. Agora que os dias do frio estão a chegar, nada como um livro de poemas para se conjugar com uma bebida destilada ou fermentada capaz de aquecer o coração. A poesia também é uma educação sentimental.
Publicado aqui, este texto de José do Carmo Francisco constitui uma boa notícia para todos quantos apreciam a Poesia:
Poesia de todo o Mundo na Rua da Rosa
Soube por acaso que abriu uma livraria só de poesia na Rua da Rosa nº 145 em Lisboa. Além de livraria, o espaço também inclui um bar. Lá fui hoje beber uma taça de vinho branco à saúde de livraria e do bar, incluindo nos votos o Miguel Martins, poeta e contista, recém-chegado de Cabo Verde, autor dum livro com o curioso título de «Cirrose».
Para vos dar uma ideia da variedade dos livros desta jovem livraria, aí vão alguns nomes: José Blanc de Portugal, António José Forte, Carlos Queirós, Emanuel Félix, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Alexandre O’Neill, David Mourão Ferreira, Francisco Bugalho, Bocage, Al Berto e Carlos de Oliveira. Dos estrangeiros, Drummond de Andrade, Adélia Prado, Agostinho Neto e Ho Chi Minh com os seus célebres poemas de prisão. E muitas antologias: poesia argentina, poesia soviética, poesia brasileira, um nunca mais acabar. O horário é das 15 às 23 horas de segunda a sábado.
Um aspecto curioso é que eles procuram ter não só as novidades mas também clássicos, como (por exemplo) a colecção «Poetas de Hoje» da Portugália e o «Círculo de Poesia» da Moraes. Pessoalmente foi emocionante descobrir um livro meu de 1982 ainda à procura de leitor ao lado de um livro da minha filha, que desapareceu horas depois.
Não queria deixar de vos dar conta desta descoberta. Sei que nunca foi tão fácil publicar livros, mas também nunca foi tão difícil colocá-los no leitor. Comprar muitos livros não quer dizer ler muito. Mas é bonito ver esta teimosia. Agora que os dias do frio estão a chegar, nada como um livro de poemas para se conjugar com uma bebida destilada ou fermentada capaz de aquecer o coração. A poesia também é uma educação sentimental.
José do Carmo Francisco
Procissão dos Passos
de Abel Varzim
O Padre Abel Varzim (1902-1964) foi uma das figuras mais importantes do catolicismo português do século XX. Com um doutoramento em Lovaina na área das Ciências Politico-Sociais, foi o grande impulsionador da LOC (Liga Operária Católica), dirigiu o jornal O Trabalhador e foi professor do Instituto de Serviço Social.
Faz agora 50 anos que o Padre Abel Varzim saiu da paróquia da Encarnação para onde tinha sido nomeado em 1951. Este livro corresponde às suas memórias atribuladas desse tempo pois foi já com 48 anos que o Padre Abel Varzim se viu confrontado com uma situação nova na sua vida sacerdotal. Vejamos algumas palavras: «Não foi difícil nem sequer demorado descobrir que, na área da paróquia, se acoitavam dezenas e dezenas de lupanares. O Governo Civil, a meu pedido, forneceu-me a lista completa deles, com a respectiva localização. Num mapa da freguesia marquei então cada uma dessas casas, para ter, diante dos meus olhos, a triste e detestável realidade. Não supunha, porém, a enorme chaga tão extensa nem tão profunda. Depressa verifiquei que a prostituição se entranhava no Bairro Alto como se fosse a medula dos seus ossos. Autêntico e temível cancro a invadir tudo e tudo corromper, que poderia construir de útil, sem atacar a raiz do mal? Depressa observei que muita gente da paróquia, incluindo frequentadores da igreja, vivia da prostituição, alugando quartos às prostitutas, tratando-lhes das roupas, cuidando-lhes dos filhos, acoitando mancebias, facilitando adultérios, encobrindo ligações precoces. Desde que lhes pagassem, tudo lhes parecia permitido.»
O Padre Abel Varzim (1902-1964) foi uma das figuras mais importantes do catolicismo português do século XX. Com um doutoramento em Lovaina na área das Ciências Politico-Sociais, foi o grande impulsionador da LOC (Liga Operária Católica), dirigiu o jornal O Trabalhador e foi professor do Instituto de Serviço Social.
Faz agora 50 anos que o Padre Abel Varzim saiu da paróquia da Encarnação para onde tinha sido nomeado em 1951. Este livro corresponde às suas memórias atribuladas desse tempo pois foi já com 48 anos que o Padre Abel Varzim se viu confrontado com uma situação nova na sua vida sacerdotal. Vejamos algumas palavras: «Não foi difícil nem sequer demorado descobrir que, na área da paróquia, se acoitavam dezenas e dezenas de lupanares. O Governo Civil, a meu pedido, forneceu-me a lista completa deles, com a respectiva localização. Num mapa da freguesia marquei então cada uma dessas casas, para ter, diante dos meus olhos, a triste e detestável realidade. Não supunha, porém, a enorme chaga tão extensa nem tão profunda. Depressa verifiquei que a prostituição se entranhava no Bairro Alto como se fosse a medula dos seus ossos. Autêntico e temível cancro a invadir tudo e tudo corromper, que poderia construir de útil, sem atacar a raiz do mal? Depressa observei que muita gente da paróquia, incluindo frequentadores da igreja, vivia da prostituição, alugando quartos às prostitutas, tratando-lhes das roupas, cuidando-lhes dos filhos, acoitando mancebias, facilitando adultérios, encobrindo ligações precoces. Desde que lhes pagassem, tudo lhes parecia permitido.»
(Editora: Multinova, Apresentação: Paulo Fontes, Comentário: Inês Fontinha, Apoio: Montepio Geral, Patrocínio: Câmaras Municipais de Barcelos e Póvoa do Varzim)
História da Branca de Neve
Uma volta por Espanha
(quadros e texto de Nicolau Saião)
Ir a Espanha, viajar por Espanha, percorrer os caminhos de Espanha - duma Espanha que nos
agrada, que é amorável e aventurosa – não é o mesmo que ir à Brandoa.
O que aliás até pode ser agradável se por lá tivermos um amor, um derriço, uma almoçarada
valente, um mistério por desvendar. Na Brandoa. Mas de facto não é o mesmo...
Começa-se pelo inevitável salero da terra-ela mesma, dessa terra que parece mais larga assim
que se cruza a fronteira. Preconceito de lusitano que já está um pouco cansado de politicões e
videirinhos deste país onde vigora a lei vígara do “muito tens muito vales”?
Talvez... Mas mais parece ser por amor a lugares onde se sente vibrar um hausto de limpeza e
de liberdade. Doces terras de Espanha...doces lugares da Extremadura!
Trocado por miúdos: veni, vidi, vici, como dizia o romano. Ou seja: armado do meu portfólio, consegui seduzir uns apreciadores e tive Natal antecipado, vendendo os bonecos, “cartões para painel de azulejo” por um preço muito consolador. Os que vos deixei algures num bloquinho viajeiro, para iluminar os olhos de quem me estimar.
No dia de S.Martinho, foi o meu presente – acompanhado de uns tragos do tinto dos Fortios e de
um punhadinho de castanhas assadas. E querem melhor iguaria, seja em Espanha ou em Portugal?
Ir a Espanha, viajar por Espanha, percorrer os caminhos de Espanha - duma Espanha que nos
agrada, que é amorável e aventurosa – não é o mesmo que ir à Brandoa.
O que aliás até pode ser agradável se por lá tivermos um amor, um derriço, uma almoçarada
valente, um mistério por desvendar. Na Brandoa. Mas de facto não é o mesmo...
Começa-se pelo inevitável salero da terra-ela mesma, dessa terra que parece mais larga assim
que se cruza a fronteira. Preconceito de lusitano que já está um pouco cansado de politicões e
videirinhos deste país onde vigora a lei vígara do “muito tens muito vales”?
Talvez... Mas mais parece ser por amor a lugares onde se sente vibrar um hausto de limpeza e
de liberdade. Doces terras de Espanha...doces lugares da Extremadura!
Trocado por miúdos: veni, vidi, vici, como dizia o romano. Ou seja: armado do meu portfólio, consegui seduzir uns apreciadores e tive Natal antecipado, vendendo os bonecos, “cartões para painel de azulejo” por um preço muito consolador. Os que vos deixei algures num bloquinho viajeiro, para iluminar os olhos de quem me estimar.
No dia de S.Martinho, foi o meu presente – acompanhado de uns tragos do tinto dos Fortios e de
um punhadinho de castanhas assadas. E querem melhor iguaria, seja em Espanha ou em Portugal?
OPERÁRIOS DA DEMOCRACIA
A reflexão final de Michel Winock no seu Le Siècle des Intellectuels reveste-se de consequência. Não repousando numa falsa neutralidade, a obra do historiador francês propõe aos intelectuais um caminho de acção humilde, no exercício do seu contrapoder crítico, cuja ética de probidade e discrição deverá constituir um cimento indispensável na construção da verdadeira democracia.
Chama-lhes "operários da democracia". A expressão agrada, na medida em que, levada a sério, resolve o exibicionismo de alguns e a instrumentalização espúria de outros, fornecendo critérios distintivos para se separarem os autênticos intelectuais de uma massa perigosa de imitadores interesseiros e oportunistas.
SOCIEDADES CRIMINAIS
Sándor Márai, um dos vultos cimeiros da narrativa europeia, escreveu nas suas Memórias da Hungria:
"Começámos a interrogar-nos sobre a responsabilidade do indivíduo num Estado criminal, culpado de actos ilegais no plano moral. Não será responsável na medida em que aprova ele mesmo esses actos e neles participa activamente? O seu dever primordial consiste certamente em se proteger e em proteger os seus - mas poderá ir ao ponto de executar as ordens que a sua consciência condena? Necessita sobreviver, como um camaleão, mas sem dar o seu concurso aos assassinatos cometidos pelo poder, sem beneficiar dos seus crimes desumanos nem aceitar os privilégios que lhe valeria uma eventual cumplicidade."
Sobre as "sociedades criminais" (que por vezes tomam a aparência de "democracias representativas") escreveu Nicolau Saião um artigo que merece ser lido. Ficamos muito mais esclarecidos.
Sándor Márai, um dos vultos cimeiros da narrativa europeia, escreveu nas suas Memórias da Hungria:
"Começámos a interrogar-nos sobre a responsabilidade do indivíduo num Estado criminal, culpado de actos ilegais no plano moral. Não será responsável na medida em que aprova ele mesmo esses actos e neles participa activamente? O seu dever primordial consiste certamente em se proteger e em proteger os seus - mas poderá ir ao ponto de executar as ordens que a sua consciência condena? Necessita sobreviver, como um camaleão, mas sem dar o seu concurso aos assassinatos cometidos pelo poder, sem beneficiar dos seus crimes desumanos nem aceitar os privilégios que lhe valeria uma eventual cumplicidade."
Sobre as "sociedades criminais" (que por vezes tomam a aparência de "democracias representativas") escreveu Nicolau Saião um artigo que merece ser lido. Ficamos muito mais esclarecidos.
Matilde Rosa Araújo
SABER LER NA VIDA
Saber ler na vida - folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito,
iluminada essência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.
(in Voz Nua, 2001)
SABER LER NA VIDA
Saber ler na vida - folhear honestamente a vida
Apaixonadamente a vida
Nas arcas da noite, nas arenas do dia:
Risos, lágrimas, serenos rostos aparentes
Como se abríssemos cada dia a verde lima do espanto.
Não passar folhas em branco sem as entender,
Olhar rostos como quem tacteia rugas
Descobrindo planetas de mágoa ou rios de alegria.
A primeira página e o segredo puro dos acabados de gritar o primeiro grito,
iluminada essência do futuro.
E tudo isto
Entre vermes, frutos, flores, rinocerontes, pássaros,
Cães fiéis
Águas e pedras
E o fraterno fogo que acendemos a cada hora,
No espaço branco que é estendermos a nossa mão
Para outra mão apertarmos simplesmente
Mão pela qual corre o sangue como um rio de fogo.
Só temos uns tantos anos para lermos este livro
Debaixo do Sol,
Ou sob o aço da noite
Para este fogo tecer.
Chamarás ciência cultura vida dor espada ou espanto a tudo isto
Ou ilegível monotonia.
Nada. Mas lê.
(in Voz Nua, 2001)
ENCONTRO
Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
“Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956”
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha repartida biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
“Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]”
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.
Não existe ser humano que não recorde um encontro feliz, porque inesperado. Numa das minhas deambulações bibliófilas pelos alfarrabistas da capital, tive há uns tempos um desses momentos. Esperaria encontrar de tudo ou toda a gente naquele espaço discreto, como que enxertado numa das mais belas ruas de Lisboa. Menos ele.
Enquanto, entre as mãos, limpava o pó acumulado sobre a capa do volume cinzento, com moldura azul e vermelha, era já grande a minha satisfação. Tinha a manhã ganha, pois há muito procurava aquela célula quase esquecida de um amigo que guardo no peito. Comecei então a folhear as 72 páginas desse discreto livro de poemas intitulado Cio, publicado por Carlos Garcia de Castro em 1955.
A surpresa do encontro (encontrar o livro de um autor, há muito procurado, é encontrá-lo a ele, embora sem o calor do abraço muscular...) não ficaria por aqui. Ao levantar a capa, li com emoção uma dedicatória:
“Ao / Manuel d’ Assunção, com o / abraço da melhor amizade e admi- / ração, oferece o / Carlos Garcia de Castro / Lx. Março. 1956”
Era-me conhecida a amizade que ligou o poeta portalegrense ao grande pintor surrealista e abstraccionista D’ Assumpção. Saíram da pena do autor d’ Os Lagóias e os Estrangeiros algumas das melhores páginas que até hoje se escreveram sobre o artista, considerações e reflexões que foram aos alicerces da sua obra e da sua personalidade artística. Bastará lermos os textos publicados em catálogos, em revistas ou no Fanal d’ O Distrito de Portalegre (nº 1, 19/05/2000). A “amizade” e a “admiração” por D’ Assumpção, manifestadas na dedicatória, eram sinceras, portanto. Quem conhece Carlos Garcia de Castro (homem de qualidade, frontal e vertical em todas as horas), outra coisa não esperaria.
A chegada à minha repartida biblioteca deste exemplar do Cio foi, portanto, fonte de emoção. Juntei num único objecto a presença de um poeta que admiro como escritor e como ser humano à de um pintor cuja obra faz parte das minhas referências artísticas. Há dias e encontros felizes...
Carlos Garcia de Castro considera hoje que este seu primeiro livro é sobretudo “um documento poético que não tem nada de particular, (...) resultante de uma envolvência de gostos, para aquela época em que [foi] educado, ilustrando o tempo dos dois primeiros anos da faculdade” (assim o declarou em entrevista ao suplemento Fanal, de 22/2/2002). Sendo, na verdade, um produto poético digno (em que, no entanto, vemos apenas florescer a intensidade verbal que caracteriza a obra do poeta), revela no seu todo uma poesia que ainda se lê com interesse, situada, já naquele tempo, a anos-luz dos pilritos dados a lume por certos versejadores. Revelador é, por exemplo, o poema “Deslumbramento” (reflexão surrealizante sobre “O Último Bailado”, de D´Assumpção, obra então exposta no Café Plátano portalegrense, hoje no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian):
“Uma colcha fria, / de mil pedrarias indiferentes, / o livro impávido da noite, / onde crepita o nada das aragens / e o roçagar das ramagens / a estremecerem cetim. // [...] // Nós temos a Certeza e a Visão - / duma absoluta-relativa dó: / um astro-rei no céu, / e as barbas dum gigante numa árvore-anã! // E casas, montes, rios e valados, / e sonhos, alegrias, sofrimentos - / a dor! as brumas e o sol, / místicos abraços criminosos... // [...] // Ternos, duvidosos, dualistas, / os deuses que nós somos: / fica revibrante a vida que retemos, / e damos ao que é bruto / o mito que abrangemos sem o ter. [...]”
Nisto tudo, há uma memória artística e humana que acalenta. Um acto de amizade (um livro oferecido por um amigo, onde um poema reflecte sobre a obra do amigo a quem é dedicado) torna-se presença material. Como escreve Garcia de Castro, “Do que mais custa sermos só memória / são os afectos dela então esquecidos / que só a morte leva para os deixar, / sem nunca mais quem morre os ter consigo”. Que a memória permaneça, digna, desta ou doutra forma.
José do Carmo Francisco
Hugo Santos –
Do poema como oração e como voz da Terra
Rezar é sempre a tentativa (nem todas as vezes realizada) de unir dois mundos – o da terra e o do céu, o material e o espiritual, o dos homens e o de Deus. Ao colocar-se de joelhos o crente mais não faz do que recordar nesse gesto a sua origem e o seu fim anunciado. Sabe que veio do pó, é pó e em pó se há-de tornar mas rezando ele (o crente) procura elevar as suas palavras do rés da terra para o reino superior que ele nunca viu mas pressente, que ele nunca tacteou mas reconhece, que ele nunca visitou mas sabe nomear.
Religando o que o tempo separou ele (o crente) procura ascender a uma relação superior. Algo mais do que o emprego, o café, o supermercado, o stand de automóveis, a loja de pronto-a-vestir, o centro comercial.
Rezar é tentar criar outra realidade dentro da quotidiana realidade prática, mercantil, de desperdício. Para quem tem os pés bem assentes na terra (sua condição e seu limite) rezar é uma viagem entre dois mundos, a veloz ligação entre dois tempos, a procura de uma ponte a unir dois espaços.
O poema (tal como a oração) procura ligar, unir, juntar o que a erosão do tempo separou no coração dos homens. O poeta, obscuro sacerdote duma liturgia de silêncio, procura resgatar no poema (que a folha de papel testemunha) uma outra ponte feita de palavras entre a fronteira e o limiar do país sentimental que o ignora.
A infância, a voz da mãe, as colheitas perdidas, a azeitona nos lagares, a lavoura vagarosa dos dias da inocência que nenhum banco financia e sobre a qual nenhuma companhia ou corrector se atreve a emitir uma apólice de seguro, são todos eles, bocados de terra. A mesma terra onde o crente ajoelha para rezar. E mesmo o estádio na cidade, lugar de romaria e de culto, altar urbano de um ritual de ofertório e consagração, cântico e comunhão nas vitórias e nas derrotas, o estádio é também um bocado de terra.
Na grande solidão do Mundo, perdido entre o precário do amor e o inevitável da morte, resta ao crente o lugar da oração. Por isso reza. Perdido entre o peso da morte e a ostensiva falta de atenção, valor e importância que o Mundo dá à vida verdadeira (deixando-se resvalar para uma vida virtual, em diferido e por interposta realidade) resta ao poeta o lugar do poema. Por isso escreve. Afinal escrever é uma forma de rezar na desolada paisagem do seu quotidiano cada vez mais cinzento, vazio e hostil.
Por uma estranha sucessão de coincidências soube há muitos anos que a casa que (sei hoje) habita este livro tem um poço dentro dela. Fui um dia a Campo Maior à Festa das Flores e mostraram-me a casa do poeta. Aquele poço dentro da casa remeteu-me para a minha própria infância. Ao lado da casa do meu avô, casa onde nasci no já distante ano de 1951, havia uma taberna e um poço onde o seu dono mergulhava um cesto de vime cheio de gasosas, laranjadas e cervejas. Essa frescura vinda dessa água nunca mais se repetiria porque foi substituída pelo gelo dos frigoríficos e é outra coisa.
A luz das pequenas coisas é também a memória de uma casa e, por isso, começa com estas palavras: Primeiro falemos da casa, da rua, das vozes.
Mas a casa não é só paisagem: é também povoamento. A casa é povoada pelas pequenas coisas que são: Um livro, uma sépia traída pelo tempo, o vago sopro duma voz que se interpôs entre a mão e o afago que a reclamava.
Antes de Hugo Santos já Raul Brandão tinha proclamado que a ternura é húmida. Na página 10 deste livro se percebe como a água do poço da cozinha da casa, inunda de humidade e de ternura as palavras do poeta. Vejamos:
Creio que amei aqui / o que não poderia ter amado em qualquer outro lugar do mundo. / E, no entanto, é-me grato pensar que uma perene eternidade / avalizou cada uma das minhas emoções. / Ou, melhor sempre houve uma asa a percorrer o sagrado território / situado (sitiado) entre as palavras e os silêncios.
Situado e sitiado entre a palavra e o silêncio, resta ao poeta romper esse impasse pelo poema que é uma ponte a ligar dois Mundos:
Uso-me e gasto-me no coração mais profundo das palavras. / ou, talvez não bem um coração profundo mas uma indefesa concha / que, pelo refluir das marés, recobra o secreto desvelo das águas / e o devolve à fala ou à escrita que o requer.
Na poesia como na outra agricultura há muitas colheitas perdidas. Por isso mesmo o poeta obriga-se a ser também o repórter das chuvas de Setembro:
Olhai; aí está a luz, o vento, a água, o suave perfume / das flores do loendreiro e, perene, o quotidiano aviso da eternidade. / Depois, lento como um afago, o harpejo suave duma gota de orvalho / que em breve retomará o ofício proclamador das primeiras chuvas.
Se a casa é o lugar da água e da vida, o Terreiro é o lugar do encontro com os outros, os que tiveram caminhos e memórias comuns na infância já distante:
Tu lembras-te? perguntam. Talvez minta e lhes diga que sim, que me lembro / de tudo quanto está ali e parece comover-me / como se o tempo não fosse mais que o canhestro prestidigitador / que as ilusões e as nostalgias necessitam para se acercarem / das emoções que as antecederam.
O poeta mente porque é um fingidor mas na verdade não tem ilusões:
Tive uma bicicleta e um sonho, mas nunca a glória / de ter almejado a distância entre a flor e o livro / o voo da ave e o salvo-conduto das águas e do vento. / Não estive só; muitos outros me acompanharam. / Ouviu-se sempre o eco dos passos de quantos, a meu lado / subiram a rua e procuraram a teia e o casulo da casa.
A única certeza feliz é a ligação do poeta à sua terra natal:
A minha terra tem, inegavelmente, a forma do meu coração. / Notai como nela se escuta ainda o balbucio de antigas águas. / Atentai no silêncio. Reparai como nele se cruzam / todas as palavras, mesmo as mais distantes e impronunciáveis. / A eternidade começa aqui.
A lucidez do poeta avisa e proclama que muita coisa poderia ter sido feita
Eu poderia ter amado mais que o lento acordar das vozes submersas. / Poderia ter escrito todos os nomes no poço mais fundo da alma e beber todos os dias a água fresca desses nomes. / Poderia tê-los escrito à lareira e permitir que eles fossem a labareda ágil e eterna que habita o coração dos homens.
Poderia ter feito isso o muito mais mas o poeta escolheu o seu ofício
Contento-me com as palavras deslizando de manso sobre o papel. / Há entre mim e elas, creio que o disse já, um pacto de sangue onde cabe sempre um voo inesperado / dum pássaro insurrecto, planador de confins. / Talvez nem eu nem elas atentemos nas distâncias / que juntos percorremos nem esse seja o mester / para que as palavras foram escritas.
É nesse ofício que ele procura vencer o pó do esquecimento, o mesmo é dizer da morte
Inomináveis filhos do nada para o nada caminhamos. / Fica-nos às vezes a luz e a melodia dum poema. / Dizemo-lo então de nós a nós e é então que a casa, as árvores / e as palavras resplandecem. Quem pode pedir-nos mais?
Só o poema e a palavra do poema ficam quando tudo se perde no silêncio
Como um nómada indeciso, caminha o poema sobre o papel. / água vegetal, angular pedra da casa, trave-mestra da emoção, aqui me tens. / Carne e espírito do tempo, devolvo-te intacto ao secreto lugar onde os rios incendeiam as suas águas na volúpia da nascente.
Todos os poetas aspiram a ser a voz da terra mesmo que essa voz, para ser solene e altiva, surja na humidade e na ternura das pequenas coisas:
Ah, como dizer de outra forma da harmonia das pequenas coisas?
Notai como mesmo as que se ausentaram, persistem.
É escutá-las agora, por dentro das caixas-de-música dos silêncios
Numa mansidão que parece feita para a solícita comoção
dos que chegam e dos que partem.
Inesgotáveis veias da casa, multiplicam-se para lá dela.
Só depois, ao fechar da noite, se tornam violinos de vento.
(Lido na cerimónia de entrega do Prémio Cidade de Almada / Poesia a Hugo Santos)
Hugo Santos –
Do poema como oração e como voz da Terra
Rezar é sempre a tentativa (nem todas as vezes realizada) de unir dois mundos – o da terra e o do céu, o material e o espiritual, o dos homens e o de Deus. Ao colocar-se de joelhos o crente mais não faz do que recordar nesse gesto a sua origem e o seu fim anunciado. Sabe que veio do pó, é pó e em pó se há-de tornar mas rezando ele (o crente) procura elevar as suas palavras do rés da terra para o reino superior que ele nunca viu mas pressente, que ele nunca tacteou mas reconhece, que ele nunca visitou mas sabe nomear.
Religando o que o tempo separou ele (o crente) procura ascender a uma relação superior. Algo mais do que o emprego, o café, o supermercado, o stand de automóveis, a loja de pronto-a-vestir, o centro comercial.
Rezar é tentar criar outra realidade dentro da quotidiana realidade prática, mercantil, de desperdício. Para quem tem os pés bem assentes na terra (sua condição e seu limite) rezar é uma viagem entre dois mundos, a veloz ligação entre dois tempos, a procura de uma ponte a unir dois espaços.
O poema (tal como a oração) procura ligar, unir, juntar o que a erosão do tempo separou no coração dos homens. O poeta, obscuro sacerdote duma liturgia de silêncio, procura resgatar no poema (que a folha de papel testemunha) uma outra ponte feita de palavras entre a fronteira e o limiar do país sentimental que o ignora.
A infância, a voz da mãe, as colheitas perdidas, a azeitona nos lagares, a lavoura vagarosa dos dias da inocência que nenhum banco financia e sobre a qual nenhuma companhia ou corrector se atreve a emitir uma apólice de seguro, são todos eles, bocados de terra. A mesma terra onde o crente ajoelha para rezar. E mesmo o estádio na cidade, lugar de romaria e de culto, altar urbano de um ritual de ofertório e consagração, cântico e comunhão nas vitórias e nas derrotas, o estádio é também um bocado de terra.
Na grande solidão do Mundo, perdido entre o precário do amor e o inevitável da morte, resta ao crente o lugar da oração. Por isso reza. Perdido entre o peso da morte e a ostensiva falta de atenção, valor e importância que o Mundo dá à vida verdadeira (deixando-se resvalar para uma vida virtual, em diferido e por interposta realidade) resta ao poeta o lugar do poema. Por isso escreve. Afinal escrever é uma forma de rezar na desolada paisagem do seu quotidiano cada vez mais cinzento, vazio e hostil.
Por uma estranha sucessão de coincidências soube há muitos anos que a casa que (sei hoje) habita este livro tem um poço dentro dela. Fui um dia a Campo Maior à Festa das Flores e mostraram-me a casa do poeta. Aquele poço dentro da casa remeteu-me para a minha própria infância. Ao lado da casa do meu avô, casa onde nasci no já distante ano de 1951, havia uma taberna e um poço onde o seu dono mergulhava um cesto de vime cheio de gasosas, laranjadas e cervejas. Essa frescura vinda dessa água nunca mais se repetiria porque foi substituída pelo gelo dos frigoríficos e é outra coisa.
A luz das pequenas coisas é também a memória de uma casa e, por isso, começa com estas palavras: Primeiro falemos da casa, da rua, das vozes.
Mas a casa não é só paisagem: é também povoamento. A casa é povoada pelas pequenas coisas que são: Um livro, uma sépia traída pelo tempo, o vago sopro duma voz que se interpôs entre a mão e o afago que a reclamava.
Antes de Hugo Santos já Raul Brandão tinha proclamado que a ternura é húmida. Na página 10 deste livro se percebe como a água do poço da cozinha da casa, inunda de humidade e de ternura as palavras do poeta. Vejamos:
Creio que amei aqui / o que não poderia ter amado em qualquer outro lugar do mundo. / E, no entanto, é-me grato pensar que uma perene eternidade / avalizou cada uma das minhas emoções. / Ou, melhor sempre houve uma asa a percorrer o sagrado território / situado (sitiado) entre as palavras e os silêncios.
Situado e sitiado entre a palavra e o silêncio, resta ao poeta romper esse impasse pelo poema que é uma ponte a ligar dois Mundos:
Uso-me e gasto-me no coração mais profundo das palavras. / ou, talvez não bem um coração profundo mas uma indefesa concha / que, pelo refluir das marés, recobra o secreto desvelo das águas / e o devolve à fala ou à escrita que o requer.
Na poesia como na outra agricultura há muitas colheitas perdidas. Por isso mesmo o poeta obriga-se a ser também o repórter das chuvas de Setembro:
Olhai; aí está a luz, o vento, a água, o suave perfume / das flores do loendreiro e, perene, o quotidiano aviso da eternidade. / Depois, lento como um afago, o harpejo suave duma gota de orvalho / que em breve retomará o ofício proclamador das primeiras chuvas.
Se a casa é o lugar da água e da vida, o Terreiro é o lugar do encontro com os outros, os que tiveram caminhos e memórias comuns na infância já distante:
Tu lembras-te? perguntam. Talvez minta e lhes diga que sim, que me lembro / de tudo quanto está ali e parece comover-me / como se o tempo não fosse mais que o canhestro prestidigitador / que as ilusões e as nostalgias necessitam para se acercarem / das emoções que as antecederam.
O poeta mente porque é um fingidor mas na verdade não tem ilusões:
Tive uma bicicleta e um sonho, mas nunca a glória / de ter almejado a distância entre a flor e o livro / o voo da ave e o salvo-conduto das águas e do vento. / Não estive só; muitos outros me acompanharam. / Ouviu-se sempre o eco dos passos de quantos, a meu lado / subiram a rua e procuraram a teia e o casulo da casa.
A única certeza feliz é a ligação do poeta à sua terra natal:
A minha terra tem, inegavelmente, a forma do meu coração. / Notai como nela se escuta ainda o balbucio de antigas águas. / Atentai no silêncio. Reparai como nele se cruzam / todas as palavras, mesmo as mais distantes e impronunciáveis. / A eternidade começa aqui.
A lucidez do poeta avisa e proclama que muita coisa poderia ter sido feita
Eu poderia ter amado mais que o lento acordar das vozes submersas. / Poderia ter escrito todos os nomes no poço mais fundo da alma e beber todos os dias a água fresca desses nomes. / Poderia tê-los escrito à lareira e permitir que eles fossem a labareda ágil e eterna que habita o coração dos homens.
Poderia ter feito isso o muito mais mas o poeta escolheu o seu ofício
Contento-me com as palavras deslizando de manso sobre o papel. / Há entre mim e elas, creio que o disse já, um pacto de sangue onde cabe sempre um voo inesperado / dum pássaro insurrecto, planador de confins. / Talvez nem eu nem elas atentemos nas distâncias / que juntos percorremos nem esse seja o mester / para que as palavras foram escritas.
É nesse ofício que ele procura vencer o pó do esquecimento, o mesmo é dizer da morte
Inomináveis filhos do nada para o nada caminhamos. / Fica-nos às vezes a luz e a melodia dum poema. / Dizemo-lo então de nós a nós e é então que a casa, as árvores / e as palavras resplandecem. Quem pode pedir-nos mais?
Só o poema e a palavra do poema ficam quando tudo se perde no silêncio
Como um nómada indeciso, caminha o poema sobre o papel. / água vegetal, angular pedra da casa, trave-mestra da emoção, aqui me tens. / Carne e espírito do tempo, devolvo-te intacto ao secreto lugar onde os rios incendeiam as suas águas na volúpia da nascente.
Todos os poetas aspiram a ser a voz da terra mesmo que essa voz, para ser solene e altiva, surja na humidade e na ternura das pequenas coisas:
Ah, como dizer de outra forma da harmonia das pequenas coisas?
Notai como mesmo as que se ausentaram, persistem.
É escutá-las agora, por dentro das caixas-de-música dos silêncios
Numa mansidão que parece feita para a solícita comoção
dos que chegam e dos que partem.
Inesgotáveis veias da casa, multiplicam-se para lá dela.
Só depois, ao fechar da noite, se tornam violinos de vento.
(Lido na cerimónia de entrega do Prémio Cidade de Almada / Poesia a Hugo Santos)
José do Carmo Francisco
Nenhuma palavra nos salva
de Rute Mota
Rute Mota é uma jovem autora (1980) mas convoca no que escreve muita experiência adquirida nos jornais (como DN Jovem) ou nas revistas como Periférica e Pessoal. Há um evidente domínio da linguagem poética que reflecte sobre o seu próprio modo de criação:
«Tudo quanto escrevo / cabe em dois ou três versos / como por exemplo / terra-de-ninguém / debaixo dos passos.»
Tal como reflecte também a sua relação com o Mundo:
«Não é poesia isto que faço / tão só corda que entreteço / e agarro / – para não cair do mundo.»
Os poemas, tal como tudo na vida, não se medem aos palmos. Vejamos a sabedoria deste três versos: «São os mortos / que sustentam a terra / e a tornam habitável.»
Entre o inevitável da morte e a fragilidade do amor, o poema é um intervalo: «Um barco sem nome singra / na memória – a outra vida.»
As palavras são pronunciadas por uma voz mas vários são os sentidos dessa pronúncia: «Se a voz, pequeno segredo / se desfaz / na voz, outro segredos / se levantam.»
Um excelente livro de estreia, num volume de 90 páginas com uma poesia de síntese, alheia ao excesso e fascinada pelo rigor.
(Edição: Livro do Dia Editores, Capa: Rui Gil)
de Rute Mota
Rute Mota é uma jovem autora (1980) mas convoca no que escreve muita experiência adquirida nos jornais (como DN Jovem) ou nas revistas como Periférica e Pessoal. Há um evidente domínio da linguagem poética que reflecte sobre o seu próprio modo de criação:
«Tudo quanto escrevo / cabe em dois ou três versos / como por exemplo / terra-de-ninguém / debaixo dos passos.»
Tal como reflecte também a sua relação com o Mundo:
«Não é poesia isto que faço / tão só corda que entreteço / e agarro / – para não cair do mundo.»
Os poemas, tal como tudo na vida, não se medem aos palmos. Vejamos a sabedoria deste três versos: «São os mortos / que sustentam a terra / e a tornam habitável.»
Entre o inevitável da morte e a fragilidade do amor, o poema é um intervalo: «Um barco sem nome singra / na memória – a outra vida.»
As palavras são pronunciadas por uma voz mas vários são os sentidos dessa pronúncia: «Se a voz, pequeno segredo / se desfaz / na voz, outro segredos / se levantam.»
Um excelente livro de estreia, num volume de 90 páginas com uma poesia de síntese, alheia ao excesso e fascinada pelo rigor.
(Edição: Livro do Dia Editores, Capa: Rui Gil)
João Garção
Educação e ensino - PROTEGER, CAPACITANDO
(Texto da conferência efectuada na FNAC da R. de Sta. Catarina, no âmbito da semana do Instituto Politécnico do Porto)
Há alguns anos, uma Universidade apresentou um cartaz promocional no qual se salientava que os peixes maiores comem os mais pequenos e que os primeiros, mais agressivos, estão em situação de vantagem perante os segundos na luta pela sobrevivência. A analogia com a vida social é evidente: extremando-se as posições, há que comer e evitar ser comido e há que matar para não morrer. Capacidades que, pelos vistos, essa instituição ajudaria a adquirir...
Pessoalmente, tenho sérias dúvidas sobre a correcção ética desta forma de procurar captar potenciais alunos, uma vez que a Escola - qualquer escola - deverá formar pessoas sensatas e creio não haver sensatez em apelos dirigidos às mais primitivas e menos nobres pulsões do ser humano, como não a haverá na aceitação fácil do ‘darwinismo social’ como fundamento da organização das sociedades.
Seja como for - e já fora deste quadro de valores - não estranharia se me dissessem que essa campanha promocional tinha sido, afinal, um sucesso, chegando a um número muito significativo de candidatos. Na verdade, em sociedades em acelerada transformação, como são aquelas da nossa contemporaneidade, a rápida redefinição/reinvenção dos quadros sociais no qual o indivíduo se move suscita-lhe vários temores e angústias, os quais parecem ser mais facilmente apaziguados e mesmo ultrapassados se houver a aquisição de um estatuto social que sobreleve o dos seus concidadãos. Ora, para muitos portugueses, as instituições de ensino superior continuam a ser encaradas como apetecíveis mecanismos que, num mundo crescentemente complexo e competitivo, conferem essa tão almejada posição. Contudo, como sabemos, a realidade não é assim tão linear.
As apreciações que acabei de fazer não impedem, é claro, que constate o óbvio: a existência (hoje como sempre, afinal) de um clima de profunda competição entre os indivíduos e entre as nações - agora talvez mais exacerbado por via das enormes mudanças, nos mais diversos domínios, que resultam das constantes inovações dos dispositivos tecnológicos de que os seres humanos vão dispondo. Esta nossa ‘Aldeia Global’ de que nos falou Marshall McLuhan parece estar cada vez mais globalizada, mais pequena e mais povoada e é neste contexto, frequentemente percepcionado como turbulento, que os Estados e os indivíduos vão procurando responder aos desafios que se lhes vão colocando.
O nosso país não é, obviamente, uma excepção. No esforço de modernização que tem empreendido ao longo das últimas décadas, Portugal tem sido apresentado de forma algo ambivalente – ora visto como ‘bom aluno’, ora encarado como exemplo a evitar. Independentemente deste facto – que, ao fim e ao cabo, reflectirá a existência de diversas boas práticas a correr em paralelo a outras profundamente reprováveis – a Educação tem estado sempre no centro dos diversos discursos relacionados com as correctas metodologias de promoção do desenvolvimento do país - mesmo que nem sempre a prática confirme essas disposições.
A recente implementação de uma nova oferta formativa profissionalizante, os denominados Cursos de Especialização Tecnológica, insere-se nesse esforço de modernização. O Decreto-Lei n.º 88/2006, de 23 de Maio, que reorganiza o funcionamento dos CET, é claro em relação a este aspecto, indicando que essa reorganização tem como objectivo último ‘fomentar a competitividade do país’, sendo para tal indispensável qualificar o seu capital humano, sobretudo o mais jovem, almejando-se que estes ‘não entrem para o mercado de trabalho sem uma prévia qualificação profissional orientada para os perfis profissionais em défice’. Tratando-se de Cursos pós-secundários não superiores, visando a aquisição do Nível 4 de formação profissional, possibilitam, no entanto, o prosseguimento de estudos a nível do ensino superior, sobretudo mediante a prévia definição de cursos existentes em estabelecimentos de ensino superior aos quais o detentor de um Diploma de Especialização Tecnológica se pode candidatar, bem como das unidades curriculares dos respectivos planos de estudos de cuja frequência se encontram dispensados.
Não deixa de ser interessante constatarmos que no Preâmbulo do diploma legal a que atrás aludo expressamente se indica, por duas vezes nos três primeiros parágrafos, que um dos objectivos do Governo é o incremento da competitividade do país, mas com coesão social.
Permito-me sublinhar este aspecto porque ele me parece ser bem sintomático de um dilema com que os actuais governantes dos diferentes países estão a ser confrontados e a que o sociólogo Jacques Donzelot tem dedicado particular atenção: o facto de a competitividade e a coesão social já não andarem necessariamente de mãos dadas. Com efeito, a chamada ‘Crise do Estado Providência’, que, independentemente da componente ideológica adversa com que alguns se têm armado para contra ele arremeterem, me parece ser, sobretudo, o resultado de uma constatação óbvia – a de os recursos disponíveis serem finitos, ao passo que as solicitações são potencialmente ilimitadas - essa crise, dizia, tem obrigado os Estados a redefinirem algumas das suas formas de actuação. A própria OCDE tem entendido como indispensável que essa reforma se processe e que os Estados, mais do que efectuarem despesas sociais, façam investimentos sociais. A mudança não é superficial, apesar de, à primeira vista e com uma apreciação simplificada, poder parecer pouco profunda. Não nos deixemos enganar, pois essas alterações semânticas traduzem, afinal, uma maneira muito diferente de entender o papel do Estado no seu relacionamento com os cidadãos que o integram. Mais do que protegê-los, entende-se actualmente que o Estado os deve capacitar, dotando-os de meios que lhes permitam adquirir uma melhor formação, visando uma igualmente melhor integração no mercado de trabalho e, por essa via, na própria sociedade. Daí que o investimento no chamado capital humano seja considerado indispensável atendendo a duas vertentes, afinal complementares: a que se refere ao actual quadro de redefinição do papel do próprio Estado relativamente aos indivíduos; e a que tem a ver com o actual panorama de exacerbada competição à escala mundial.
Para que essa integração se processe de forma tendencialmente perdurável (e para além desse trabalho formativo visando ‘armar’ os indivíduos de maneira conveniente), entende-se que é indispensável, em paralelo, inseri-los no esforço colectivo de construção da sociedade, fazê-los sentir que devem integrar esse trabalho sinérgico ao invés de apenas se limitarem a esperar dela protecção na sua existência, por vezes isolada.
Por outras palavras, considera-se que, se o nosso país não terá possibilidades de se excluir desta competição global e que, em consequência, para melhor a enfrentarmos, aos portugueses devem ser facultadas possibilidades de obterem sólidas capacidades operativas, tal não deve ser efectuado sem se ter igualmente em consideração que a esse empreendimento deve corresponder também um acréscimo de coesão social, mediante a partilha de valores e a participação dos indivíduos num desígnio comum.
Ora, este incremento da competitividade do país com coesão social parece-me cada vez mais difícil de alcançar atendendo ao facto de não se estar a conseguir esbater o fosso entre ricos e pobres – pelo contrário, parece tender a aumentar. Com dois milhões de pobres – os tais 20% que teimosamente persistem, como refere Alfredo Bruto da Costa – Portugal tem um número avassalador de indivíduos que se encontram em diversos estádios de privação. Como esperar, pois, que estas pessoas, que se encontram impossibilitadas de satisfazerem algumas das mais elementares necessidades básicas e que estão muito diminuídas no domínio das relações sociais, consigam – e queiram – sentir-se como parte de um todo que parece negligenciá-las? O escritor espanhol Benito Peres Galdós, referindo-se, há várias décadas, ao agricultor castelhano, afirmou que este era ‘um santo condenado e um guerreiro sem glória’. Infelizmente, a meu ver, essa referência poderia ser feita, igualmente, em relação a muitos dos nossos concidadãos.
Estamos claramente perante um problema com significativos contornos políticos, na medida em que a participação cívica destas pessoas é extraordinariamente reduzida ou mesmo nula, com consequências óbvias (e graves!) para a saúde da nossa Democracia. E se a Política, tal como a definiu Daniel Innerarity, é ‘a capacidade de transformar o disjuntivo em aditivo’, importa dizer que, neste domínio do incremento da coesão social, os ditos poderes públicos têm, pois, falhado de forma muito expressiva. E, a meu ver, não nos deveremos deixar embalar pela utilização do pensamento politicamente correcto, frequentemente execrável em diversos domínios, e com argumentações de que ‘todos somos responsáveis por esta situação’ e que ‘todos temos que fazer algo para que ela se altere’, pois tal apenas servirá para que se esfumem responsabilidades já que, na verdade, nem todos os portugueses tem idêntico grau de poder na definição do rosto da nossa sociedade e, dessa forma, na concretização das mudanças que se afiguram necessárias para que esta progrida de maneira consolidada e harmoniosa.
Serão os CET, então, um mecanismo verdadeiramente válido para que o nosso país veja aumentada a sua capacidade competitiva e, paralelamente, se atenuem internamente as desarmonias sociais?
A meu ver, só por si, não, é claro. Mas parecem-me possuir algumas virtualidades significativas, que considero poderem ser tanto mais eficazes quanto melhor se integrem num sistema mais amplo de reestruturação da Formação e da Educação no nosso país.
Desde logo, porque se afirmam como modelos alternativos de aprendizagem que poderão, por um lado, contribuir para minorar as elevadíssimas taxas de abandono escolar e, por outro, por responder às necessidades específicas sentidas pelo tecido sócio-económico no tocante a quadros intermédios convenientemente qualificados – venho de um concelho onde esta questão é frequentemente focada pelos empregadores. Este último aspecto das especificidades locais afigura-se-me bastante importante. Entendo que há que não ceder a tendências centralistas que as negligenciem e que, a pretexto de serem abrangentes e globais, possam acabar por tenderem a uniformizar ideias, indivíduos e comportamentos, com nefastas consequências. Como dizia José Régio, ‘há mais mundos’ e a riqueza do ser humano reside precisamente na sua singularidade, que não tem que ser negada para se afirmarem outras identidades mais amplas. E essa singularidade dos indivíduos, bem como as especificidades locais onde ele actua e se desenvolve, deverá necessariamente ser considerada pelo sistema educativo. Daqui decorre, pois, que, em minha opinião, deverão multiplicar-se as tipologias da oferta formativa, assentes também em contextos de especificidade territorial, para que as oportunidades educativas também se multipliquem e para que, em última instância, o sistema educativo possa acolher, bem melhor do que agora o faz, cada vez mais franjas da população que acabaram por ficar à sua margem – embora formalmente até o possam ter frequentado.
Outro aspecto que me parece muito interessante nos CET é a possibilidade de formação em alternância, ou seja, o processo que permite que se alternem ‘sequências de formação ministradas por instituições de formação com sequências de formação prática realizadas em contexto de trabalho’, por poder constituir uma relevante experiência de vida activa. Este aspecto da formação no terreno é, a meu ver, muito importante.
Se atendermos ao Despacho com que a ESTGF regulamenta, em 20 de Setembro, os três CET que está autorizada a ministrar, verificaremos que estes também compreendem, na formação geral e científica, áreas de cidadania e sociedade e de línguas e comunicação, o que considero de particular relevância. Por um lado, porque essa formação não se demitirá de afixar a referência a estruturas ideativas e comportamentais que se poderão traduzir numa melhor compreensão do próprio processo de cidadania; por outro, porque a instituição atenderá ao desenvolvimento de competências que o mundo profissional cada vez mais exige, como são, por exemplo, as referentes a capacidades de comunicação e de relacionamento.
Finalmente, importa que estes cursos incorporem – como, afinal, todo o sistema de ensino deverá incorporar – uma cultura de exigência, quebrando aquilo que, há meses, Josep Varela i Serra definiu no El Pais como a dinâmica perniciosa da dupla comodidade – a que existe primeiro em casa e depois na Escola. E tal pode ser feito sem que isso se traduza, necessariamente, em os peixes se comerem uns aos outros…
Numa das suas Greguerias, Ramón Gomes de la Serna afirmou que ‘não há relógio nas horas felizes’. É um facto, mas, em situações como esta, impõe-se que não se exija demais da benevolência dos nossos ouvintes, pelo que prefiro seguir agora o conselho que Churchill dava para se conseguir um bom discurso – levar sempre o fim preparado, pelo menos, e introduzi-lo tão cedo quanto possível. Assim sendo, termino agradecendo o gentil convite que a ESTGF me endereçou, ao qual correspondi menos por obrigação de função do que por amizade e por imperativo de cidadania, agradecendo a atenção de todos os presentes e, eventualmente, a paciência.
Educação e ensino - PROTEGER, CAPACITANDO
(Texto da conferência efectuada na FNAC da R. de Sta. Catarina, no âmbito da semana do Instituto Politécnico do Porto)
Há alguns anos, uma Universidade apresentou um cartaz promocional no qual se salientava que os peixes maiores comem os mais pequenos e que os primeiros, mais agressivos, estão em situação de vantagem perante os segundos na luta pela sobrevivência. A analogia com a vida social é evidente: extremando-se as posições, há que comer e evitar ser comido e há que matar para não morrer. Capacidades que, pelos vistos, essa instituição ajudaria a adquirir...
Pessoalmente, tenho sérias dúvidas sobre a correcção ética desta forma de procurar captar potenciais alunos, uma vez que a Escola - qualquer escola - deverá formar pessoas sensatas e creio não haver sensatez em apelos dirigidos às mais primitivas e menos nobres pulsões do ser humano, como não a haverá na aceitação fácil do ‘darwinismo social’ como fundamento da organização das sociedades.
Seja como for - e já fora deste quadro de valores - não estranharia se me dissessem que essa campanha promocional tinha sido, afinal, um sucesso, chegando a um número muito significativo de candidatos. Na verdade, em sociedades em acelerada transformação, como são aquelas da nossa contemporaneidade, a rápida redefinição/reinvenção dos quadros sociais no qual o indivíduo se move suscita-lhe vários temores e angústias, os quais parecem ser mais facilmente apaziguados e mesmo ultrapassados se houver a aquisição de um estatuto social que sobreleve o dos seus concidadãos. Ora, para muitos portugueses, as instituições de ensino superior continuam a ser encaradas como apetecíveis mecanismos que, num mundo crescentemente complexo e competitivo, conferem essa tão almejada posição. Contudo, como sabemos, a realidade não é assim tão linear.
As apreciações que acabei de fazer não impedem, é claro, que constate o óbvio: a existência (hoje como sempre, afinal) de um clima de profunda competição entre os indivíduos e entre as nações - agora talvez mais exacerbado por via das enormes mudanças, nos mais diversos domínios, que resultam das constantes inovações dos dispositivos tecnológicos de que os seres humanos vão dispondo. Esta nossa ‘Aldeia Global’ de que nos falou Marshall McLuhan parece estar cada vez mais globalizada, mais pequena e mais povoada e é neste contexto, frequentemente percepcionado como turbulento, que os Estados e os indivíduos vão procurando responder aos desafios que se lhes vão colocando.
O nosso país não é, obviamente, uma excepção. No esforço de modernização que tem empreendido ao longo das últimas décadas, Portugal tem sido apresentado de forma algo ambivalente – ora visto como ‘bom aluno’, ora encarado como exemplo a evitar. Independentemente deste facto – que, ao fim e ao cabo, reflectirá a existência de diversas boas práticas a correr em paralelo a outras profundamente reprováveis – a Educação tem estado sempre no centro dos diversos discursos relacionados com as correctas metodologias de promoção do desenvolvimento do país - mesmo que nem sempre a prática confirme essas disposições.
A recente implementação de uma nova oferta formativa profissionalizante, os denominados Cursos de Especialização Tecnológica, insere-se nesse esforço de modernização. O Decreto-Lei n.º 88/2006, de 23 de Maio, que reorganiza o funcionamento dos CET, é claro em relação a este aspecto, indicando que essa reorganização tem como objectivo último ‘fomentar a competitividade do país’, sendo para tal indispensável qualificar o seu capital humano, sobretudo o mais jovem, almejando-se que estes ‘não entrem para o mercado de trabalho sem uma prévia qualificação profissional orientada para os perfis profissionais em défice’. Tratando-se de Cursos pós-secundários não superiores, visando a aquisição do Nível 4 de formação profissional, possibilitam, no entanto, o prosseguimento de estudos a nível do ensino superior, sobretudo mediante a prévia definição de cursos existentes em estabelecimentos de ensino superior aos quais o detentor de um Diploma de Especialização Tecnológica se pode candidatar, bem como das unidades curriculares dos respectivos planos de estudos de cuja frequência se encontram dispensados.
Não deixa de ser interessante constatarmos que no Preâmbulo do diploma legal a que atrás aludo expressamente se indica, por duas vezes nos três primeiros parágrafos, que um dos objectivos do Governo é o incremento da competitividade do país, mas com coesão social.
Permito-me sublinhar este aspecto porque ele me parece ser bem sintomático de um dilema com que os actuais governantes dos diferentes países estão a ser confrontados e a que o sociólogo Jacques Donzelot tem dedicado particular atenção: o facto de a competitividade e a coesão social já não andarem necessariamente de mãos dadas. Com efeito, a chamada ‘Crise do Estado Providência’, que, independentemente da componente ideológica adversa com que alguns se têm armado para contra ele arremeterem, me parece ser, sobretudo, o resultado de uma constatação óbvia – a de os recursos disponíveis serem finitos, ao passo que as solicitações são potencialmente ilimitadas - essa crise, dizia, tem obrigado os Estados a redefinirem algumas das suas formas de actuação. A própria OCDE tem entendido como indispensável que essa reforma se processe e que os Estados, mais do que efectuarem despesas sociais, façam investimentos sociais. A mudança não é superficial, apesar de, à primeira vista e com uma apreciação simplificada, poder parecer pouco profunda. Não nos deixemos enganar, pois essas alterações semânticas traduzem, afinal, uma maneira muito diferente de entender o papel do Estado no seu relacionamento com os cidadãos que o integram. Mais do que protegê-los, entende-se actualmente que o Estado os deve capacitar, dotando-os de meios que lhes permitam adquirir uma melhor formação, visando uma igualmente melhor integração no mercado de trabalho e, por essa via, na própria sociedade. Daí que o investimento no chamado capital humano seja considerado indispensável atendendo a duas vertentes, afinal complementares: a que se refere ao actual quadro de redefinição do papel do próprio Estado relativamente aos indivíduos; e a que tem a ver com o actual panorama de exacerbada competição à escala mundial.
Para que essa integração se processe de forma tendencialmente perdurável (e para além desse trabalho formativo visando ‘armar’ os indivíduos de maneira conveniente), entende-se que é indispensável, em paralelo, inseri-los no esforço colectivo de construção da sociedade, fazê-los sentir que devem integrar esse trabalho sinérgico ao invés de apenas se limitarem a esperar dela protecção na sua existência, por vezes isolada.
Por outras palavras, considera-se que, se o nosso país não terá possibilidades de se excluir desta competição global e que, em consequência, para melhor a enfrentarmos, aos portugueses devem ser facultadas possibilidades de obterem sólidas capacidades operativas, tal não deve ser efectuado sem se ter igualmente em consideração que a esse empreendimento deve corresponder também um acréscimo de coesão social, mediante a partilha de valores e a participação dos indivíduos num desígnio comum.
Ora, este incremento da competitividade do país com coesão social parece-me cada vez mais difícil de alcançar atendendo ao facto de não se estar a conseguir esbater o fosso entre ricos e pobres – pelo contrário, parece tender a aumentar. Com dois milhões de pobres – os tais 20% que teimosamente persistem, como refere Alfredo Bruto da Costa – Portugal tem um número avassalador de indivíduos que se encontram em diversos estádios de privação. Como esperar, pois, que estas pessoas, que se encontram impossibilitadas de satisfazerem algumas das mais elementares necessidades básicas e que estão muito diminuídas no domínio das relações sociais, consigam – e queiram – sentir-se como parte de um todo que parece negligenciá-las? O escritor espanhol Benito Peres Galdós, referindo-se, há várias décadas, ao agricultor castelhano, afirmou que este era ‘um santo condenado e um guerreiro sem glória’. Infelizmente, a meu ver, essa referência poderia ser feita, igualmente, em relação a muitos dos nossos concidadãos.
Estamos claramente perante um problema com significativos contornos políticos, na medida em que a participação cívica destas pessoas é extraordinariamente reduzida ou mesmo nula, com consequências óbvias (e graves!) para a saúde da nossa Democracia. E se a Política, tal como a definiu Daniel Innerarity, é ‘a capacidade de transformar o disjuntivo em aditivo’, importa dizer que, neste domínio do incremento da coesão social, os ditos poderes públicos têm, pois, falhado de forma muito expressiva. E, a meu ver, não nos deveremos deixar embalar pela utilização do pensamento politicamente correcto, frequentemente execrável em diversos domínios, e com argumentações de que ‘todos somos responsáveis por esta situação’ e que ‘todos temos que fazer algo para que ela se altere’, pois tal apenas servirá para que se esfumem responsabilidades já que, na verdade, nem todos os portugueses tem idêntico grau de poder na definição do rosto da nossa sociedade e, dessa forma, na concretização das mudanças que se afiguram necessárias para que esta progrida de maneira consolidada e harmoniosa.
Serão os CET, então, um mecanismo verdadeiramente válido para que o nosso país veja aumentada a sua capacidade competitiva e, paralelamente, se atenuem internamente as desarmonias sociais?
A meu ver, só por si, não, é claro. Mas parecem-me possuir algumas virtualidades significativas, que considero poderem ser tanto mais eficazes quanto melhor se integrem num sistema mais amplo de reestruturação da Formação e da Educação no nosso país.
Desde logo, porque se afirmam como modelos alternativos de aprendizagem que poderão, por um lado, contribuir para minorar as elevadíssimas taxas de abandono escolar e, por outro, por responder às necessidades específicas sentidas pelo tecido sócio-económico no tocante a quadros intermédios convenientemente qualificados – venho de um concelho onde esta questão é frequentemente focada pelos empregadores. Este último aspecto das especificidades locais afigura-se-me bastante importante. Entendo que há que não ceder a tendências centralistas que as negligenciem e que, a pretexto de serem abrangentes e globais, possam acabar por tenderem a uniformizar ideias, indivíduos e comportamentos, com nefastas consequências. Como dizia José Régio, ‘há mais mundos’ e a riqueza do ser humano reside precisamente na sua singularidade, que não tem que ser negada para se afirmarem outras identidades mais amplas. E essa singularidade dos indivíduos, bem como as especificidades locais onde ele actua e se desenvolve, deverá necessariamente ser considerada pelo sistema educativo. Daqui decorre, pois, que, em minha opinião, deverão multiplicar-se as tipologias da oferta formativa, assentes também em contextos de especificidade territorial, para que as oportunidades educativas também se multipliquem e para que, em última instância, o sistema educativo possa acolher, bem melhor do que agora o faz, cada vez mais franjas da população que acabaram por ficar à sua margem – embora formalmente até o possam ter frequentado.
Outro aspecto que me parece muito interessante nos CET é a possibilidade de formação em alternância, ou seja, o processo que permite que se alternem ‘sequências de formação ministradas por instituições de formação com sequências de formação prática realizadas em contexto de trabalho’, por poder constituir uma relevante experiência de vida activa. Este aspecto da formação no terreno é, a meu ver, muito importante.
Se atendermos ao Despacho com que a ESTGF regulamenta, em 20 de Setembro, os três CET que está autorizada a ministrar, verificaremos que estes também compreendem, na formação geral e científica, áreas de cidadania e sociedade e de línguas e comunicação, o que considero de particular relevância. Por um lado, porque essa formação não se demitirá de afixar a referência a estruturas ideativas e comportamentais que se poderão traduzir numa melhor compreensão do próprio processo de cidadania; por outro, porque a instituição atenderá ao desenvolvimento de competências que o mundo profissional cada vez mais exige, como são, por exemplo, as referentes a capacidades de comunicação e de relacionamento.
Finalmente, importa que estes cursos incorporem – como, afinal, todo o sistema de ensino deverá incorporar – uma cultura de exigência, quebrando aquilo que, há meses, Josep Varela i Serra definiu no El Pais como a dinâmica perniciosa da dupla comodidade – a que existe primeiro em casa e depois na Escola. E tal pode ser feito sem que isso se traduza, necessariamente, em os peixes se comerem uns aos outros…
Numa das suas Greguerias, Ramón Gomes de la Serna afirmou que ‘não há relógio nas horas felizes’. É um facto, mas, em situações como esta, impõe-se que não se exija demais da benevolência dos nossos ouvintes, pelo que prefiro seguir agora o conselho que Churchill dava para se conseguir um bom discurso – levar sempre o fim preparado, pelo menos, e introduzi-lo tão cedo quanto possível. Assim sendo, termino agradecendo o gentil convite que a ESTGF me endereçou, ao qual correspondi menos por obrigação de função do que por amizade e por imperativo de cidadania, agradecendo a atenção de todos os presentes e, eventualmente, a paciência.
ANTÓNIO SALVADO
Podemos depor a favor de um escritor por interesse, por gratidão, por amizade ou por justiça. Há quem louve um escritor porque está interessado no seu apoio (editorial, social, etc.). Há quem o elogie porque lhe deve favores ou sente ser sua obrigação de amigo escrever ditirambos. Há, ainda, quem deponha de forma positiva porque acha justo fazê-lo – sem esperar nada em troca, apenas porque o seu depoimento se impõe não como dever pessoal, mas como dever cívico de testemunho.
É uma questão de justiça escrever este depoimento sobre António Salvado, ainda que sejam palavras curtas e despretensiosas. Conheço-o há mais de dez anos (sem nunca nos termos encontrado fisicamente) – tempo breve, é certo, mas para mim suficiente no aquilatar da sua qualidade como poeta, como tradutor, como ensaísta, como divulgador de Cultura e – sobretudo – como ser humano. Poderia registar aqui a minha leitura da sua poesia, alicerçada – em parte – na investigação/transfiguração do classicismo, levada a cabo por uma geração com raízes no 2º Modernismo e fertilizada por alguns dos princípios defendidos por revistas tão ecuménicas quanto Árvore e Távola Redonda. Outros o farão melhor do que eu. Poderia ainda referir-me com demora ao papel de António Salvado como organizador de antologias, como director de revistas culturais (lembro os despretensiosos, mas importantes, cadernos Sirgo) e como importante tradutor e divulgador em Portugal de vários autores de língua castelhana (Claudio Rodríguez ou Ricardo Paseyro, por exemplo). Prefiro contudo recordar a postura cívica do autor de Jardim do Paço, vertical e intransigente na defesa da Justiça e da rectidão.
Há um episódio que, para mim, exemplifica bem a craveira da sua figura cívica e literária. Quando há alguns anos um semanário nacional publicou uma reportagem sobre a face humana de José Régio, foram reproduzidas algumas declarações que punham em causa a boa memória desse homem exemplar que foi o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos. Pois, nessa altura, António Salvado foi dos primeiros a alertar para a necessidade de um desagravo público à figura do escritor e, assim, assinou comigo e com mais onze escritores um texto que, depois, foi divulgado por vários órgãos de imprensa. Mas não ficou por aqui. Quando, em Portalegre, Nicolau Saião, João Garção e o autor destas linhas foram alvo de ataques pessoais – porque ousaram contestar quem pusera em causa Reis Pereira, como professor –, desde a primeira hora o poeta albicastrense se pôs ao seu lado, apoiando-os e dispondo-se até a testemunhar em tribunal, caso fosse necessário. Durante os longos anos do processo que conduziu à condenação de quem escrevera os textos que nos difamaram, sempre António Salvado (com vários escritores e personalidades, nomeadamente José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro, Henrique Madeira e Matilde Rosa Araújo) se interessou pelo caso e pela mágoa dos ofendidos – ao contrário de outros cujo apoio era uma obrigação ética, mas cobarde ou interesseiramente borregaram. Salvado, não. Nunca regateou uma palavra amiga, nunca escondeu a sua indignação, nunca tentou branquear atitudes e – sobretudo – nunca desmentiu a sua postura cívica de Homem vertical.
Para alguns, esta atitude valerá pouco. Será até considerada marginal quando se olha para um escritor que nos vem inundando (no melhor sentido da palavra) com a sua poesia. Para mim representa muito, pois sou daqueles que – apesar de acreditarem que a Poesia não se escreve com bons sentimentos – continuam a pensar que a Ética e a Literatura devem ser duas faces da mesma moeda.
Podemos depor a favor de um escritor por interesse, por gratidão, por amizade ou por justiça. Há quem louve um escritor porque está interessado no seu apoio (editorial, social, etc.). Há quem o elogie porque lhe deve favores ou sente ser sua obrigação de amigo escrever ditirambos. Há, ainda, quem deponha de forma positiva porque acha justo fazê-lo – sem esperar nada em troca, apenas porque o seu depoimento se impõe não como dever pessoal, mas como dever cívico de testemunho.
É uma questão de justiça escrever este depoimento sobre António Salvado, ainda que sejam palavras curtas e despretensiosas. Conheço-o há mais de dez anos (sem nunca nos termos encontrado fisicamente) – tempo breve, é certo, mas para mim suficiente no aquilatar da sua qualidade como poeta, como tradutor, como ensaísta, como divulgador de Cultura e – sobretudo – como ser humano. Poderia registar aqui a minha leitura da sua poesia, alicerçada – em parte – na investigação/transfiguração do classicismo, levada a cabo por uma geração com raízes no 2º Modernismo e fertilizada por alguns dos princípios defendidos por revistas tão ecuménicas quanto Árvore e Távola Redonda. Outros o farão melhor do que eu. Poderia ainda referir-me com demora ao papel de António Salvado como organizador de antologias, como director de revistas culturais (lembro os despretensiosos, mas importantes, cadernos Sirgo) e como importante tradutor e divulgador em Portugal de vários autores de língua castelhana (Claudio Rodríguez ou Ricardo Paseyro, por exemplo). Prefiro contudo recordar a postura cívica do autor de Jardim do Paço, vertical e intransigente na defesa da Justiça e da rectidão.
Há um episódio que, para mim, exemplifica bem a craveira da sua figura cívica e literária. Quando há alguns anos um semanário nacional publicou uma reportagem sobre a face humana de José Régio, foram reproduzidas algumas declarações que punham em causa a boa memória desse homem exemplar que foi o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos. Pois, nessa altura, António Salvado foi dos primeiros a alertar para a necessidade de um desagravo público à figura do escritor e, assim, assinou comigo e com mais onze escritores um texto que, depois, foi divulgado por vários órgãos de imprensa. Mas não ficou por aqui. Quando, em Portalegre, Nicolau Saião, João Garção e o autor destas linhas foram alvo de ataques pessoais – porque ousaram contestar quem pusera em causa Reis Pereira, como professor –, desde a primeira hora o poeta albicastrense se pôs ao seu lado, apoiando-os e dispondo-se até a testemunhar em tribunal, caso fosse necessário. Durante os longos anos do processo que conduziu à condenação de quem escrevera os textos que nos difamaram, sempre António Salvado (com vários escritores e personalidades, nomeadamente José do Carmo Francisco, Carlos Garcia de Castro, Henrique Madeira e Matilde Rosa Araújo) se interessou pelo caso e pela mágoa dos ofendidos – ao contrário de outros cujo apoio era uma obrigação ética, mas cobarde ou interesseiramente borregaram. Salvado, não. Nunca regateou uma palavra amiga, nunca escondeu a sua indignação, nunca tentou branquear atitudes e – sobretudo – nunca desmentiu a sua postura cívica de Homem vertical.
Para alguns, esta atitude valerá pouco. Será até considerada marginal quando se olha para um escritor que nos vem inundando (no melhor sentido da palavra) com a sua poesia. Para mim representa muito, pois sou daqueles que – apesar de acreditarem que a Poesia não se escreve com bons sentimentos – continuam a pensar que a Ética e a Literatura devem ser duas faces da mesma moeda.
HÁBITOS DE LEITURA
Os hábitos de leitura aumentaram em Portugal... dizem os jornais de hoje - e eu acredito, ou faço por acreditar.
Fosse outro o tempo e alegrar-me-ia com a notícia. Hoje, com tantas rebelos-pinto, sousas-tavares, rodrigues-dos-santos, lopos-de-carvalho, dan-browns e quejandos, a nova deixa-me relativamente indiferente.
O problema da leitura não é, nunca foi, nem será um problema de quantidade e de assiduidade, mas de qualidade. Dá vontade de afirmar que mais vale uma iliteracia sábia do que uma literacia estúpida e manipulada. Prefiro um cidadão que lê apenas um livro por ano, mas de qualidade, do que um indivíduo leitor de imensos livros, mas todos ou quase todos de fancaria.
Os hábitos de leitura aumentaram em Portugal... dizem os jornais de hoje - e eu acredito, ou faço por acreditar.
Fosse outro o tempo e alegrar-me-ia com a notícia. Hoje, com tantas rebelos-pinto, sousas-tavares, rodrigues-dos-santos, lopos-de-carvalho, dan-browns e quejandos, a nova deixa-me relativamente indiferente.
O problema da leitura não é, nunca foi, nem será um problema de quantidade e de assiduidade, mas de qualidade. Dá vontade de afirmar que mais vale uma iliteracia sábia do que uma literacia estúpida e manipulada. Prefiro um cidadão que lê apenas um livro por ano, mas de qualidade, do que um indivíduo leitor de imensos livros, mas todos ou quase todos de fancaria.
Era para ter saído, tanto quanto sei, numa editora que resolveu (ou tem resolvido) debitar para as estantes outras coisas de quilate menos reconhecível. Ficou pelo caminho. Se calhar, ainda bem... Vestígios, de Gérard Calandre, certamente destoaria. É preciso salvaguardar a coerência. Podereis agora ler os poemas no Triplov. Uma oportunidade a não perder!
cadáver
[Lisboa, igreja de S. Julião]
a vizinhança não poderia consentir tal afronta.
(apesar do incêndio, a vida ressuscitara
entre velas, mármores e frontais.)
era preciso consumir de novo
a brancura do corpo
deixando apenas os ossos
e uma pele brilhante
mas ressequida.
a incandescência das vozes
foi devorada pela incandescência
dos motores. no trono
Mamon reina agora
sobre a falsidade da fachada.
noutro lado – taberna, quarto
de cama, teatro ou sala de jantar.
mudaria o diálogo
mas não mudaria o povoamento.
aqui, Mamon escarra nas paredes.
poderia ser de outro modo?
Mamon “suja o olhar
e sem mistério”.
a vizinhança não poderia consentir tal afronta.
(apesar do incêndio, a vida ressuscitara
entre velas, mármores e frontais.)
era preciso consumir de novo
a brancura do corpo
deixando apenas os ossos
e uma pele brilhante
mas ressequida.
a incandescência das vozes
foi devorada pela incandescência
dos motores. no trono
Mamon reina agora
sobre a falsidade da fachada.
noutro lado – taberna, quarto
de cama, teatro ou sala de jantar.
mudaria o diálogo
mas não mudaria o povoamento.
aqui, Mamon escarra nas paredes.
poderia ser de outro modo?
Mamon “suja o olhar
e sem mistério”.
Nota: A citação final faz parte de um verso de José do Carmo Francisco, transcrito de memória.
A ARTE DE DESERTIFICAR
Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.
Há cerca de quatro, cinco anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que tinha como eixo uma obra de José Luís Peixoto, então recentemente publicada. Inevitavelmente, o conteúdo do romance levou a conversa para a nossa visão do estado do Alentejo. A dado passo, um cidadão lisboeta com ar de hippie fora de prazo afirmou: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Com visível incómodo, olhámos todos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao dito indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado, tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
Tenho recordado muito a conversa do tal hippie fora de prazo a propósito de algumas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as vê de um apartamento alfacinha ou tripeiro pode até contemplá-las como benéficas. (Encerrar escolas até é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com todas as condições para o sucesso educativo. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz até é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem fazer compras na cidade do Guadiana. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois para que quer aquela gente junto de si uma junta ou uma câmara municipal, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece bem o interior português sabe que estas medidas legislativas, levadas a efeito pelo governo de José Sócrates, mas idealizadas por políticos seus antecessores, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas.
Claro que nada disto interessa a quem vê nas aldeias portuguesas fontes de rendimento. Têm até pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas que até aí custavam trinta contecos passarão a valer 50 000 euros ou mais. Que lhes interessa a eles se as terreolas têm junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, se os centros de saúde possuem atendimento permanente, se há uma maternidade próxima... As nossas aldeias são para eles pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que eles transformam em não-lugares, sem vida, sem nada para além de um cenário ostentado para turista ver.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os nossos governantes fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente no interior), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete. Não tenhamos dúvidas: para muitos citadinos que vêem no mundo rural uma terra de cafres, o interior português será tanto mais atraente quanto mais se transformar num verdadeiro deserto.
incêndio
[Lisboa, igreja de S. Domingos]
nenhum brilho poderia restaurar o esplendor do canto.
só uma flama nocturna seria capaz de devolver ao tempo
toda a fuligem que fora depositando sobre as paredes
(da alma?). mesmo depois, o cheiro (dos ossos, da carne,
da pele, dos cabelos) permanecera sobre a cidade.
a cinza ficara, talvez, na argamassa das casas.
não havia forno que queimasse
o sangue caído sobre as colunas, as manchas
de sal no pavimento, os gritos misturados com a terra
e com a tijoleira das abóbadas.
*
o incêndio purificou a pedra e a memória.
sem tecto, a casa soube então receber
a água do baptismo, libertando o mármore e a madeira
do hábito perpétuo e da falsa cruz
que destruíra as veias por onde circulavam
o ouro e o coração.
era preciso um incêndio
para apagar o fogo no terreiro.
*
corroídas, as colunas sustentam
a fragilidade da matéria. enegrecidas
recordam a oscilação das células
e a loucura.
resta-nos a pureza da imagem –
livre da tinta e do cinzel. sustenta
com o braço os pilares do edifício.
nada nos pertence. repugna-nos
a soturnidade da estrutura.
mas tudo em redor reflecte
a nossa face – reconstruída
incêndio após incêndio
cicatrizadas as feridas da memória.
nenhum brilho poderia restaurar o esplendor do canto.
só uma flama nocturna seria capaz de devolver ao tempo
toda a fuligem que fora depositando sobre as paredes
(da alma?). mesmo depois, o cheiro (dos ossos, da carne,
da pele, dos cabelos) permanecera sobre a cidade.
a cinza ficara, talvez, na argamassa das casas.
não havia forno que queimasse
o sangue caído sobre as colunas, as manchas
de sal no pavimento, os gritos misturados com a terra
e com a tijoleira das abóbadas.
*
o incêndio purificou a pedra e a memória.
sem tecto, a casa soube então receber
a água do baptismo, libertando o mármore e a madeira
do hábito perpétuo e da falsa cruz
que destruíra as veias por onde circulavam
o ouro e o coração.
era preciso um incêndio
para apagar o fogo no terreiro.
*
corroídas, as colunas sustentam
a fragilidade da matéria. enegrecidas
recordam a oscilação das células
e a loucura.
resta-nos a pureza da imagem –
livre da tinta e do cinzel. sustenta
com o braço os pilares do edifício.
nada nos pertence. repugna-nos
a soturnidade da estrutura.
mas tudo em redor reflecte
a nossa face – reconstruída
incêndio após incêndio
cicatrizadas as feridas da memória.
SOBRE AGOSTINHO DA SILVA
Decorrido há cerca de um ano, o colóquio "Agostinho da Silva e o Espírito Universal" organizado pela Biblioteca Municipal de Sesimbra teve agora as suas actas publicadas, com textos de, entre outros, Paulo Borges, Manuel Ferreira Patrício, António Cândido Franco e Pedro Sinde. Em linha estão entretanto disponíveis as comunicações aí apresentadas pelo coordenador deste blogue, "A cal para caiar o universo (cartas e quadras de Agostinho da Silva)", e por Nicolau Saião.
CRÓNICA(S) DO SÉCULO XX PORTUGUÊS
A antologia Crónica Jornalística – Século XX, organizada por Fernando Venâncio e editada há poucos anos pelo Círculo de Leitores é um livro imprescindível. Já antes devorara o volume dado a lume por Ernesto Rodrigues, com textos do século XIX. Mas este livro toca-nos de perto, sobretudo os textos nascidos depois de 1974 – que nos mostram o Portugal de esplendores e misérias em que todos vamos existindo.
Forte, cortante e luminoso, António José Saraiva (democrata até à raiz) desnuda uma revolução inepta e cobarde – e o país que dela nasceu. José Martins Garcia revela, com ironia, o fechamento e a violência da “democracia” existente em terras pequeninas. Luiz Pacheco relata-nos uma “jantarada” oferecida por Mário Soares a alguns escritores – expondo, com o desassombro e o humor cortante a que nos habituou, os ridículos de muito deles. Nuno de Bragança fala-nos de um “povo” que, embora “sereno”, não é politicamente “parvo”. Miguel Esteves Cardoso descreve Portugal como uma “república dos ananases”, onde a “burocracia convida os cidadãos a aldrabá-la, porque a alternativa à aldrabice é tão penosa, tão cara, tão morosa e tão chata”. Cáustico e irónico, Manuel António Pina desvenda os eufemismos utilizados pelos políticos, quando pretendem enganar os eleitores e/ou camuflar a acção de quem se serve do Estado para alimentar interesses particulares. Miguel Sousa Tavares desmonta o vazio chamado “revista feminina” que tem invadido o mercado de publicações. Viale Moutinho conta-nos como foi vítima da prosápia e da arrogância de um representante da classe dos poetastros. Fernando Dacosta dá-nos um murro no estômago, ao narrar o suicídio de um homem que “partiu para não ceder” à “ditadura de mercado”, que lança no desemprego pessoas válidas e competentes. Francisco José Viegas, num texto actualíssimo, escreve sobre o Bloco de Esquerda e o seu “folclore moderno”, que coloca “o acessório antes do essencial, a política do espírito antes da política real”, em questões como, por exemplo, a despenalização do aborto.
Mas este livro, crónica do século XX que todos os portugueses deviam ler, não se limita a compilar textos sobre a realidade portuguesa nascida depois da Revolução do Cravos. Nele podemos encontrar pérolas valiosas escritas por muitos dos vultos mais importantes e/ou mais conhecidos da Cultura do século XX: Pessoa, Almada, Proença, Aquilino, Régio, Irene Lisboa, Sebastião da Gama, Nemésio, Gomes Ferreira, Sena, Mourão-Ferreira, Araújo Correia, Mário Dionísio, Saramago, Rodrigues Miguéis, O’ Neill, Urbano, Luísa Dacosta, Maria Ondina Braga, Vergílio Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Guerra Carneiro, Agustina, Assis Pacheco, Cardoso Pires, António Osório, Mário de Carvalho, etc.. Como refere Fernando Venâncio, as cem crónicas que aí podemos apreciar e saborear são “impagáveis”, demonstrando “quanta agilidade mental, quanta inventiva, na feitura e na expressão, quanta finura e malícia, quanto domínio da persuasão e do divertimento, vão investidos num género tido, desde sempre, por marginal às artes sérias”.
Folheando as páginas desta antologia vêm ainda nosso encontro trechos lapidares, que nos fazem ver mais claramente o Portugal de 2007. Com duas delas termino: “O Estado português dá a impressão de uma tenda de louça onde entrou uma manada de toiros bravos.” (Aquilino Ribeiro, 1926); “As nossas dificuldades presentes (...) merecemo-las, moralmente. (...) Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.” (António José Saraiva, 1979).
A antologia Crónica Jornalística – Século XX, organizada por Fernando Venâncio e editada há poucos anos pelo Círculo de Leitores é um livro imprescindível. Já antes devorara o volume dado a lume por Ernesto Rodrigues, com textos do século XIX. Mas este livro toca-nos de perto, sobretudo os textos nascidos depois de 1974 – que nos mostram o Portugal de esplendores e misérias em que todos vamos existindo.
Forte, cortante e luminoso, António José Saraiva (democrata até à raiz) desnuda uma revolução inepta e cobarde – e o país que dela nasceu. José Martins Garcia revela, com ironia, o fechamento e a violência da “democracia” existente em terras pequeninas. Luiz Pacheco relata-nos uma “jantarada” oferecida por Mário Soares a alguns escritores – expondo, com o desassombro e o humor cortante a que nos habituou, os ridículos de muito deles. Nuno de Bragança fala-nos de um “povo” que, embora “sereno”, não é politicamente “parvo”. Miguel Esteves Cardoso descreve Portugal como uma “república dos ananases”, onde a “burocracia convida os cidadãos a aldrabá-la, porque a alternativa à aldrabice é tão penosa, tão cara, tão morosa e tão chata”. Cáustico e irónico, Manuel António Pina desvenda os eufemismos utilizados pelos políticos, quando pretendem enganar os eleitores e/ou camuflar a acção de quem se serve do Estado para alimentar interesses particulares. Miguel Sousa Tavares desmonta o vazio chamado “revista feminina” que tem invadido o mercado de publicações. Viale Moutinho conta-nos como foi vítima da prosápia e da arrogância de um representante da classe dos poetastros. Fernando Dacosta dá-nos um murro no estômago, ao narrar o suicídio de um homem que “partiu para não ceder” à “ditadura de mercado”, que lança no desemprego pessoas válidas e competentes. Francisco José Viegas, num texto actualíssimo, escreve sobre o Bloco de Esquerda e o seu “folclore moderno”, que coloca “o acessório antes do essencial, a política do espírito antes da política real”, em questões como, por exemplo, a despenalização do aborto.
Mas este livro, crónica do século XX que todos os portugueses deviam ler, não se limita a compilar textos sobre a realidade portuguesa nascida depois da Revolução do Cravos. Nele podemos encontrar pérolas valiosas escritas por muitos dos vultos mais importantes e/ou mais conhecidos da Cultura do século XX: Pessoa, Almada, Proença, Aquilino, Régio, Irene Lisboa, Sebastião da Gama, Nemésio, Gomes Ferreira, Sena, Mourão-Ferreira, Araújo Correia, Mário Dionísio, Saramago, Rodrigues Miguéis, O’ Neill, Urbano, Luísa Dacosta, Maria Ondina Braga, Vergílio Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Guerra Carneiro, Agustina, Assis Pacheco, Cardoso Pires, António Osório, Mário de Carvalho, etc.. Como refere Fernando Venâncio, as cem crónicas que aí podemos apreciar e saborear são “impagáveis”, demonstrando “quanta agilidade mental, quanta inventiva, na feitura e na expressão, quanta finura e malícia, quanto domínio da persuasão e do divertimento, vão investidos num género tido, desde sempre, por marginal às artes sérias”.
Folheando as páginas desta antologia vêm ainda nosso encontro trechos lapidares, que nos fazem ver mais claramente o Portugal de 2007. Com duas delas termino: “O Estado português dá a impressão de uma tenda de louça onde entrou uma manada de toiros bravos.” (Aquilino Ribeiro, 1926); “As nossas dificuldades presentes (...) merecemo-las, moralmente. (...) Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.” (António José Saraiva, 1979).
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