TRIÁLOGO
com Nicolau Saião
Por motivos pessoais e de saúde, Nicolau Saião tem andado afastado das lides literárias (o que não significa afastamento em relação à Arte e à Poesia). Como noticiámos, publicou recentemente uma antologia pessoal no Brasil e preparam-se, para breve, edições noutros países da América do Sul. Quebrou há pouco tempo um relativo silêncio, através de uma entrevista concedida à revista brasileira Agulha, um triálogo com Augusto José e Manuel Caldeira de que seleccionámos algumas declarações. O documento vale no entanto como um todo - merece ser lido e reflectido.
“Em primeiro lugar desprezo os oportunistas, tanto na vida quotidiana como nas letras & artes… Aqui na cidade de Portalegre e no Alentejo, para não sair da região, tenho conhecido vários. Pequenos oportunistas, porque isto é uma terra pequena. O que aliás não me descansa, às tantas uma pessoa gostava de encontrar canalhas em grande, como no Balzac… e apanha só canalhinhas à portuguesa! Bom… E desprezo também os enfatuados, os que se escondem por detrás do dinheiro ou do poder. A nível geral desprezo os politiqueiros, os raposões que fazem grandes frases e apenas querem enganar o povo, os – no caso da escrita – que constroem as suas lendas, grandes ou pequenas, sobre a desgraça dos povos, para acatitarem as respectivas produções. Mas os que desprezo acima de todos são os que se proclamam irmãos dos homens e nada mais têm para lhes dar que obtusidade, dureza e frieza. Pessoas por vezes com grande formação académica e intelectual, universitários e quejandos, mas que são uns perfeitos patifórios, usando o lugar de que dispõem para exterminar a dignidade com um evidente sentido de que o podem fazer impunemente.”
“Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal… ) tenho muito gosto em me definir… até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as referencias aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas, lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado, garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria, vivem por eles mesmos. Os mundos à Dali não me atraem nada enquanto hacedor, nada me dizem, os vastos painéis oníricos encaro-os como entidades… bem, falecidas. A meu ver o universo da poesia não é extático, há uma intrínseca vitalidade nas coisas. Sonho, sim, mas com cadeiras, janelas, motocicletas, roupas até. Que eu me lembre nunca sonhei com cavalos voadores ou homens espantados de olhos na ponta do nariz ou assim… O meu surrealismo é de situações inusitadas entre os factos e as personagens, o que me parece ser muito peculiar e ter muita força. Aliás, a “imagerie” surrealista à la page (ou pseudo-surrealista, se quiser) nunca foi cultivada com insistência senão por falsos surrealistas e explorada por publicistas pouco éticos ou propriamente tolos.”
“Não me diz nada enquanto literatice e creio mesmo que autores que se respeitam sofrem um pouco com esse cenário. Enquanto paixão interessa-me muito, é uma parte muito importante da minha vida. Aliás, numa palestra que fiz há uns dois anos em Espanha deixei isso bem claro. É uma grande aventura. Não posso esquecer o gosto com que defrontei – não apenas como simples leitor - livros como Mau tempo no canal de Nemésio, Voltar atrás para quê? de Irene Lisboa, Apresentação do rosto de Herberto Hélder, os livros de contos de Branquinho da Fonseca, prosa de Pascoaes e de Raul Brandão… O teatro do Ionesco, mesmo os seus contos, as reflexões memorialísticas em que se vasou às vezes, o Margarita e o mestre de Bulgakov, A montanha mágica de Thomas Mann… São experiências absolutas, só por isso valeu a pena ter vivido. Não falando em certos autores mais chegados, cuja escrita também sigo atentamente. No entanto o comboio literário em estilo Deve-Haver é frequentemente uma tristeza mas, como vivo fora desses meios onde as pugnas mais intensas acontecem, não sou muito tocado pela eventual peralvilhice. De vez em quando em fortuitos órgãos de informação topo com inquéritos género “ano passado nas letras” ou “para onde vai a literatura” que relanceio com certa má disposição porque aquilo tem mais o tom de treta mercantilista, o usual tique de coscuvilhice. Pacoviada. A literatura para onde vai? Para onde sempre foi, para o limbo dos séculos. O que interessa é a poesia e a escrita que se erguem altivamente para escarnecer as leis e ofender os deuses, como dizia Brassai. O resto é assim como que cocoricó para seis anos de imortalidade…”
“[…] nos últimos tempos têm tentado dar a poesia, a escrita, o “complexo literário”, como algo de supranumerário, talvez porque antes se tentava fazer dele uma arma de ascensão político-partidária. O que por vezes me parece que há é tácticas de sector onde o que se busca é fazer do autor uma espécie de padre sem sotaina, no mais acabado estilo de super-mercado ou de assanhada evangelização para primários. Aponto, como exemplo, para o neo-naturalismo (para empregar a expressão cunhada por Levi Condinho e posta a circular por Ruy Ventura) que entre nós quer agora ocupar totalmente, totalitariamente, a paisagem. De forma ainda mais nefanda que os antigos próceres e proponentes do “realismo-socialista”, pois esses ainda tinham uma justificação ideológica. Nestes lê-se, sem ser necessário binóculos, o simples nivelamento por baixo, para que a sua mediocridade, controlando por fora e em simultâneo “a praça”, seja legítima e imprescindível.
No campo das escritas as mais diversas os surrealistas trabalham sem rede, a própria busca de continentes novos a que se votam é por vezes empatada e prejudicada por gente que, já sem sequer disfarçar, o que quer é prebendas mesmo que a sua falta de talento as não justifique. E há encenações para “inglês ver”: certos prosopoemadores, que se desunham em tragédias artilhadas em livro, quando na vida quotidiana tiram a mascarilha afinal são cidadãos cheios de calma, muito contentes com o lugar que ocupam na árvore dos níveis… “