José do Carmo Francisco


Entre a ausência e a memória

Estamos num quente fim de tarde no Café Peter de Lisboa entre uma sandes de atum e o inevitável gin tonic. Entre o pão que sabe a terra e o atum que sabe a mar. O gin tonic, esse é um convite a todas as viagens. Mesmo aquelas que se fazem sem sair da nossa mesa. Uma velha fragata recuperada aguarda os passageiros para uma volta pelo Mar da Palha. Parece que o nome deste estuário lhe vem das grandes inundações no Ribatejo no passado quando a corrente violenta trazia numerosos fardos de palha da Lezíria até Lisboa. Oiço, julgo que oiço, palavras, restos de palavras, sílabas, ditongos perdidos, pequenos sons da voz de Maria José. Misturam-se os dois tempos da ausência e da memória. E a mesa que parecia vazia surge povoada pelo tempo em que não havia distância nem silêncio. Todas as manhãs nesse tempo eram iluminadas pelos passos decididos de Maria José. Hoje, neste fim de tarde onde uma brisa teimosa procura empurrar o calor para o estuário do Tejo, despeço-me do Café Peter e passo de novo junto à fragata de cores garridas. De súbito vejo, julgo ver, o seu nome que mudou – em vez de Castro Júnior é agora Maria José. A voz de Maria José é um vento novo que empurra a velha fragata recuperada para uma travessia até ao outro lado do Mar da Palha. Eu sou apenas um pequeno ponto na grande multidão do Parque das Nações. Passam centenas de atletas urbanos a correr, outros pedalam vigorosamente em bicicletas caríssimas porque são leves como penas. Grupos de turistas multiplicam os flashes das fotografias de recordação. Entre a ausência e a memória de Maria José eu já não sou uma pessoa mas apenas um frágil e pequeno organismo sentimental.

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