DINIS MACHADO
O autor de O que diz Molero faz hoje setenta e sete anos, no mesmo dia em que se comemoram os trinta anos dessa obra única na literatura contemporânea de língua portuguesa. “Estrada do Alicerce” regista a admiração pelo autor e pelas suas obras reproduzindo um texto publicado originalmente num suplemento cultural editado em Portalegre, misto de crónica, ensaio e poesia.
SEIS QUADROS
DE UMA EXPOSIÇÃO
Quadro número um
(Passa uma bola por cima da minha cabeça, na direcção do mar. É uma bola cor de canário, cai na massa verde. Um octogenário saudável, que está a molhar os calções e a chapinhar a barriga, de cócoras, mete a manápula debaixo da esfera rutilante, vira-se para a praia, dá dois passos, atira a bola ao ar – e catapumba, um disparo com a esquerda que nem o Puskas, o Tostão, o Teixeira Gasogénio, ou o Araújo, com o pé de dentro. A rutilante esfera sobe, cai a pique na rocha, numa saliência e falece: pfff. Os donos da bola, aí uns doze, e os seus apoiantes, aí uns trinta – que são aqueles que dão um chutinho de passagem, quando vão molhar os pés – ficam a olhar para aquela desgraça amarela, que foi uma bola. Um dos donos da antiga bola, e agora apenas uma tripa miserável, diz: “O velho rebentou a bola. Lixou-nos o domingo”.)
Quadro número dois
Este parêntesis inicial pretende dizer exactamente o que parece. Pode-se achar que é mais do que estúpido andarem uns gaforinos de várias idades e extracções, a darem pontapés numa bola com desatino incompreensível. Mas isso seria simplificar o que não é simples. Talvez não haja nada tão disparatadamente lúdico como o futebol. Disparatadamente?
Quadro número três
Podia acrescentar garantias de qualidade, de gente com arcaboiço, miolos estruturados, primores palavrosos, além de outras habilidades e funduras, desde o Lins do Rego ao Camus, sem esquecer os portugueses que praticam, ou praticaram, o futebol de pé, ou de tecla, com o afã de pagar, ou de ver os outros jogar. Talvez eu não ande longe da verdade se disser que me saiu um dia um drible (eu, jogador de meia tigela) a fazer-me igual ao Bobby Charlton, como às vezes escrevo umas letras que nem (mas passa-me depressa) o Fedor Dostoiewsky.
A grande euforia de qualquer arte espontânea (chamemos-lhe assim por razões de abertura) como o futebol, é que está a fazer-se no momento, ainda não é a sinfonia, o guacho, o livro, o filme, a peça que se fez a seu tempo. É efémero como o bailado, decide-se no apuro e na linguagem do corpo, mas tem uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis e ocasionais. A Margot Fonteyn, de um modo geral não falhava o movimento – mas o Eusébio, às vezes, a dois metros da rede, chutava sobre a barra. Impossivelmente. O futebol é impreciso e inesperado, cheio de mortalidade – embora já seja, hoje, também espectáculo de rever, cassete eterna, golo que nunca mais se apaga, de mostrar aos amigos e perdurar na memória. A televisão trata disso.
Quadro número quatro
Gostaria de não se petulante ou maniente (como se diz em conversa de rua) ao sugerir que o jogador sem adjectivos, não desmontável, com os pés voltados para todo o lado, a sujeitar os adversários e a bola à sua qualidade inconsciente, é tão difícil de explicar como outros mistérios: a luz de Rembrandt, por exemplo. E já não é tecnicamente saber como se faz – mas sim o fenómeno surpreendente de ter sido feito. O Zubieta que eu vi, o Bauer que eu não vi (mas contaram-me); os grandes patrões como o Obdúlio Varela, que eu também não vi, ou o Passos, ou o Humberto Coelho, que eu vi; os golos do Jesus Correia, sem ângulo, da linha final; a maneira como o Arsénio ou o Vasques nasciam na área; os pés de fazer tudo do Hernani e do Jaime Graça; o Matateu, que tinha o contorno, a deambulação e o solto do tigre; os jogadores mananciais, a respirar futebol por todos os poros e articulações, mesmo em tardes funestas, de tudo sair mal: o Germano, por exemplo, que saiu da doença pulmonar para o esplendor, magnético, a chamar a bola e a dar a bola, completo e arrastado, de uma lentidão perfeita. E os tiros do Travassos, a quarenta metros, com a bola a entrar (depois do arco e do silvo que fazia) ao canto, sempre. E o guarda-redes a colaborar com o seu voo eterno, atrasado e fotogênico. Os técnicos da bola sabem: os guarda-redes chegam sempre lá, mas, às vezes, a bola já passou.
(Os guarda-redes: os calmiças, com as suas tenazes: o Carlos Gomes, o Eizaguirre, o Banks e, dizem, o Yachine. E os pequenos felinos, a cuspir nas mãos, a sair do risco como quem lhe pisa o rabo: a Azevedo ou o Bento, para ficarmos entre nós.)
A verdade é que a inclinação súbita, autoplagiada, como o Garrincha saía pela direita, não vem no manual do soccer. Por isso o respectivo back não encontrava leitura. Nem o Pelé, a tabelar a bola nas pernas dos defesas. Nem o jeito e o balanço do Zarra, do Águas ou do Ian Rush a meter a testa com batimento e técnicas diferentes. O cheiro, a adivinhação e o timing são o jogador. Yazalde estava de costas – e voltava-se para fazer o golo: o golo já ia quase feito na maneira de rodar o corpo, o pé e a bola, tinham encontro marcado – o futebol tem essa triunfante fatalidade.
Quadro número cinco
(E eu: uns toques na bola, que é musculante e medicinal, e atrasa a doença, desde que não seja atropelamento. Na praia: uma tarde estive a chutar à baliza do Dores, com as toalhas a fazer de postes. Não sou o Di Stefano, como um amigo que tenho que faz umas borradelas, não é o Goya. Mas ninguém é Di Stefano. E ninguém é Goya. A não serem eles.)
Quadro número seis
E ainda ficam por escrever linhas pertinentes sobre a sociologia do futebol que, hoje, tem que ver com tudo – e não passa ao lado seja do que for. Nem falei das máquinas: a Hungria, o Real Madrid, o Benfica ou o Liverpool, o futebol de motor.
Amigos meus, dados a amassar o bolo ácido da escrita, têm um fraco por este título: “A angústia do guarda-redes antes do ‘penalty’”. Existe.
O que esta frase tem de símbolo e de signo, o jogo de ideias e de suores frios que faz circular, nem sequer comento. Fica para colóquio.
(in Fanal, nº 26, 19.07.2002; foto de Augusto Cabrita)
Quadro número um
(Passa uma bola por cima da minha cabeça, na direcção do mar. É uma bola cor de canário, cai na massa verde. Um octogenário saudável, que está a molhar os calções e a chapinhar a barriga, de cócoras, mete a manápula debaixo da esfera rutilante, vira-se para a praia, dá dois passos, atira a bola ao ar – e catapumba, um disparo com a esquerda que nem o Puskas, o Tostão, o Teixeira Gasogénio, ou o Araújo, com o pé de dentro. A rutilante esfera sobe, cai a pique na rocha, numa saliência e falece: pfff. Os donos da bola, aí uns doze, e os seus apoiantes, aí uns trinta – que são aqueles que dão um chutinho de passagem, quando vão molhar os pés – ficam a olhar para aquela desgraça amarela, que foi uma bola. Um dos donos da antiga bola, e agora apenas uma tripa miserável, diz: “O velho rebentou a bola. Lixou-nos o domingo”.)
Quadro número dois
Este parêntesis inicial pretende dizer exactamente o que parece. Pode-se achar que é mais do que estúpido andarem uns gaforinos de várias idades e extracções, a darem pontapés numa bola com desatino incompreensível. Mas isso seria simplificar o que não é simples. Talvez não haja nada tão disparatadamente lúdico como o futebol. Disparatadamente?
Quadro número três
Podia acrescentar garantias de qualidade, de gente com arcaboiço, miolos estruturados, primores palavrosos, além de outras habilidades e funduras, desde o Lins do Rego ao Camus, sem esquecer os portugueses que praticam, ou praticaram, o futebol de pé, ou de tecla, com o afã de pagar, ou de ver os outros jogar. Talvez eu não ande longe da verdade se disser que me saiu um dia um drible (eu, jogador de meia tigela) a fazer-me igual ao Bobby Charlton, como às vezes escrevo umas letras que nem (mas passa-me depressa) o Fedor Dostoiewsky.
A grande euforia de qualquer arte espontânea (chamemos-lhe assim por razões de abertura) como o futebol, é que está a fazer-se no momento, ainda não é a sinfonia, o guacho, o livro, o filme, a peça que se fez a seu tempo. É efémero como o bailado, decide-se no apuro e na linguagem do corpo, mas tem uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis e ocasionais. A Margot Fonteyn, de um modo geral não falhava o movimento – mas o Eusébio, às vezes, a dois metros da rede, chutava sobre a barra. Impossivelmente. O futebol é impreciso e inesperado, cheio de mortalidade – embora já seja, hoje, também espectáculo de rever, cassete eterna, golo que nunca mais se apaga, de mostrar aos amigos e perdurar na memória. A televisão trata disso.
Quadro número quatro
Gostaria de não se petulante ou maniente (como se diz em conversa de rua) ao sugerir que o jogador sem adjectivos, não desmontável, com os pés voltados para todo o lado, a sujeitar os adversários e a bola à sua qualidade inconsciente, é tão difícil de explicar como outros mistérios: a luz de Rembrandt, por exemplo. E já não é tecnicamente saber como se faz – mas sim o fenómeno surpreendente de ter sido feito. O Zubieta que eu vi, o Bauer que eu não vi (mas contaram-me); os grandes patrões como o Obdúlio Varela, que eu também não vi, ou o Passos, ou o Humberto Coelho, que eu vi; os golos do Jesus Correia, sem ângulo, da linha final; a maneira como o Arsénio ou o Vasques nasciam na área; os pés de fazer tudo do Hernani e do Jaime Graça; o Matateu, que tinha o contorno, a deambulação e o solto do tigre; os jogadores mananciais, a respirar futebol por todos os poros e articulações, mesmo em tardes funestas, de tudo sair mal: o Germano, por exemplo, que saiu da doença pulmonar para o esplendor, magnético, a chamar a bola e a dar a bola, completo e arrastado, de uma lentidão perfeita. E os tiros do Travassos, a quarenta metros, com a bola a entrar (depois do arco e do silvo que fazia) ao canto, sempre. E o guarda-redes a colaborar com o seu voo eterno, atrasado e fotogênico. Os técnicos da bola sabem: os guarda-redes chegam sempre lá, mas, às vezes, a bola já passou.
(Os guarda-redes: os calmiças, com as suas tenazes: o Carlos Gomes, o Eizaguirre, o Banks e, dizem, o Yachine. E os pequenos felinos, a cuspir nas mãos, a sair do risco como quem lhe pisa o rabo: a Azevedo ou o Bento, para ficarmos entre nós.)
A verdade é que a inclinação súbita, autoplagiada, como o Garrincha saía pela direita, não vem no manual do soccer. Por isso o respectivo back não encontrava leitura. Nem o Pelé, a tabelar a bola nas pernas dos defesas. Nem o jeito e o balanço do Zarra, do Águas ou do Ian Rush a meter a testa com batimento e técnicas diferentes. O cheiro, a adivinhação e o timing são o jogador. Yazalde estava de costas – e voltava-se para fazer o golo: o golo já ia quase feito na maneira de rodar o corpo, o pé e a bola, tinham encontro marcado – o futebol tem essa triunfante fatalidade.
Quadro número cinco
(E eu: uns toques na bola, que é musculante e medicinal, e atrasa a doença, desde que não seja atropelamento. Na praia: uma tarde estive a chutar à baliza do Dores, com as toalhas a fazer de postes. Não sou o Di Stefano, como um amigo que tenho que faz umas borradelas, não é o Goya. Mas ninguém é Di Stefano. E ninguém é Goya. A não serem eles.)
Quadro número seis
E ainda ficam por escrever linhas pertinentes sobre a sociologia do futebol que, hoje, tem que ver com tudo – e não passa ao lado seja do que for. Nem falei das máquinas: a Hungria, o Real Madrid, o Benfica ou o Liverpool, o futebol de motor.
Amigos meus, dados a amassar o bolo ácido da escrita, têm um fraco por este título: “A angústia do guarda-redes antes do ‘penalty’”. Existe.
O que esta frase tem de símbolo e de signo, o jogo de ideias e de suores frios que faz circular, nem sequer comento. Fica para colóquio.
(in Fanal, nº 26, 19.07.2002; foto de Augusto Cabrita)
1 comentário:
Dinis Machado merece tudo, proque além de ser um excelente escritor, é uma um grande ser humano.
Também o homenageei no meu "Largo".
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