BAIRRISTAS E FORASTEIROS

Lembro-me como se fosse hoje. Corria o ano de 92. Escrevia eu no Notícias de Elvas. Num debate promovido por este jornal, fôra convidado um moderador qualificado. Feita a introdução necessária ao tema, logo um cavalheiro se levantou da assistência, pedindo a palavra. Quando todos esperávamos uma intervenção suscitadora, o dito cidadão pronunciou: “Com tanta gente boa que há em Elvas, logo havia de vir um gajo de fora dizer das suas!” Assim mesmo. Com a delicadeza de um elefante numa loja de loiça (perdoem-me os paquidermes...).
Há gente assim. Não olham para a qualidade dos seres humanos, para a sua experiência e verticalidade (que consideram, quiçá, incómodas), para as suas capacidades ou para os seus atributos – mas apenas para a certidão de nascimento (verdadeira ou suposta) que, tanto quanto sabemos, não constitui atestado fiável nem de inteligência nem de competência. Certo bairrismo tem destas coisas: há gente que prefere vinho carrascão, só porque nasceu dumas vides enfezadas lá da terra, e rejeita um néctar divino, só porque a cepa rebentou em território que não consegue alcançar com a vista. Esquecem quase sempre um princípio universal: podemos nascer em qualquer canto, até num comboio ou numa avioneta; a “pátria”, contudo, é um assunto do coração, crescendo da adesão espiritual a um lugar, tantas vezes diferente daquele em que lançámos o primeiro grito.
O bairrismo vale a pena quando defende com abertura de espírito e frontalidade crítica as mais profundas aspirações duma colectividade (o seu verdadeiro desenvolvimento mental, cultural, cívico e económico). É manifestação espúria duma sociedade fechada e ignorante sempre que revela uma bacoca miopia, embebida em estupidez, quando defende o indefensável, quando promove a mediocridade local só porque é local, quando recusa a crítica legítima, quando é veículo de reprodução social na promoção do imobilismo e, frequentemente, do caciquismo nas suas expressões mais perigosas e/ou descaradas.

Exemplos contrários também existem. Há habitantes de aldeias, de vilas, de cidades e de países que vão dando bordoada na qualidade dos seus naturais, mesmo que seja notória e reconhecida fora de portas (sobretudo quando esses naturais vêm das camadas desfavorecidas, pois ameaçam a pirâmide social) – mas não hesitam em bajular quem venha de fora, mesmo que seja um burlão ou um vigarista, ou apenas um chico-esperto que habilmente manipula a hospitalidade local.
Por isto e por muito mais escrevo sem hesitações: nem forasteiros nem indígenas. Melhor dizendo: para nada nos deve interessar o bilhete de identidade de uma cidadã ou de um cidadão, desde que mostre verticalidade, qualidade e competência; igual desprezo devemos votar à naturalidade de quem se apresenta na sua mediocridade. Prezemos quanto de bom nasça nas nossas terras, mas com o mesmo amor acarinhemos os frutos saborosos vindos do resto do mundo. Com Marco Aurélio, defendo que “pouco importa viver aqui ou ali se em toda a parte tivermos a ideia que este mundo é uma cidade”. Ninguém vive plenamente sem raízes e sem uma profunda religação ao espaço que ocupa no mundo e à sua memória integral (positiva ou negativa). Mas não deixo de concordar com Pascal: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. (...) pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.

5 comentários:

Anónimo disse...

Sou de perto de Elvas. Gostava que o autor do texto revelasse os nomes do apresentador e do sujeito que interveio. Os bois é de frente que se apanham, diz um ditado.

Ruy Ventura disse...

O apresentador era o historiador João Garção e o tema do debate o estado lastimoso do Forte da Graça. Quanto ao cidadão que produziu aquela pérola do bairrismo, nunca soube o seu nome.

Anónimo disse...

Embora ele não mereça que se recorde o nome, dizem-me que o cidadão bairrista era um tal Ricardino, um chico esperto que entretanto faleceu. Paz à sua alma e à sua má educação.

Anónimo disse...

Um texto muito bom! Subscrevo e aplaudo. Beijinho.

Luis Eme disse...

Concordo plenamente.