PROSÉLITOS DO NEONATURALISMO (3)

Poetas sem qualidades” – assim se auto-intitularam alguns neonaturalistas num esclarecedor livro colectivo, prefaciado por Manuel de Freitas –, com fragilidades detectadas em primeira mão pelo olhar lúcido do poeta e ensaísta Gastão Cruz, em artigo publicado na revista Relâmpago, revelam uma qualidade poética muito irregular, que vai de propostas válidas e interessantes a uma imitação mal disfarçada de modelos endógenos e exógenos. Curiosamente, são os poemas que mostram mais evidentes qualidades estilísticas – as que os jovens neonaturalistas e seus padrinhos afirmam rejeitar – aqueles cuja estrutura se mostra mais sólida e duradoura. Há, portanto, incongruências (felizmente insanáveis) entre a “teoria” propalada e a sua prática versificatória...
O que é grave neste anacrónico proselitismo neonaturalista não é, no entanto, a qualidade (ou falta dela) dos poemas assinados pelos seus apóstolos, mas as posições sectárias que vêm assumindo com um crescente descaramento, desejando pôr em prática uma estratégia de terra queimada, ao quererem achincalhar todas as demandas artísticas em torno da palavra escrita que não passem pela simples mimésis narrativa ou descritiva de um “real” que olham apenas pelo lado mais estritamente materialista. Como afirmaria José Régio, nesse “real” "há mais mundos..." Existe, sobretudo, uma multiplicidade de instrumentos artísticos e verbais de que o poeta pode e deve socorrer-se com liberdade para construir os seus textos.
Nisto tudo não são, porém, originais. Para além das influências nascidas fora de portas, que já apontámos, há semelhanças flagrantes entre as suas propostas fundamentalistas e as assumidas pelo realismo marxista que dominou uma parte substancial da literatura portuguesa no segundo e terceiro quartéis do século XX. Não fosse a (aparente?) ausência de enquadramento político-ideológico de teor marxista-leninista-estalinista, estaríamos na presença de um neo-neo-realismo ou realismo socialista recauchutado. Não é preciso muito esforço para encontrarmos semelhanças entre, por exemplo, alguns textos de Manuel de Freitas e os assinados por Álvaro Cunhal contra o autor de Poemas de Deus e do Diabo, numa polémica célebre dos anos ‘40.
Não terão talvez uma “angústia da influência”. Quiçá não terão até consciência dos elos que os ligam a essa parte da história da literatura portuguesa contemporânea, a esse braço do poder soviético que visava tornar a arte num instrumento ao serviço daquilo a que chamavam “luta de classes”. Há, de igual modo, um relativo desprezo pelos poetas que, nos últimos cento e cinquenta anos de poesia em língua portuguesa, sem serem sectários nem fundamentalistas, cultivaram um verdadeiro realismo, aquele que parte dos elementos concretos do universo e da vivência humana para os transfigurar através das palavras. Não consta que, para além de Joaquim Manuel Magalhães e de mais dois ou três nomes, reivindiquem abertamente as heranças de, por exemplo, Guilherme Braga, Cesário Verde, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca, Vitorino Nemésio, Carlos de Oliveira, Nuno Guimarães, Ruy Belo, Armando Silva Carvalho, Carlos Garcia de Castro, Mário Cesariny, José do Carmo Francisco, Adélia Prado, João Candeias, Nicolau Saião, Ruy Cinatti ou Fernando Assis Pacheco. Seria bom que o fizessem, que os lessem e aprendessem algo com o seu realismo onírico, impressionista ou reflexivo. Reparariam que a roda, cuja invenção parecem querer reclamar, foi há muito inventada – e que todos quantos escrevemos fazemos parte de uma corrida de estafetas; recebemos um testemunho que deveremos transmitir muito melhorado. Se assim não for, não vale a pena. Chegariam ainda à conclusão de que quem deseja reinventar a roda, que é redonda, corre o risco de fazê-la quadrada...
Se lessem com frequência, por exemplo, Ruy Belo, teriam de concordar nomeadamente que toda a verdadeira palavra poética é “abstracta” porque “universal”, e que sem esse universalismo nunca poderá existir uma verdadeira polissemia, condição indispensável para a transfiguração verbal (logo, existencial) contida na multiplicação de sentidos que confere ao leitor uma inteira liberdade de interpretação e de pensamento.

(continua)

6 comentários:

ruialme disse...

Caro Ruy, estou a gostar desta série de textos. É uma uma análise acertiva e bem documentada. E, sobretudo, sem menosprezar os que são alvo da análise, antes colocando-os no seu lugar "histórico".
Creio que, entre os exemplos que dás de contribuintes para a herança, faz muita falta o nome de Ruy Cinatti. Sobretudo por causa do tom reflexivo. Quando leio Manuel de Freitas (de quem, em geral, gosto da poesia) ocorre-me sempre o título de um livro do Cinatti publicado em 1973...

Anónimo disse...

Ruy Ventura mostra ser um bom crítico além de ser um poeta que tive prazer em ler no único livro que dele conheço publicado na Black Son, "Capítulos do mundo".
O que escreveu e bem pode definir-se em menos palavras sem se estar com grandes análises e sem que se falhe no diagnóstico: puro oportunismo dos tais sem qualidades, a que se junta uma grande dose de mediocridade e descaramento bem lustrado pelos médias.
É triste ter-se de efectuar, em 2007 estes necessários trabalhos de limpeza, vale que a sua crítica é de clareza notável e por isso dê gosto ler.

Ruy Ventura disse...

Rui,
Na redacção do texto passou-me esse nome, para mim fundamental. Vou fazer a rectificação. Obrigado!

Anónimo disse...

Não faz mal nenhum que haja os sem qualidade, dão trabalho aos tipógrafos ajudando portanto a economia nacional. Já se duvida que ajudem os leitores a crescer e muito menos a poesia a deixar de ser pimba.
Mas o pior é a tentativa de exterminarem qualquer pensamento que não ande nos seus reduzidos terrados de feira.
Mas o jornalismo cultural alfacinha e tripeiro, tão medíocre como eles, entende-os e estima-os o que não surpreende qualquer diletante.
Aves da mesma pena andam juntas. Ainda bem.

Anónimo disse...

Ó Ruy, carago, se fizeres favor podes ajudar-me aqui numa coisa? É que agarro no meu "blogo", aperto, espremo, mas o corno não deita nada, nem uma imagem nem a porra dum simples anacoluto. Será que se fizer uma lavagem ao estômago da inter-actividade aquela merda fique mais limpa e me possa sair ao menos um oxímoro ou um pet ilustré?

Anónimo disse...

Somos tão poucos a ler e a interessarmo-nos por poesia que estas discussões levam a que ainda mais pessoas se desinteressem. A meu ver os que criticam os neo ou lá como lhe chamam fazem-no por despeito e inveja, já assim era no tempo de Camões a quem chegaram a tirar um olho. E ao Fernando Pessoa fizeram pior, transformaram-no numa estátua sentada de bronze sempre de perna aberta para apertar a mão aos turistas.
E desde o 25 de Abril é a mema sarna, esta falta de respeito que gela um tipo por dentro. Faça-se poesia, escreva-se, de preferência coisas que todo o povo entenda, mas por favor, não se critique quem tem talento e nomeadamente os que até conseguem escrever mesmo estando abstractos. Ou seja, concretos.