melodia
[Portalegre]


subimos por fim até ao firmamento
na dor cantada nesta noite
em que as palavras elevaram (no seu lamento)
a celebração da luz, atributo da voz e do tempo.


Gaspar, o entalhador, lembrou ainda a Afonso, contemplando:
não viste de antemão o percurso desta melodia.
acompanhou no entanto o nascimento das colunas,
o cruzar das abóbadas, as estrelas
que semeaste por todo este mundo.
ficaste, sustentando o lugar da música,
aguardando todos estes séculos
a sua chegada à tua arquitectura.


desculpa-me, Gaspar”, pronunciou Morales, el divino,
nenhum de nós esperou este momento.
de entre as notas, desde o local do nascimento,
aquela voz traçou uma outra veneração
entre a dor e a alegria.
imagens, altares, retábulos e resplendores,
a pintura nossa narrando a própria vida,
permaneciam na imperfeição
que só a palavra e a melodia conseguiram resgatar.


Stabat mater dolorosa...
a tua voz traduziu durante a noite
a angústia que nos conduz,
mas também a esperança,
lendo nos sinais o brilho no corpo e no gesto.
o perfume desce pelos teus ombros,
caminha pela encosta ao encontro do rio e da terra
.”

nenhum dos quatro respondeu:
nem Gaspar, nem Luis, nem Afonso
ou Fernão, sempre em silêncio.
as sílabas haviam nascido de um outro espaço,
de uma casa onde eram apenas o alicerce.
a (sua) obra ficara completa.
há porém um retábulo. uma pauta. permanecem ainda no início.

INGENUIDADE

Um amigo saiu há pouco da ingenuidade literária. Começou a aperceber-se da trampa que rodeia a escrita, ou melhor, a sua publicação e/ou divulgação. Mais tarde ou mais cedo, acontece a todos. Nesse momento, só existem três caminhos: resistência, desistência ou cumplicidade.

romances tradicionais do Norte Alentejano
aqui e aqui.
Outros se seguirão.
Estrada de Macadame
José do Carmo Francisco


«A seriedade, a obstinação,
o amor à terra, ao azeite e ao pão…»

O meu filho Filipe acaba de dedicar ao meu neto Tomás a sua dissertação de mestrado no Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi no passado dia 16 de Julho de 2007, no auditório D. Pedro V, frente a um júri bem exigente e qualificado, mas perante um relógio parado, que o meu filho defendeu a sua tese Guerra e Cultura na Formação de uma Imagem Pública Setecentista – D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, Conde de Assumar e Marquês de Alorna. O júri (os professores Dias Farinha, Maria Leonor Garcia da Cruz e Ana Paula Avelar) atribuiu ao trabalho de 300 páginas a classificação de «muito bom» por unanimidade, a nota máxima.
Tudo isto tem a ver (e muito!) com a Estrada de Macadame embora possa não parecer à primeira vista. É que, além de dedicar a Tese ao sobrinho Tomás que vive em Londres, o meu filho lembrou na dedicatória os meus sogros e a minha mãe (Olímpia do Carmo Almeida) e sabia que o meu pai (José Francisco) acompanhava em Santa Catarina, via telemóvel, as incidências da discussão do seu trabalho.
Dito de outra maneira: foi na Estrada de Macadame que em 1956 o meu pai fez de bicicleta os noventa quilómetros semanais para poder tirar a carta de condução em Santarém, procurando assim subir na vida, deixar a enxada e lavrar os seus dias ao volante de uma camioneta de carga e, mais tarde, de passageiros. Foi na Estrada de Macadame que eu desenhei um percurso em 1966 logo que acabei o Curso Geral do Comércio e arranjei trabalho no Banco Português do Atlântico em Lisboa: queria fazer mais do que entrar às nove e sair às seis (como era nesse tempo) em que ainda se trabalhava aos sábados até às 13 horas. O meu percurso como jornalista e como escritor tem início em 1978 no Diário Popular – um jornal que já não existe – mas a origem de tudo está nessa «seriedade, nessa obstinação, nesse amor à terra, ao azeite e ao pão» de que trata a cabeça desta crónica. Essas palavras de Raul Brandão, aplicadas ao labor de Alexandre Herculano são, afinal, uma chave essencial para perceber o sorriso de quem alcança os seus objectivos.
Ao dedicar em 2006 a sua tese de mestrado ao sobrinho bebé e aos avós falecidos, o meu filho mostra que, no fundo, percebeu uma verdade elementar: se as nossas gerações não se ligassem em afectos na sua sucessão, a nossa vida não seria outra coisa senão dor, deserto e desespero. Há 50 anos o avô decidiu tirar a carta de condução, há 40 anos o pai decidiu fazer um caminho nas Letras, hoje ele atinge um ponto alto que mais ninguém na família atingiu até hoje mas não esquece as raízes nem omite o futuro.
Em termos simples a sua tese divide-se em três partes: na primeira analisa o quadro familiar do Marquês de Alorna, o seu enquadramento na sociedade portuguesa e o início da sua carreira (politica, militar, cultural); na segunda parte enuncia as acções durante o Vice-Reinado (1744-1750), examinando e decompondo a realidade que constituía o Estado da Índia na primeira metade do século XVIII; por fim define-se a importante realidade documental impressa que acompanha e descreve o Vice-Reinado da Índia (1746-1752). É um percurso documentado que acompanha este Homem (Marquês de Alorna) na sua interacção com a realidade que o rodeia, procurando analisar a arte que transforma a Acção em Imagem. Apesar de toda a retórica e idealização da sua Figura, é erigida esta Imagem a partir do conjunto de acções políticas e militares que constituem o seu percurso público. (Espero ter conseguido dar uma ideia…)

A entrada de Aquilino no Panteão
BAIRRISTAS E FORASTEIROS

Lembro-me como se fosse hoje. Corria o ano de 92. Escrevia eu no Notícias de Elvas. Num debate promovido por este jornal, fôra convidado um moderador qualificado. Feita a introdução necessária ao tema, logo um cavalheiro se levantou da assistência, pedindo a palavra. Quando todos esperávamos uma intervenção suscitadora, o dito cidadão pronunciou: “Com tanta gente boa que há em Elvas, logo havia de vir um gajo de fora dizer das suas!” Assim mesmo. Com a delicadeza de um elefante numa loja de loiça (perdoem-me os paquidermes...).
Há gente assim. Não olham para a qualidade dos seres humanos, para a sua experiência e verticalidade (que consideram, quiçá, incómodas), para as suas capacidades ou para os seus atributos – mas apenas para a certidão de nascimento (verdadeira ou suposta) que, tanto quanto sabemos, não constitui atestado fiável nem de inteligência nem de competência. Certo bairrismo tem destas coisas: há gente que prefere vinho carrascão, só porque nasceu dumas vides enfezadas lá da terra, e rejeita um néctar divino, só porque a cepa rebentou em território que não consegue alcançar com a vista. Esquecem quase sempre um princípio universal: podemos nascer em qualquer canto, até num comboio ou numa avioneta; a “pátria”, contudo, é um assunto do coração, crescendo da adesão espiritual a um lugar, tantas vezes diferente daquele em que lançámos o primeiro grito.
O bairrismo vale a pena quando defende com abertura de espírito e frontalidade crítica as mais profundas aspirações duma colectividade (o seu verdadeiro desenvolvimento mental, cultural, cívico e económico). É manifestação espúria duma sociedade fechada e ignorante sempre que revela uma bacoca miopia, embebida em estupidez, quando defende o indefensável, quando promove a mediocridade local só porque é local, quando recusa a crítica legítima, quando é veículo de reprodução social na promoção do imobilismo e, frequentemente, do caciquismo nas suas expressões mais perigosas e/ou descaradas.

Exemplos contrários também existem. Há habitantes de aldeias, de vilas, de cidades e de países que vão dando bordoada na qualidade dos seus naturais, mesmo que seja notória e reconhecida fora de portas (sobretudo quando esses naturais vêm das camadas desfavorecidas, pois ameaçam a pirâmide social) – mas não hesitam em bajular quem venha de fora, mesmo que seja um burlão ou um vigarista, ou apenas um chico-esperto que habilmente manipula a hospitalidade local.
Por isto e por muito mais escrevo sem hesitações: nem forasteiros nem indígenas. Melhor dizendo: para nada nos deve interessar o bilhete de identidade de uma cidadã ou de um cidadão, desde que mostre verticalidade, qualidade e competência; igual desprezo devemos votar à naturalidade de quem se apresenta na sua mediocridade. Prezemos quanto de bom nasça nas nossas terras, mas com o mesmo amor acarinhemos os frutos saborosos vindos do resto do mundo. Com Marco Aurélio, defendo que “pouco importa viver aqui ou ali se em toda a parte tivermos a ideia que este mundo é uma cidade”. Ninguém vive plenamente sem raízes e sem uma profunda religação ao espaço que ocupa no mundo e à sua memória integral (positiva ou negativa). Mas não deixo de concordar com Pascal: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. (...) pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.

A literatura portuguesa contemporânea

AQUILINO NO PANTEÃO


Os ossos de Aquilino Ribeiro foram hoje colocados num sarcófago do Panteão Nacional, fazendo companhia a Garrett, Guerra Junqueiro, João de Deus e Delgado, mas também a Sidónio Pais e Óscar Carmona (o nosso país é assim...). Seja qual for a nossa opinião sobre a sua acção política, é uma atitude louvável do Estado, embora redundante, pois há muito a sua escrita o colocara no panteão da inteligência portuguesa.

Fui convidado pela Assembleia da República para a cerimónia, mas infelizmente não estive presente. A profissão e os condicionamentos impostos pelo Estatuto da Carreira Docente não mo permitiram. Tratando-se dum acontecimento que se desejaria o mais participado possível, não compreendo como se programou a homenagem para um dia e um horário (11 horas) em que apenas os desempregados e os disponíveis (aposentados ou de outra índole) puderam assistir.

Mário Cesariny
evocado
por
António Cândido Franco

José do Carmo Francisco


D. Manuel II
de Maria Cândida Proença


O último rei de Portugal, D. Manuel II (1889-1932) não estava preparado para assumir o trono quando as circunstâncias o obrigaram a reinar em resultado do regicídio que ceifou a vida de seu pai e de seu irmão.
Um aspecto curioso do seu temperamento é que o rei convidou, a expensas suas, o sociólogo francês Léon Poinsard para conhecer as condições de vida dos trabalhadores em Portugal. Acompanhado por Matos Braamcamp e Serras e Silva, Poinsard fez um diagnóstico imediato: «A principal causa da desordem crónica do país reside na sua organização política dominada por uma tribo pouco escrupulosa, ávida de poder e de proventos. Portugal está reduzido à falência, acabrunhado sob o peso de um fisco absurdo e mantido numa horrível situação de abandono e de atraso da qual não pôde ainda sair, apesar dos esforços e sacrifícios de alguns homens de acção
Outro aspecto que revela a sua pouca preparação para reinar é o que passa na semana anterior ao «5 de Outubro». Enquanto Lisboa vive momentos de agitação social com as greves dos tanoeiros, dos corticeiros e dos garrafeiros, o rei vai ao Buçaco com Lord Wellesley, neto do duque de Wellington. Na parada militar tem a seu lado os ministros da Guerra e dos Negócios Estrangeiros e no banquete ouvem-se «vivas» ao rei. No final D. Manuel afirma «Conquistei hoje o Exército» mas uma semana depois surge a República e o rei, abandonado pelo Exército, vê-se obrigado a deixar o país num iate da Ericeira para Gibraltar tendo escrito uma carta ao chefe do Governo: «Sou português e sê-lo-ei sempre. Tenho a convicção de ter sempre cumprido o meu dever de rei em todas as circunstâncias e de ter posto o meu coração e a minha vida ao serviço do meu País. Viva Portugal!»

(Editora: Círculo de Leitores, Capa: José Malhoa, Foto: Manuel Silveira Ramos)
A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER

Concreto/abstracto, utilidade/inutilidade, guerra/paz, ódio/amor, mecanismo/organismo, técnica/humanidade, indivíduo/colectividade... - poderia continuar a listar as dicotomias que estruturam A Máquina de Joseph Walser, de Gonçalo M. Tavares, mas estas são as principais. Na tensão entre o Homem e a Máquina se estabelece o romance, ao ponto de não sabermos já quem é um e quem é outro. Walser colecciona peças metálicas com menos de dez centímetros, separando-as do mecanismo original (ou agravando a supressão). Só quando a máquina com que trabalha lhe suprime um dedo da mão direita parece reposto o equilíbrio - surgindo a incompletude como condição para a grandeza humana, numa sociedade em que esta se confunde com a procurada vanglória.
José do Carmo Francisco


«Áreas populares» no CEBI
ou
Mandaram embora os velhotes…


O CEBI, Centro de Bem-estar infantil de Alverca, entrou na minha vida há muitos anos. Conheci José Álvaro Vidal através de Soledade Martinho Costa e por diversas vezes celebrei com ele a alegria de ver mais uma verba para o CEBI inscrita no PIDAC. Como moro relativamente perto da Assembleia da República ele arrumava o automóvel aqui perto. Era um sonhador mas conseguiu realizar muitos dos seus sonhos; quase todos. Ajudei a divulgar no Diário Popular as actividades do CEBI nomeadamente um livro com desenhos do António Pimentel e texto da Soledade. Seis histórias numa história de todas as cores era o título. Com o João de Melo, a Lídia Jorge, o Mário de Carvalho e o Baptista Bastos fiz a divulgação possível do projecto editorial porque o lucro dos livros era a favor do CEBI. Entretanto colaborei no jornal da casa, o Despertar.
Agora o CEBI tem uma revista a cores com 12 páginas. Tudo mudou: mandarem embora os velhotes como tem acontecido em outros jornais e revistas. Hoje recebi o exemplar de Junho onde li, atónito, que os alunos de piano interpretaram «áreas populares» e não árias. Li também uma legenda com um erro crasso: «Os alunos tiveram uma excelente participação nas audições em que participaram». Claro: participaram na participação. Passo por cima da confusão entre talentos e prodígios, a facilidade com que se usam palavras que, depois, não se confirmam no texto porque simplesmente não existem. Se fossem prodígios não estavam no CEBI. São alunos; ponto final. Na primeira linha do texto falam em final de ano mas não explicam que é lectivo. Enfim… O problema é que mandam embora os velhotes mas depois os computadores não fazem tudo…
NOVOS LIVROS DE RUY VENTURA
Acabam de ser publicados no Brasil, em edição electrónica,
dois livros novos do coordenador deste blogue.
e
estão disponíveis no Arquivo de Renato Suttana.
Boas leituras!
Nicolau Saião

O Circo dos horrores

Tinha jurado a mim próprio que, por uns dias, me iria remeter ao silêncio irmão do que se sente na modesta rua desta pequena localidade algarvia onde, por mor de um familiar afável, me encontro sediado.
Mas o mundo mundo vasto mundo, como dizia Drummond, insiste em se fazer lembrado – e confesso que embora a contragosto cedo às suas seduções.
Agora foi aquele senhor simpático, de ar familiar – um excelente cidadão, logo se percebe – que está ministro e se chama Rui Pereira, que com a lhaneza que o caracteriza nos veio garantir as boas obras das autoridades na captura dos assaltantes da ourivesaria e museu, sitos em Viana, e da segurança do País em geral.
Pouco tempo durou o meu contentamento. A minha tranquilidade. Igual à, se calhar, de alguns portugueses mais pacatos e inocentes…
Pois logo a seguir, com rasgos de verdade, a marota da “comunicação social” nos veio referir abundantemente que – nem os assaltantes foram detidos, nem se sabe muito bem quem são, estando as polícias em sucessivas declarações a desmentirem-se, a contradizerem-se, a desconferirem-se.
Reina a mais perfeita confusão, chegou mesmo a ler-se num importante periódico…
Para cúmulo, isto sucede na altura em que grassa no país dos brandos costumes de Salazar e José Sócrates uma onda de assaltos em estilo hollywoodesco.
E eu, como sou um cidadão de boa-fé, pese às amarguras que me pungem cíclica e socialmente (pudera! com um país assim!), apenas digo como naquela célebre imprecação de António Nobre: “Georges! Que é do meu país de pintores…que venham pintar esta estranhíssima realidade que nos rodeia?”.
E, por Toutatis, não foi preciso esperar muito… Ângelo Correia, que é um homem inteligente e um especialista atento das questões de segurança, pegou na paleta e, sem complexos de pinta-monos, em entrevista concedida a João Adelino Faria (Rádio Clube) colocou o pincel na ferida: as forças de segurança, sendo basicamente competentes e não estando tão mal equipadas como se tenta em certos sectores fazer crer, estão sob uma pecha do executivo: a má organização provinda da perversidade política e da incompetência ética e conceptual.
Este é que é o verdadeiro busílis.
E, como se diz na literatura policial: a quem aproveita o crime?
Ao povo, à nação, não é de certeza!

DESLIZES DO ETERNO RETORNO


As tuas luzes foram sendo escritas
como confidências em meu corpo.
Quase impossível despedir-me de ti.
Voz impressa na confusão do silêncio,
com sua lua ofegante debaixo da cama.
Desvairado curso com que planejas
a veemência de suas águas em mim.
Arrancamos as portas de todas as visões,
mistério a contrair velhos truques,
amiudando uma revoada de seios
onde a aparição de teu corpo inflama
os resíduos desordenados da memória.
Eu me afogo em tuas mãos, no ardor
movediço de tuas luzes, fogo contra fogo.

poema & imagem: floriano martins
agosto de 2007
José do Carmo Francisco


Salir d´Outrora
de Carlos Marques Querido

Já foram recenseados nesta coluna diversos livros sobre reis portugueses. Mas isso é (como diz o Povo) outra história. Este livro trata da História daquela gente que não deixa de ser importante só porque não é conhecida. Estas crónicas, antes publicadas nas páginas da Gazeta das Caldas, tratam duma memória qualificada de Salir de Matos mas também de Santa Catarina, Alvorninha, Benedita e Carvalhal Benfeito, povoações que ao longo de quase setecentos anos tiveram verdadeiras «guerras» com o Mosteiro de Alcobaça. O autor baseia as crónicas em documentos (Torre do Tombo, Biblioteca Nacional, Cartórios Paroquiais, Arquivos Municipais) porque sem documentos não há história mas sim lenda e este não é um livro de lendas. Nestas páginas desfilam figuras de destaque como o arquitecto de Salir de Matos, o conjurado do Carvalhal e o morgado do Formigal (século XVII) ou o deputado do Carvalhal e o Bispo de Santa Catarina (século XIX). Mas não só. Também as pessoas humildes que vivem e trabalham nas vilas dos coutos de Alcobaça são protagonistas. Eles e os seus problemas a propósito de águas e açudes, cadeias e pelourinhos, azenhas, lagares ou moinhos. E do relego – espécie de monopólio da venda do vinho. São terríveis as páginas sobre as vítimas da Inquisição em Salir de Matos: Duarte Lopes, Simão Luís, Francisco Álvares e Violante Gomes sofrem terríveis perseguições até à morte. Tal como são terríveis as páginas da vida de Maria da Purificação, uma jovem mulher casada com um homem mais velho que lhe dava jóias e vestidos mas não lhe dava aquilo que ela queria – usufruir da intensa vida social de Lisboa, muito mais intensa que os Casais da Ponte, onde tinha sido criada.

(Editora: PH - Estudos e Documentos, Grafismo: Inês Querido, Prefácio: Iria Gonçalves, Introdução: Nicolau Borges)

Nicolau Saião


Até que a voz me doa

Em (pequenas) férias nestas doces plagas algarvias, leio - entre o risonho e o embatucado - num jornal de referência como os zoilos inteligentes costumam dizer, que o senhor primeiro-ministro nomeou o Dr. Soares para presidir à comissão da liberdade religiosa.
Com o ar sedutor e nervosamente tranquilo que sempre o caracterizou, este declara na cerimónia formal, e cito impressamente, que a sua condição de agnóstico é uma mais valia de truz.
E eu, que também sou agnóstico não praticante (assim como se pode ser, ao que me dizem, cristão não praticante…) como ainda se vive em democracia (não é?) deixo esta reflexão:

Mário Soares será agnóstico, e diz-se tolerante, mas a sua prática tem sido outra: foi ele que até há bem pouco tempo, em declarações conhecidas, revelou a maior “compreensão” para com os motivos dos crentes da Al-Qaeda, chegando ao absurdo insensato de dizer que devia conversar-se com eles para saber o que queriam...
Soares é um produto típico da mentalidade que levou Sócrates ao poder: ser aparentemente tolerante, mas ser na prática, isso sim, o "compreensor" de todos os que, através do pretexto confessional, procuram no fundo que estejamos e fiquemos submetidos, reféns, das cliques "religiosas". Como, desejavelmente, das cliques políticas.
O dizer-se ou ser agnóstico não é mais valia, pode ser mesmo uma falha. Basta não se ter sensatez. É a melhor maneira de, com essa aparente caução, servir de alibi aos fanáticos. Ou aos habilidosos como Sócrates.
Soares, que nas últimas eleições o povo repudiou, é agora um dos homens com quem o actual primeiro-ministro conta para encenar a sua diatribe autoritária com disfarce liberal.
Para ser o bom valete dum autoritário, que melhor do que se ser um pseudo-sensato de mansas bochechas de avôzinho? Isso é que é um eficaz “disfarce”!
Pensem um pouco, por favor.
100 anos depois...

"Organização política dominada por uma 'tribo' pouco escrupulosa, ávida de poder e proventos"... "rotativismo" criador de "uma série de clientelismos"... "a intriga, o despotismo, a conspiração"... "poder anónimo e irresponsável que frequentemente dirige, duma maneira indirecta, mas efectiva, toda a alta política da governação"... "falência"... "fisco absurdo".
Será o Portugal actual muito diferente do apresentado nestes fragmentos escritos em 1909, retirados de um relatório elaborado pelo sociólogo Léon Poinsard, encomendado pelo rei D. Manuel II e pago do seu bolso? Cada vez me inclino mais para uma resposta negativa. Ontem, como hoje, o problema do país não é de regime, mas de governo.