José do Carmo Francisco
Fátima Murta –
Quando o poema se confunde com a oração
Desde sempre os poetas tiveram a coragem de chamar todas as coisas pelos seus nomes. Pois se a vida é tão breve e o amor tão incerto que outra oposição podemos fazer à morte além da criação de poemas, pequenos alicerces na grande casa da posteridade?
A posição do poeta é coincidente com a do crente. Ambos ajoelham em silêncio e ambos levantam do chão a palavra cansada para ligar de novo dois mundos separados pela distância, pelas sombras e pelo esquecimento.
Em «Consumatum Est» Fátima Murta afirma:
«Poderiam retirar-me tudo na vida menos a prece, a oração.»
A ligação entre a oração e o poema está no amor porque o amor é a única resposta à morte mesmo quando («Viola Delta III») não sabemos, ao certo, o que é o amor:
«Não sabemos o que é o amor mas, amor, amamos o que desconhecemos.»
E mesmo quando a morte tem a dimensão do espectáculo planetário transmitido em directo (11 de Setembro) ou do Holocausto de 1939/1945, é sempre possível cantar em poema «A última vítima de Auschwitz»:
«Apenas mais uma túlipa mais que seca a pele e o olhar. / Apenas mais uma mulher que um dia sonhou com um jardim. / Apenas mais uma mulher. / Já nada tem de seu.»
A única resposta ao sangue derramado dos timorenses é um poema a Santa António de Lisboa em «Santa Cruz de Timor»:
«António, meu Santo António de Dili, de Baucau, de Bobonaro / Meu Coronel Santo António alistado na milícia de Maria / Casa o Mar do Homem com o Mar da Mulher / e fica à espera que a nova bandeira da paz entre os homens / brilhe junto à gruta onde foi assassinado o primeiro filho de Timor!»
Mas o amor, tal como a poesia, não é fácil. Além de não saber o que é o amor, o poeta procura muitas vezes um amor que não encontra. Como em «Coisa talvez amada»:
«Queria colher a rosa mais linda de Maio
Mas tu estavas tão longe dela e de mim
Fui eu para longe de ti e levei a rosa (...)
Não cheguei a oferecer a rosa mais linda de Maio.
Colhia-a a meio da tarde e havias partido pela manhã.
Tão cedo se deixam as rosas entardecer.»
Federico Garcia Lorca foi morto mas venceu a morte e hoje o seu nome é vivo; ninguém sabe o nome dos seus carrascos. Vejamos essa memória em «Com perfume de limão»:
«Dorme Federico dorme
dorme com as estrelas nos olhos de prata
Meu menino de presépio nascido do céu
sobre as nebulosas onde a água chora.»
Agostinho da Silva, outro vencedor da morte, está presente nos textos de Fátima Murta:
«Ser criança também é uma arte muito difícil. Nem todas as crianças conseguem ser e permanecer crianças. Porque ser criança não é o mesmo que ter poucos anos de idade.»
Tanto nos poemas como nos textos narrativos de Fátima Murta surge um roteiro de fidelidade à ideia de não morrer. Em «Senhora do Carmo» do livro Palavra de Mãe, o poema é poema mas sem deixar de ser uma oração:
«Assim eu viva contigo sempre a meu lado, estrela
Assim eu morra mergulhada no teu firmamento
e quando a escuridão me seduzir ao afago dela
me ouças gritar: Mãe, fica só mais um momento!»
Se ficamos junto da mãe, da mãe do Céu, da mãe da vida, da mãe da alegria e do amor, então será possível o poema matar a morte. Também na canção «Senhora da Aparecida» há uma quadra que diz textualmente:
«Você me apareceu
Quando eu menos esperava
O mar unido ao céu
Ao meu redor gritava»
Se ficarmos junto da mãe, a oração que o poema também é, servira de ponte entre dois mundos. O do precário e o do eterno; o das lágrimas e o da alegria sem fim; o do efémero e o da posteridade. Dito de outra maneira: o dos Homens e o de Deus.
Os poemas, as canções e os textos narrativos de Fátima Murta comungam, praticam e proclama esta verdade tão antiga como o Mundo: «Só há uma medida para o amor que é amar sem medida.»
2 comentários:
A apresentação é tão bela como os poemas.
O texto é um poema só.
Obrigado
Joaquim
http://murtasapo.blogs.sapo.pt/51701.html
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