A entrega do Prémio Nacional de Poesia "Sebastião da Gama" a Amadeu Baptista e o lançamento do livro galardoado, O Bosque Cintilante, decorreram no sábado passado em Azeitão, com assinalável dignidade. Aqui ficam as palavras que proferi na ocasião:
Poderia proferir – em nome do júri do Prémio Nacional de Poesia “Sebastião da Gama” – palavras de circunstância. No entanto, nem o poeta premiado – Amadeu Baptista –, nem a memória do autor de Serra-Mãe (e do outro grande vulto poético da Arrábida, Frei Agostinho da Cruz), nem a assistência o merecem. Palavras de circunstância diria se viesse afirmar ter sido muito difícil e demorado escolher entre os cento e trinta e um originais o merecedor do galardão. Tal informação não corresponderia, contudo, à verdade. Sentados à mesa, depois de aturada leitura de todas as colectâneas submetidas à apreciação dos jurados, em poucos minutos sobressaiu uma decisão unânime. Vergílio Alberto Vieira, José do Carmo Francisco e o subscritor destas frases não tiveram dúvidas quando verificaram que o livro intitulado O Bosque Cintilante (a que fora atribuído o número 24) era um incontestável ponto luminoso. A luz emanada do título correspondia (e corresponde) plenamente à eminência poética. Não fazíamos ideia do ser carnal que se ocultava por detrás do pseudónimo “Paganini”. (Lembrei na altura Ruy Belo, para quem a Poesia é feita de poemas e não de poetas...) Tínhamos no entanto inteira convicção de que a justiça estava do seu lado.
Amadeu Baptista – nome descoberto depois da abertura do envelope lacrado – não era desconhecido de nenhum de nós (nem deveria sê-lo de qualquer olhar clarividente sobre a poesia portuguesa contemporânea). Autor de dezassete livros de poemas e de uma excelente antologia pessoal recentemente publicada, vem rasgando desde 1982 uma das mais importantes vias de circulação sanguínea desse corpo (por vezes paradoxal) que é a literatura em língua portuguesa do nosso tempo. Não precisa dos meus elogios (a qualidade de quanto escreve e/ou publica vale por si), mas há verdades que devem ser repetidas, para que não percamos de vista, na selva de alheamento que envolve o mundo cultural e social que nos foi dado viver, os focos luminosos (aqueles que têm brilho próprio) – e os saibamos distinguir desses espelhos enganadores que apenas reflectem a luz alheia, nada produzindo de válido, mas conseguindo ainda assim ofuscar e desorientar quem tenta encontrar o seu caminho. É preciso sermos, como refere Cristo no Evangelho segundo Tomé, “puros como as pombas e astutos como serpentes”.
Num “país de poetas” que não lê os poetas, como escreveu um dia Alexandre O’ Neill, é urgente separar o ouro do latão dourado ou de outros metais sem nobreza que, mais cedo ou mais tarde, revelam o seu verdete ou a sua ferrugem. Versejar e escrever poesia não são a mesma coisa. A Poesia revela, desvela, ilumina, transfigura, religa, desencanta o Universo. Os versejadores (mesmo os mais hábeis ou bem relacionados) apenas mutilam, ocultam, obscurecem ou conspurcam a realidade tangível ou intangível que nos envolve.
“Bem mais que a expressão do inefável / seja a expressão do amor a poesia”, afirma Amadeu Baptista num poema seu. Sebastião da Gama diria que “o segredo é amar”, porque “a nobreza da Poesia [...] está [...] [em] se procurar e se encontrar em todos os lugares em que se está”. Quem escreve precisa, no entanto, como referiu Agostinho da Silva num livro sobre Giacomo Leopardi, “que o meio de algum modo [lhe] favoreça a tarefa”. Estimulá-lo com um prémio é uma boa maneira de o fazer (porque o poeta, ser humano como todos os outros, também come, também se veste, também necessita de um tecto ou de viajar...), desde que esse prémio traga consigo não apenas a compensação monetária, mas sobretudo uma alavanca que faça avançar com maior força a leitura da matéria escrita.
A tarefa cabe a cada um de nós. Parece que ouço, neste momento final das minhas palavras, algo de semelhante a uma frase de Renoir sobre a pintura (desta vez sobre a poesia): “Se os poetas só podem ajudar a Poesia escrevendo-a o melhor que podem, aqueles que não sabem ou não conseguem levar a cabo essa tarefa, têm apenas uma coisa a fazer: leiam poemas, comprem livros de poesia, façam-na chegar a todos os cantos, sirvam-na com humildade e nunca, mas nunca, se sirvam dela.”
Azeitão, 19/5/2007
10 comentários:
Belo texto, belas palavras dignas do poeta a quem foi atribuído o prémio.
Mas no entanto mercê do mundo que rodeia o facto artístico (como o mundo que rodeia o facto futebolístico) em geral composto por observadores muitas vezes sem ética e sem qualidade, Portugal é um dos ambientes mais tristes da Europa.
Vivi em Paris, Santander e Londres e sei do que falo. Só provincianos deslumbrados com as "luzes do mercado" podem tentar enganar-se...ou enganar-nos, e por isso é que o país está como está porque tudo faz parte dum grande corpo comum.
Não conheço suficientemente Amadeu Baptista, mas o que dele conheço faz-me desejar ler mais.
Tomo a liberdade de lhe dar sinceros parabéns.
Registei o nome de Amadeu Baptista....gostei e muito do que li!!!
Caro Ruy Ventura
Ainda que a sua obra seja em termos qualitativos, aqui e ali, um pouco desigual (muito em virtude da sua extensão), Amadeu Baptista é um dos poucos poetas de hoje, a escrever em língua portuguesa, que verdadeiramente me interessa.
jorge melícias
Jorge Melícias tem razão no reparo que faz sobre Amadeu Baptista.
Acrescento que pela minha parte, felizmente, dou o meu interesse a um bom número de poetas portugueses, que os há e de qualidade, basta termos olhos atentos ao que nos rodeia.
Creio que Milhazes opina bem. Neste caso, também creio que o autor de "Lume nos pulmões" é um bocado restritivo, ainda que respeite a sua opinião.
Os poetas a seguir atentamente não são assim tão poucos.
Não acho correcto alguém vir aqui elogiar Amadeu Baptista com o intuito que parece ser de dar a entender que há muito poucos poetas que lhe interessem.
Acho mau gosto, elogio envenenado.
Querida Teresa Melo
O nobre exercício do elogio é algo tão visceralmente natural em mim que, acredite-me, não ter tempo para envenená-los a todos.
Quanto às ilações éticas e estéticas que a minha querida tira do meu brevíssimo comentário são, quando muito, assunto seu e do seu orientador espiritual.
jorge melícias
Senhor Jorge: registo o tom fino e agradavelmente machista com que o menino se me dirige. Aproveito para dizer que não sou sua querida, o seu tom de cavalheiro talvez habituado a beijar a mão a damas respeitosas não se coaduna com os meus 52 anos sem meiguices. E já que fala em ética e estética e em orientações espirituais num tom tão viril, digo-lhe com feminil jeito que apesar disso não me parece que o menino tenha tomates para mim. Saudações sem veneno.
Querido(a)tadem
52 anos sem meiguices e bem vividos nas bancas do Bolhão. Pelo menos a avaliar pelo à vontade com que virtualmente avalia os tomates que mais lhe se ajustam.
Sem mais tons,
jorge melícias
"se lhe", é um tom mais agradavelmente correcto ainda que tão ou mais misógino.
jorge melícias
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