Nicolau Saião



GÉNESIS


Pode fazer-se um poema com restos de poemas
e nem sequer só nossos. Basta saber escolher, tal como
uma dona de casa catando coisas frugais
numa perdida loja de subúrbio. (No entanto
o problema é: como conciliar os invisíveis
ou visíveis rastos de luz que as palavras
fazem rodar entre a noite e a manhã
das letras).Ou, melhor ainda
entre mil silhuetas de páginas desconhecidas
de esquecimentos
de risos ou
de decisivos desprezos.

O como, o talvez, os advérbios de lugar
ora dormem ora despertam. Podemos dispô-los
como flores silvestres
como pedras fibrosas ou tijolos
ao longo dum muro de quinta
no interior real dum jardim
ou como pedras tumulares
essenciais e descontínuos. Podemos trocar
a memória dum substantivo, de uma mancha de sangue, de uma
bastonada na cara ou de um suspiro. Podemos tirar
duma frase engolida o duro perfil duma alegria, ou mesmo
um verbo definitivo para um contentamento
um tempo a morrer
estático ou já liberto. Ouçam

o canto da noite: nesse silencio, pé ante pé
há ruídos e gestos, uma que outra amargura, a matéria sensível
que os poemas abandonaram. Ouçam o canto
da noite: cidades ao amanhecer, os sons inúmeros, nítidos, a substância
de um vulto ao crepúsculo. (A grande chuva, o grande sol
que nada mais são que recordações
trazidas por alguém
numa folha rasgada, num fragmento de minutos). Ouçam
o canto da noite
e saibam depois esquecer.

Todo o livro é um simulacro. Algo que se perdeu. Mas todo o livro existe
na sua atmosfera de fechada revelação
de velada inexistência
de apenas sopro ou vestígio
de móvel ou imóvel figura destroçada. Sim, pode fazer-se
não um mas muitos poemas sobre o como e o porquê
ou sobre o nada que eles, afinal, revelam
ou sobre o muito que eles, afinal, são
ou sobre o muito e o nada que lhes reside em volta
enquanto os anos perdem a nitidez
e as fronteiras perdem o sul e o norte
a sua altíssima impresença o seu finíssimo vazio
a sua transparência abominável
e sagrada
de desabafo
ou sortilégio. Sim, ouçam o canto da noite
a tal coisa que engrena
e se põe a correr
e se põe a parar
e cria em volta como que o esvoaçar de um planeta
com barulhos, com súbitas cores, com mágoas e magias. Sim,
ouçam o canto
da noite.

Ou até, talvez
o começar do dia
as palavras uma a uma no seu sereno balbuciar
quando as páginas são apenas ardilosas reminiscências
num papel amarfanhado

e a nossa voz é um reflexo num conjuntivo ou numa vírgula.


(in Flauta de Pan, 1998 - com pintura de João Garção, "Génesis")

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