Até dia 10 de Abril
estarei por estes e por outros lados.
Desejo a todos uma santa Páscoa.
José do Carmo Francisco


Um lugar para a crónica

Esta crónica semanal, escrita com a paixão do amador e com o rigor do profissional, tem nascido nos mais diversos lugares. Umas vezes surge na esplanada do senhor Oliveira no Príncipe Real entre turistas estrangeiros e famílias portuguesas que fingem tomar conta dos cães. Outras vezes nasce no Parque das Nações depois de um passeio à beira do Tejo e antes de beber um gin tonic no Café do Peter. Também acontece, quando acontece, no Chiado, algures entre o Café di Roma e a imagem do Castelo de São Jorge. Outras vezes escrevo-a no pequeno sofá onde procuro esquecer as canseiras de 39 anos de trabalho sem qualquer interrupção.
A partir de hoje, porém, este ritual semanal que já não posso dispensar, passa a ter um lugar. O seu lugar. Trata-se de um quadro feito a ponto cruz pela minha amiga Idalina, minha antiga chefe de secção no BPA, uma amizade de sempre e para sempre. Ela não se limitou a desenhar a ponto cruz um motivo belíssimo ou seja um caderno para escrever à esquerda do quadro e uma caneta à direita. Juntou ao conjunto uma rosa que tudo sobrevoa e tudo enche de perfume. E preservou o conjunto numa moldura de castanho escuro que se fecha num vidro capaz de desviar todo o pó do Mundo. Para a minha amiga Idalina a separação entre arte e artesanato não faz qualquer sentido. Este trabalho tem muitas horas de esforço, de paciência, de rigor. Tudo isto pontuado pela festa das cores, pelo feliz equilíbrio entre dois mundos – o mundo vegetal da rosa vermelha e o mundo mental da palavra em construção. A partir de hoje tenho um lugar para escrever a minha crónica. Não posso desiludir a minha amiga Idalina nem os meus ouvintes.
E SE TIVESSE SIDO
CUNHAL O VENCEDOR?

E se tivesse sido Cunhal o vencedor do concurso? Teríamos, decerto, uma boa parte da esquerda rejubilante com a elevação aos altares televisivos desse seu "santo" (assim o apresentou Odete Santos), "coerente" até ao fim na defesa e glorificação dos regimes totalitários envolvidos pela ideologia marxista-leninista e/ou estalinista, regimes que, por esse mundo fora, deram cabo e continuam a destruir a dignidade, a liberdade e a vida de tantos cidadãos.
Se a "medalha de prata" ganha por Álvaro Cunhal demonstra nalguma medida também um protesto contra a governação dos últimos trinta anos, a sua votação terá sido fruto, em grande parte, de uma mobilização telefónica militante dos comunistas ou simpatizantes do PCP (uns por convicção, outros por boa-fé demasiado distraída). Ao contrário de Salazar, os defensores do representante máximo dos ideais soviéticos no nosso país estão muito mais organizados, enquadrados na sua maioria por um partido que não esconde totalmente os seus propósitos mais íntimos.
Faces da mesma moeda, no ódio contra a democracia representativa, há no entanto diferenças entre Salazar e Cunhal: o primeiro foi ditador, o segundo gostaria de tê-lo sido. Nem vale a pena contra-argumentar-se com a sua luta anti-fascista. Vai uma grande diferença entre o digno combate contra o Estado Novo em defesa da Liberdade e da Democracia e um outro combate contra esse mesmo regime político que visava, ao fim e ao cabo, apenas a instauração de uma "ditadura do proletariado".

A VITÓRIA
DE SALAZAR


Salazar venceu. Como referiu há tempos um conhecido humorista, pela primeira vez, depois de morto, foi escolhido através de eleições...

Na falta de outros meios eficazes de protesto contra o estado lastimável e lastimoso do país, um punhado de portugueses aproveitou a oportunidade de um concurso televisivo para exprimir o quanto não lhes serve a roupa desta "democracia" que nos reveste.

Não acredito que a maior parte dos "votantes" no ditador (a propósito, teríamos gostado muito que a RTP nos informasse quantos foram...) o estime ou deseje um puro regresso ao passado. Manifestaram quanto lhes repugna o perfil de quem os representa e/ou governa, gente que, manipulando os instrumentos proporcionados pelo sistema político, com hipocrisia ludibria os seus concidadãos, promove a injustiça e a ilegalidade, age com prepotência, permite a corrupção e o tráfico de influências ou enriquece através deles.

Este sinal, valendo o que vale, traz portanto uma mensagem forte e muito clara, que certa gente não entenderá ou quererá entender. Avestruzes, admirar-se-ão e indignar-se-ão mais tarde, se ao poder legislativo ou executivo chegarem movimentos populistas e/ou de extrema-direita.

Nicolau Saião



GÉNESIS


Pode fazer-se um poema com restos de poemas
e nem sequer só nossos. Basta saber escolher, tal como
uma dona de casa catando coisas frugais
numa perdida loja de subúrbio. (No entanto
o problema é: como conciliar os invisíveis
ou visíveis rastos de luz que as palavras
fazem rodar entre a noite e a manhã
das letras).Ou, melhor ainda
entre mil silhuetas de páginas desconhecidas
de esquecimentos
de risos ou
de decisivos desprezos.

O como, o talvez, os advérbios de lugar
ora dormem ora despertam. Podemos dispô-los
como flores silvestres
como pedras fibrosas ou tijolos
ao longo dum muro de quinta
no interior real dum jardim
ou como pedras tumulares
essenciais e descontínuos. Podemos trocar
a memória dum substantivo, de uma mancha de sangue, de uma
bastonada na cara ou de um suspiro. Podemos tirar
duma frase engolida o duro perfil duma alegria, ou mesmo
um verbo definitivo para um contentamento
um tempo a morrer
estático ou já liberto. Ouçam

o canto da noite: nesse silencio, pé ante pé
há ruídos e gestos, uma que outra amargura, a matéria sensível
que os poemas abandonaram. Ouçam o canto
da noite: cidades ao amanhecer, os sons inúmeros, nítidos, a substância
de um vulto ao crepúsculo. (A grande chuva, o grande sol
que nada mais são que recordações
trazidas por alguém
numa folha rasgada, num fragmento de minutos). Ouçam
o canto da noite
e saibam depois esquecer.

Todo o livro é um simulacro. Algo que se perdeu. Mas todo o livro existe
na sua atmosfera de fechada revelação
de velada inexistência
de apenas sopro ou vestígio
de móvel ou imóvel figura destroçada. Sim, pode fazer-se
não um mas muitos poemas sobre o como e o porquê
ou sobre o nada que eles, afinal, revelam
ou sobre o muito que eles, afinal, são
ou sobre o muito e o nada que lhes reside em volta
enquanto os anos perdem a nitidez
e as fronteiras perdem o sul e o norte
a sua altíssima impresença o seu finíssimo vazio
a sua transparência abominável
e sagrada
de desabafo
ou sortilégio. Sim, ouçam o canto da noite
a tal coisa que engrena
e se põe a correr
e se põe a parar
e cria em volta como que o esvoaçar de um planeta
com barulhos, com súbitas cores, com mágoas e magias. Sim,
ouçam o canto
da noite.

Ou até, talvez
o começar do dia
as palavras uma a uma no seu sereno balbuciar
quando as páginas são apenas ardilosas reminiscências
num papel amarfanhado

e a nossa voz é um reflexo num conjuntivo ou numa vírgula.


(in Flauta de Pan, 1998 - com pintura de João Garção, "Génesis")

DINIS MACHADO

O autor de O que diz Molero faz hoje setenta e sete anos, no mesmo dia em que se comemoram os trinta anos dessa obra única na literatura contemporânea de língua portuguesa. “Estrada do Alicerce” regista a admiração pelo autor e pelas suas obras reproduzindo um texto publicado originalmente num suplemento cultural editado em Portalegre, misto de crónica, ensaio e poesia.


SEIS QUADROS
DE UMA EXPOSIÇÃO

Quadro número um

(Passa uma bola por cima da minha cabeça, na direcção do mar. É uma bola cor de canário, cai na massa verde. Um octogenário saudável, que está a molhar os calções e a chapinhar a barriga, de cócoras, mete a manápula debaixo da esfera rutilante, vira-se para a praia, dá dois passos, atira a bola ao ar – e catapumba, um disparo com a esquerda que nem o Puskas, o Tostão, o Teixeira Gasogénio, ou o Araújo, com o pé de dentro. A rutilante esfera sobe, cai a pique na rocha, numa saliência e falece: pfff. Os donos da bola, aí uns doze, e os seus apoiantes, aí uns trinta – que são aqueles que dão um chutinho de passagem, quando vão molhar os pés – ficam a olhar para aquela desgraça amarela, que foi uma bola. Um dos donos da antiga bola, e agora apenas uma tripa miserável, diz: “O velho rebentou a bola. Lixou-nos o domingo”.)

Quadro número dois

Este parêntesis inicial pretende dizer exactamente o que parece. Pode-se achar que é mais do que estúpido andarem uns gaforinos de várias idades e extracções, a darem pontapés numa bola com desatino incompreensível. Mas isso seria simplificar o que não é simples. Talvez não haja nada tão disparatadamente lúdico como o futebol. Disparatadamente?

Quadro número três
Podia acrescentar garantias de qualidade, de gente com arcaboiço, miolos estruturados, primores palavrosos, além de outras habilidades e funduras, desde o Lins do Rego ao Camus, sem esquecer os portugueses que praticam, ou praticaram, o futebol de pé, ou de tecla, com o afã de pagar, ou de ver os outros jogar. Talvez eu não ande longe da verdade se disser que me saiu um dia um drible (eu, jogador de meia tigela) a fazer-me igual ao Bobby Charlton, como às vezes escrevo umas letras que nem (mas passa-me depressa) o Fedor Dostoiewsky.
A grande euforia de qualquer arte espontânea (chamemos-lhe assim por razões de abertura) como o futebol, é que está a fazer-se no momento, ainda não é a sinfonia, o guacho, o livro, o filme, a peça que se fez a seu tempo. É efémero como o bailado, decide-se no apuro e na linguagem do corpo, mas tem uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis e ocasionais. A Margot Fonteyn, de um modo geral não falhava o movimento – mas o Eusébio, às vezes, a dois metros da rede, chutava sobre a barra. Impossivelmente. O futebol é impreciso e inesperado, cheio de mortalidade – embora já seja, hoje, também espectáculo de rever, cassete eterna, golo que nunca mais se apaga, de mostrar aos amigos e perdurar na memória. A televisão trata disso.

Quadro número quatro
Gostaria de não se petulante ou maniente (como se diz em conversa de rua) ao sugerir que o jogador sem adjectivos, não desmontável, com os pés voltados para todo o lado, a sujeitar os adversários e a bola à sua qualidade inconsciente, é tão difícil de explicar como outros mistérios: a luz de Rembrandt, por exemplo. E já não é tecnicamente saber como se faz – mas sim o fenómeno surpreendente de ter sido feito. O Zubieta que eu vi, o Bauer que eu não vi (mas contaram-me); os grandes patrões como o Obdúlio Varela, que eu também não vi, ou o Passos, ou o Humberto Coelho, que eu vi; os golos do Jesus Correia, sem ângulo, da linha final; a maneira como o Arsénio ou o Vasques nasciam na área; os pés de fazer tudo do Hernani e do Jaime Graça; o Matateu, que tinha o contorno, a deambulação e o solto do tigre; os jogadores mananciais, a respirar futebol por todos os poros e articulações, mesmo em tardes funestas, de tudo sair mal: o Germano, por exemplo, que saiu da doença pulmonar para o esplendor, magnético, a chamar a bola e a dar a bola, completo e arrastado, de uma lentidão perfeita. E os tiros do Travassos, a quarenta metros, com a bola a entrar (depois do arco e do silvo que fazia) ao canto, sempre. E o guarda-redes a colaborar com o seu voo eterno, atrasado e fotogênico. Os técnicos da bola sabem: os guarda-redes chegam sempre lá, mas, às vezes, a bola já passou.
(Os guarda-redes: os calmiças, com as suas tenazes: o Carlos Gomes, o Eizaguirre, o Banks e, dizem, o Yachine. E os pequenos felinos, a cuspir nas mãos, a sair do risco como quem lhe pisa o rabo: a Azevedo ou o Bento, para ficarmos entre nós.)
A verdade é que a inclinação súbita, autoplagiada, como o Garrincha saía pela direita, não vem no manual do soccer. Por isso o respectivo back não encontrava leitura. Nem o Pelé, a tabelar a bola nas pernas dos defesas. Nem o jeito e o balanço do Zarra, do Águas ou do Ian Rush a meter a testa com batimento e técnicas diferentes. O cheiro, a adivinhação e o timing são o jogador. Yazalde estava de costas – e voltava-se para fazer o golo: o golo já ia quase feito na maneira de rodar o corpo, o pé e a bola, tinham encontro marcado – o futebol tem essa triunfante fatalidade.

Quadro número cinco
(E eu: uns toques na bola, que é musculante e medicinal, e atrasa a doença, desde que não seja atropelamento. Na praia: uma tarde estive a chutar à baliza do Dores, com as toalhas a fazer de postes. Não sou o Di Stefano, como um amigo que tenho que faz umas borradelas, não é o Goya. Mas ninguém é Di Stefano. E ninguém é Goya. A não serem eles.)

Quadro número seis
E ainda ficam por escrever linhas pertinentes sobre a sociologia do futebol que, hoje, tem que ver com tudo – e não passa ao lado seja do que for. Nem falei das máquinas: a Hungria, o Real Madrid, o Benfica ou o Liverpool, o futebol de motor.
Amigos meus, dados a amassar o bolo ácido da escrita, têm um fraco por este título: “A angústia do guarda-redes antes do ‘penalty’”. Existe.
O que esta frase tem de símbolo e de signo, o jogo de ideias e de suores frios que faz circular, nem sequer comento. Fica para colóquio.

(in Fanal, nº 26, 19.07.2002; foto de Augusto Cabrita)

José do Carmo Francisco



Viagem com Ana Maria

De repente falámos de Veneza e as carruagens do Metropolitano sofreram nos meus olhos uma metamorfose, as estações ficaram inundadas e os seus nomes passaram a ser gritados em italiano pelo marinheiro fazendo sinal com o braço ao capitão para que a demora em cada paragem seja curta. Estamos num vaporetto prestes a chegar à Praça de São Marcos inundada de pombos e de japoneses com máquinas fotográficas da última geração. À esquerda o grande areal do Lido com as mesmas pequenas casas de madeira usadas nas filmagens de Morte em Veneza. Todos os anos as pintam no princípio da época balnear. E porque são muito caras há quem viva em Veneza e as alugue para usar de manhã subalugando a amigos à tarde. Vejo nos teus olhos a imensidão do Mar Adriático sem ondas e apenas sacudido ao de leve pela passagem de um petroleiro a caminho do Sul. Vem de Trieste, do outro lado do Golfo. Oiço na tua voz as sílabas perdidas de todas as minhas viagens. Um voo nocturno para Milão, uma viagem de autocarro até Bolonha, uma viagem de comboio até Veneza. No bulício da estação de comboios de Santa Lúcia descubro a tua voz límpida, terna e alta como num passeio da Rua do Ouro em 1969. Ao fundo está não a Ponte de Rialto mas o Cais das Colunas e os cacilheiros lentos cruzando um rio triste onde chegam aerogramas amarelos com notícias de emboscadas e de feridos evacuados de helicóptero. Os aerogramas estão todos amarrotados nos bolsos dos casacos dos passageiros. Tenho de novo dezoito anos na tua voz porque a memória não mente. Entre a emoção e a verdade a memória escolhe sempre a emoção que é, também, todos o sabemos, uma forma de verdade.

Faleceu faz hoje 47 anos na sua terra-natal, Montdidier, o poeta que soube ser aviador em todos os sentidos da palavra. Nascido a 14 de Abril de 1890, Maurice Blanchard é ainda hoje um dos mais importantes e desconhecidos autores de língua francesa. Homenageando o autor de Les Barricades mystérieuses, aqui deixamos o seu olhar sobre a poesia.


ART POÉTIQUE


I
C' est la terre que porte les fruits, et c'est la terre qui produit l'herbe verte el les arbres fruitiers et c'est la terre qui porte la semence, et Adam est là, couché dans la boue, couché dans les profondeurs de la boue sous le ciel noir des orages. Et le ciel est porté par la terre.


II
Il est là, Adam, le héros primordial qui nommera les choses et les êtres, et l' existence, et la non-existence, il est là rigide et qui attend l'éveil d'un nouveau printemps.


III
Vivre, c'est la guerre avec les trolls sous la voûte du coeur et du cerveau.
Écoutons alors ce que nous apprennent les maîtres: ceux du Nord, celui du Midi ravagé par les guerres fratricides et celui d'entre deux mers qui mourut fou sur un sac de copeaux!


IV
"Le poète est un homme qui n'a pas de pudeur, qui, réellement ne rougit pas!
Comme um bouquet de fleurettes saisi par le gel nocturne, il se penche et se referme et dès que le soleil l'illumine, il se dresse tout droit sur sa tige.
Ainsi, comme vous le voyez, um poète n'est pas de son époque.
Ainsi a-t-il le droit de détester la loi, voire même l'humanité.
Le poète n'est rien.
Ce qu'il cherche est tout."


V
Le poète ouvre les yeux sur toutes les apparitions du monde visible, opération magique entièrement soumise au hasard des rencontres. Ici, la rivière et sa baigneuse effarouchée, plus loin la forêt naissante, plus loin encore: une armée en marche. Une telle simplicité porte en elle tout le devenir.


VI
Entre le mystère et la violence, c'est l'exil dans um monde séparé de lui-même et qui n'éclatera pas selon les lignes, méridiens et parallèles tracés sur sa peau, mais par les deltas des fleuves déchirés par les orages, parturitions du feu divin.


VII
Les poètes, hommes du moment, sont des enfants sensuels et exaltés et qui passent brusquement et sans raison de la confiance à la défiance.
Avec un âme où se cache généralement quelque fêlure, ils se vengent souvent dans leurs ouvrages d'une souillure intime et cherchent, par leur envolée, à fuir une mémoire trop fidèle.


(in Splendeurs et misère, 1977)

Obrigado, Daniel, pela referência de 2 de Março no seu blogue.

Nicolau Saião



PREÇÁRIO

O poeta tem que descobrir situações.
É isso que lhe exige o protocolo. Saber
que por detrás ou ao lado
da imagem fosforescente (como num espelho
apenas pensado)
existem outras coisas (essas sim importantes):
um regresso um rádio de pilhas um primo

O poeta fica muito calado. Não sabe nada.
Não consegue - nunca conseguiu - reparem
contornar situações. Lembra-se, é evidente
de uma certa manhã em que havia mais claridade
(mas isso, sem o privilégio da revelação
é apenas um arbusto entre muitos)
e calcula, sem palavras, rotações e translações
em locais inóspitos.
O poeta, naturalmente, sempre sabe qualquer coisa.
Sabe, por exemplo, que não se pode calar.
As palavras são efectivamente les mots: colunas
em qualquer língua, graus de sustentação
para florestas, casas-de-campo, matrimónios
entre o planeta e o firmamento. É como

uma encruzilhada: aqui há uma vela sobre uma cadeira
ali alguém que se inclina sobre a imagem duma montanha
e o poeta tem de optar. Por isso não escolhe nada
e quando é noite diz para si que tudo voltou ao princípio

e sabe que tudo foi rápido como um silêncio.
E, vai daí, agarra aqui e acolá uma frase
um sorriso
um pacote de batatas fritas, um relancear

que é o que lhe fica dos olhares alheios
sempre ligeiramente hirtos como um eco ou um reflexo.


(in Flauta de Pan, 1998, c/ ilustração igualmente de Nicolau Saião)
AINDA VALE A PENA RECORDAR...

... que este é um tempo de Quaresma. Mesmo para os não-cristãos, parece-me positivo este período de paragem e de reflexão, tal como propõe António Justo.

Portalegre
o que resta da igreja de Santa Maria a Grande
José do Carmo Francisco



Videntes, astrólogos,
curandeiros e médiuns

Uma pessoa entra no Metropolitano de Lisboa e leva logo com dois jornais grátis. Claro que não são bem jornais. São uma pequena imitação em formato e em qualidade daquilo que supomos ser um jornal com as suas diversas secções e o seu artigo de fundo. Numa coisa, porém, eles são iguais aos outros jornais, aqueles pelos quais temos que pagar um preço. É na presença obsessiva de anúncios de videntes, astrólogos, curandeiros e médiuns.

É espantosa a panóplia de oferecimentos que estes senhores proclamam: resolvem problemas de amor, negócios, família, droga, impotência sexual, inveja, vícios, impotência sexual, retorno de afeição, problemas financeiros, amor, recuperação de empresas, inveja, mau olhado, falta de sorte, problemas financeiros, problemas judiciais, falta de confiança, dificuldade em engravidar, impotência sexual, álcool, drogas, falta de vitalidade. Mas não ficam por aqui: resolvem também amor, negócios, insucesso, inveja, impotência sexual, amarração, drogas, inveja, maus olhados, drogas, álcool, impotência sexual, fertilidade e por último este mimo – faz voltar amigos e amores. Este elenco tem várias repetições mas tal acontece de propósito pois pretendi juntar os cinco professores (são todos professores…) nas suas múltiplas capacidades apregoadas. Seria para rir se não fosse para chorar a pobreza de algumas delas como «problemas judiciais» como se todos nós não soubéssemos que os assuntos dos tribunais só podem ser tratados por quem domine os seus códigos. Isto sem esquecer as «recuperações de empresas» que afinal o IAPMEI não está informado sobre as capacidades destes professores africanos. Só não sabemos quem lhes deu o diploma.
Aurélio Porto


2

O preço da beleza, nestas ruínas amorosamente
reerguidas, é sem preço. O calcário em pedra solta
e firmes angulares, a talha rasando rente
e os volumes que como harmónio em volta

um só concerto tangem. E a rocha em frente
à pedra impõem a pequenez, enorme nessa rota
que faz a baía tecer de azul fremente
o belo impoluto na mais pura nota.

Até os pássaros no vinhedo prestam o tributo
debicando os bagos, e o majestoso pinheiro
no silêncio ergue seu hino. Lazareto outrora,

hoje este canto do passado ao presente faz o luto,
a ele trazendo a exacta medida do dinheiro,
do que vale e não vale, e do que vale a Hora.

Hotel Lazareto, Castro de Monemvassiá, 16.05.05


15

Defronte a mim Ítaca. Mas era esta? Ou outra? Ou
Quefalónia? Ou quê? Mas é pátria, a pátria sempre
buscada, nunca encontrada. O retorno impossível, anos
a fio. E, de súbito, ei-la. E não é ela. Que pátria temos?
O mundo, a terra? Estamos no mundo até ao pescoço,
unha com carne nós e o mundo. E porém não somos
deste mundo. Inacessível pátria, não ta dão gritos,
bandeiras, cores, aplausos. Outros que a ordenhem
assim. Dela recordas a face agora oculta, a terra que
amaste, a que se retirou. Quem dela regressará?

Antisamos, Quefalónia, 22.05.05
Tróia, Setúbal, 13.07.06


(in O Sopro A Mãe A Grécia - 22 sonetos e dois prosopoemas, que integra a colectânea da poesia inédita do autor intitulada Flor de um Dia, ela também inédita)

CRIAÇÃO POÉTICA

segundo Álvaro Ribeiro



“Poesia quer dizer criação. O homem recebeu a aptidão de criar com palavras aquele mundo (ou sobremundo) da cultura que o separa e distingue da animalidade. Sem a palavra significante não seria inteligível o culto, nem a cultura, nem a civilização.”

“O essencial da poesia não está na musicalidade que a metrificação, a versificação e a composição possam dar à sequência dos fonemas no discurso oral; não está ainda no carácter emocional de que o poeta reveste a expressão literária; está, sem dúvida, no efeito comunicativo dos tropos. A relação do sentido com o imaginado, dos sentidos com as imagens, projecta-se na movimentação verbal que confere à linguagem humana a sua virtude poética. Quanto mais essa movimentação se assemelhar à fluidez do sonho, no intento de transgredir ou transcender as condições normais do pensamento humano, mais livre está o poeta na sua criação.”

“Seguir e perseguir metodicamente as metáforas, – eis um preceito libertador que recebemos das doutrinas mais antigas. Muitos dos que o proclamam, e aconselham, não o cumprem imediatamente. Exemplo notável é o daqueles escritores que, desatentos às leis da vida, não conseguem descobrir a mediação lógica entre a cultura da fraternidade universal e o culto prestado a nosso Pai.

“Liberto por educação, o poeta elaborará depois o seu órgão próprio de intuição sobrenatural. Ele há-de meditar sobre a sequência dos heróis representativos do seu povo, aqueles que, por atingirem o ponto de tangência entre a humanidade e a divindade, «se vão da lei da morte libertando». Transformar a série histórica em série simbólica, mais verdadeira porque universal, é acto de imaginação que se propicia apenas aos poetas inspirados.”

“O essencial da poesia está, quanto a nós, no pensamento expresso pelos tropos, quer dizer, na possibilidade de ascensão ao plano espiritual. Em consequência dizemos que a poesia é análoga da profecia e da teologia. Convém, todavia, para bom entendimento desta doutrina, que ninguém confunda a profecia com qualquer forma de mântica ou de adivinhação.”


(in A Razão Animada, 1957)
POR QUE SERÁ?

Acabei de ouvir na rádio que o espaço deixado livre pelo fecho das urgências hospitalares e das maternidades vai ser ocupado por instituições privadas, nomeadamente o Grupo Mello e o Espírito Santo Saúde. Curioso: o que não dava para o Estado, dá agora para criar lucros... Por que será? Eu não creio em bruxas, mas que existem, existem...
José do Carmo Francisco

El lugar, la imagen
O lugar, a imagem
de Ruy Ventura

O mais recente livro de poemas de Ruy Ventura (n. Portalegre – 1973) é uma edição bilingue da Editora Regional de Extremadura com os poemas traduzidos por António Saez Delgado e a capa de Julián Rodríguez.
Se toda a obra de arte surge como uma humana rejeição da morte, um poema que canta a alegria do encontro do poeta com essa mesma obra de arte é um duplo registo da negação das sombras, do esquecimento e do desespero.
Este livro abre com um poema dedicado a uma escultura em barro do século XVIII:
«um corpo nasce nas mãos do oleiro / um corpo desce. procura / a raiz, a porta, a lareira / acenderá o mundo com o seu sopro / com a sua voz.»
Segue-se a meditação sobre uma escultura de madeira do século XVII:
«em que palavras leste a semente desse brilho? / no verbo que ele guardou no teu silêncio? / no coração, ardendo na memória? /ergues os olhos, saciando /o cálice em que saciámos a nossa sede.»
Mas pode ser também uma moeda romana do século I depois de Cristo, o motivo do poema. Ou uma estela funerária. Ou uma escultura em Lagos. Ou uma casa em Arronches. Depois pode ser uma catedral em Compostela, uma fortificação templária em Aveyron ou um poço num certo lugar em Penamacor.
Livro feito (com diz o título) de lugares e de imagens, em todas as suas páginas vibra uma voz poética a ligar a Natureza e a Cultura. Como por exemplo em «arquitectura», poema escrito perante o castelo e a judiaria de Valência de Alcântara:
«subimos à torre para melhor vermos / o círculo que nos une a esta terra / desce o firmamento. hesita esta memória / em tocar o bosque cuja língua desaparece. / de súbito, uma águia / a música que escrevemos. para sempre. / de regresso à largueza / da floresta»
Assim se prolonga poeticamente a rejeição da morte o mesmo é dizer a negação das sombras, do esquecimento e do desespero.

Nicolau Saião



POEMA


Não eram vulgares as mãos de meu Pai.
Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada
E quando pela noite o vento me fazia
tremer
algo me entrava pelos olhos e era
uma espécie de mapa
e eu lembrava-me esforçando-me contraindo
a cara
se era de facto uma luz o que se via
rés-vés ao telhado muito perto
do grande portão de pedra em ruínas.


Naqueles tempos morávamos no campo
Muitos anos mais tarde visitei a casa
com dois filhos e vários garotos vizinhos
numa tarde ao fim dum passeio pelas matas
dos arredores. Ao canto da cozinha
estava um banco velho e a madeira
ganhara uma cor acinzentada devido
ao tempo. Disse-me depois
- enquanto comíamos pão com azeitonas -
o dono dessa quinta alucinante
no páteo da outra moradia da herdade
que durante trinta e cinco anos
não morara ali ninguém. Éramos pois
nós os fantasmas daquele lugar.

Era no Inverno e as palavras repousavam
e de vez em quando ouvia-se um ruído
como de turbilhão
- certo dia um pássaro morreu junto à
porta da entrada, onde havia
uma planta como de antigas eras -

e algum tempo depois tive de partir e olhar
o universo de tudo de isto e daquilo

O oceano e as vozes recriavam-se algures.

in Flauta de Pan (1998)
PROSÉLITOS
DO NEONATURALISMO (4)


O proselitismo neonaturalista, na sua luta contra a “abstracção” (eufemismo que, como já vimos, esconde todo um conjunto de formas de expressão que não compactuam com a facilidade de leituras unívocas da realidade tangível que nos envolve, mas estruturam olhares infinitos sobre tudo quanto nos rodeia, visível ou invisível, existente ou imaginário, concreto ou abstracto), preocupa-se em atacar toda a poesia diferente da sua porque, alegadamente (como declarou Barreto Guimarães), “não comunica, não faz leitores, é um nado morto à partida”, uma vez que “só o autor sabe o que significam os seus poemas e, muitas vezes, nem eles próprios” (relevando no entanto deste “pecado” Herberto Helder porque, segundo escreveu há tempos Manuel de Freitas, a um “génio” “tudo se perdoa”).
Ecoa nestas e noutras atoardas a necessidade de uma poesia “ao serviço do povo”, defendida outrora pelo realismo socialista, pretexto invocado sempre que se tratava de nivelar por baixo e reduzir esse mesmo povo à indigência metal, facilmente manipulável. Numa época pós-moderna, cheiraria a bafio falar em “povo”, numa arte que “o povo entendesse”... Os objectivos podem ser até diferentes nos dias que correm, mas os fundamentos infelizmente são os mesmos. Em certos estômagos é muito pesado o ecumenismo poético, aquele que defende serem admissíveis todas as formas poéticas, desde que sirvam a palavra e não se sirvam dela, desde que transfigurem o mundo e não se limitem a devolvê-lo aos leitores tal qual o encontraram. Bem intencionados ou não, os propósitos de ontem e de hoje redundam num rebaixamento da capacidade de entendimento artístico, logo num empobrecimento mental dos sujeitos leitores que conduzirá, necessariamente, a uma maior alienação perante o mundo (físico, social ou espiritual) que os envolve.
Ninguém nega aos prosélitos neonaturalistas a liberdade de escreverem e publicarem poemas que se limitam à narração de episódios ou à descrição de cenários (embora consideremos que essa linha estética é na maior parte das vezes redutora e limitadora do desenvolvimento de potencialidades imaginativas e/ou racionais do ser humano). Temos no entanto o dever de denunciar a estratégia de “partido único” que vêm adoptando, ao tentarem queimar tudo quanto não reze pelo mesmo breviário, beneficiando umas vezes de um acesso privilegiado a certos areópagos para atacarem a liberdade criativa dos seus semelhantes, noutras ocasiões impedindo nos sítios certos a publicação de obras diferentes das suas ou então aproveitando a sua influência junto de certa comunicação social para escavarem um muro de silêncio em torno de propostas poéticas que os incomodam, não compreendem e/ou não querem compreender.
Há poucos anos uma escrevinhadora de narrativas sentimentais urbanas sem conteúdo afirmou num jornal que redigia os seus textos sem quaisquer exigências de estilo (ou de sintaxe, acrescentaria eu...) porque lhe interessava que todos compreendessem quanto escrevia (e, infelizmente, continua a escrever). Digamos, sem rodriguinhos: nivelou muito por baixo para vender os seus textículos, cuja melhor parte será a do papel em que foram impressos... Não acredito que, à semelhança desta produtora de pseudoliteratura, os prosélitos do neonaturalismo pretendam conscientemente instituir como via única na cultura portuguesa dos nossos dias uma poesia light (propósito, aliás, impossível de realizar, na medida em que poesia e ligeireza são realidades que mutuamente se excluem). Mas que disfarçam muito bem, lá isso disfarçam...
O bom selvagem

Alertado pelo José do Carmo Francisco, encontrei o texto seguinte assinado por Francisco José Viegas. Concordando com ele na totalidade, é de elementar justiça partilhá-lo:

"Vai um grande protesto, pelo país fora, contra a violência sobre os professores. Justificadíssimo. Mas, como acontece ou tem acontecido em matéria de educação, isto já estava previsto. Durante anos, a «escola centrada no aluno» e os mestres das «ciências pedagógicas» transformaram criancinhas em monstros irresponsáveis, ignorantes e prepotentes. Houve, ao longo destes últimos vinte anos, centenas de casos de professores agredidos e impedidos de reagir. Quando uma reportagem televisiva mostrou – com imagens cruas – exemplos dessa violência exercida sobre professores pelos alunos do secundário, logo algumas boas consciências protestaram contra, imagine-se!, a captação dessas imagens; mas não contra a violência, contra «o estatuto do aluno» e outras alegrias do sistema escolar. [No ensino superior, a imagem também é alegre: portões fechados a cadeado (com aplauso do Magnífico Reitor de Coimbra, evidentemente), dirigentes associativos que defendem o direito ao «chumbo» porque «não há condições» para terminar o curso em «tempo normal», faculdades esventradas pelo abandono e cheias de lixo.]A escola «centrada no aluno» é uma festa para os sentidos, mas pouco edificante quer em matéria disciplinar quer em matéria científica ou pedagógica, com técnicos do Ministério da Educação que têm das escolas uma vaga ideia ou apenas uma «recordação teórica».Embora nada disso (nem a ideia dos «territórios socialmente problemáticos»), isoladamente, possa explicar uma média (oficial) de duas agressões por dia nas escolas portuguesas, é o sistema de protecção corporativa que está em causa. A escola quer ignorar palavras como «disciplina», «autoridade» e «recompensa». O aluno é o «bom selvagem». Está aí. Aguentem-no. "

(no blogue Origem das Espécies)

Floriano Martins


CORPOS SAINDO DO FOGO


Ponho teu pé em meu seio e quando o retiras
o poente revela seu nome. Vibras em mim
com teu abraço e quando te afastas o sol se esvazia.
Um dia mordes meu queixo e despertas uma horda
de alucinadas mulheres que se confundem entre si.
O sol e o amor – urram – são flores carnívoras.
Amo o esplendor de teus tentáculos, a carnificina
de tua enfiada em meu ser, narrativa de curvas
em que te reproduzes para ampliar a fome.
Não sei que espécie de vagabundo viciado em totens
eu alimento – por vezes creio que és tua única
superstição –, porém me acaricias os despojos
de uma vida imaginária e não me perguntas nada.
Me enterras no inferno de tuas cidades em fuga.
(Pintura de Hélio Rola.)
PROSÉLITOS DO NEONATURALISMO (3)

Poetas sem qualidades” – assim se auto-intitularam alguns neonaturalistas num esclarecedor livro colectivo, prefaciado por Manuel de Freitas –, com fragilidades detectadas em primeira mão pelo olhar lúcido do poeta e ensaísta Gastão Cruz, em artigo publicado na revista Relâmpago, revelam uma qualidade poética muito irregular, que vai de propostas válidas e interessantes a uma imitação mal disfarçada de modelos endógenos e exógenos. Curiosamente, são os poemas que mostram mais evidentes qualidades estilísticas – as que os jovens neonaturalistas e seus padrinhos afirmam rejeitar – aqueles cuja estrutura se mostra mais sólida e duradoura. Há, portanto, incongruências (felizmente insanáveis) entre a “teoria” propalada e a sua prática versificatória...
O que é grave neste anacrónico proselitismo neonaturalista não é, no entanto, a qualidade (ou falta dela) dos poemas assinados pelos seus apóstolos, mas as posições sectárias que vêm assumindo com um crescente descaramento, desejando pôr em prática uma estratégia de terra queimada, ao quererem achincalhar todas as demandas artísticas em torno da palavra escrita que não passem pela simples mimésis narrativa ou descritiva de um “real” que olham apenas pelo lado mais estritamente materialista. Como afirmaria José Régio, nesse “real” "há mais mundos..." Existe, sobretudo, uma multiplicidade de instrumentos artísticos e verbais de que o poeta pode e deve socorrer-se com liberdade para construir os seus textos.
Nisto tudo não são, porém, originais. Para além das influências nascidas fora de portas, que já apontámos, há semelhanças flagrantes entre as suas propostas fundamentalistas e as assumidas pelo realismo marxista que dominou uma parte substancial da literatura portuguesa no segundo e terceiro quartéis do século XX. Não fosse a (aparente?) ausência de enquadramento político-ideológico de teor marxista-leninista-estalinista, estaríamos na presença de um neo-neo-realismo ou realismo socialista recauchutado. Não é preciso muito esforço para encontrarmos semelhanças entre, por exemplo, alguns textos de Manuel de Freitas e os assinados por Álvaro Cunhal contra o autor de Poemas de Deus e do Diabo, numa polémica célebre dos anos ‘40.
Não terão talvez uma “angústia da influência”. Quiçá não terão até consciência dos elos que os ligam a essa parte da história da literatura portuguesa contemporânea, a esse braço do poder soviético que visava tornar a arte num instrumento ao serviço daquilo a que chamavam “luta de classes”. Há, de igual modo, um relativo desprezo pelos poetas que, nos últimos cento e cinquenta anos de poesia em língua portuguesa, sem serem sectários nem fundamentalistas, cultivaram um verdadeiro realismo, aquele que parte dos elementos concretos do universo e da vivência humana para os transfigurar através das palavras. Não consta que, para além de Joaquim Manuel Magalhães e de mais dois ou três nomes, reivindiquem abertamente as heranças de, por exemplo, Guilherme Braga, Cesário Verde, Irene Lisboa, Manuel da Fonseca, Vitorino Nemésio, Carlos de Oliveira, Nuno Guimarães, Ruy Belo, Armando Silva Carvalho, Carlos Garcia de Castro, Mário Cesariny, José do Carmo Francisco, Adélia Prado, João Candeias, Nicolau Saião, Ruy Cinatti ou Fernando Assis Pacheco. Seria bom que o fizessem, que os lessem e aprendessem algo com o seu realismo onírico, impressionista ou reflexivo. Reparariam que a roda, cuja invenção parecem querer reclamar, foi há muito inventada – e que todos quantos escrevemos fazemos parte de uma corrida de estafetas; recebemos um testemunho que deveremos transmitir muito melhorado. Se assim não for, não vale a pena. Chegariam ainda à conclusão de que quem deseja reinventar a roda, que é redonda, corre o risco de fazê-la quadrada...
Se lessem com frequência, por exemplo, Ruy Belo, teriam de concordar nomeadamente que toda a verdadeira palavra poética é “abstracta” porque “universal”, e que sem esse universalismo nunca poderá existir uma verdadeira polissemia, condição indispensável para a transfiguração verbal (logo, existencial) contida na multiplicação de sentidos que confere ao leitor uma inteira liberdade de interpretação e de pensamento.

(continua)
José do Carmo Francisco

O fio de ouro, de Fátima Murta

Já se disse tudo da literatura. Pensamos nós. Já se disse que depois dos fornos crematórios de Auchwitz não seria mais possível a poesia. Já se disse muita coisa mas afinal ainda está muito por dizer. Desde logo cada abordagem à literatura é feita por cada pessoa em função da sua biografia, do seu passado, das suas circunstâncias. Recebi na minha banca de trabalho um pequeno livro de apenas 51 páginas. O título é O fio de ouro e todos os seus poemas tratam do tema da violência sobre as crianças. Chamou-me a atenção o poema «missiva ao rapaz com patas de urso» e aqui fica um pouco desse poema com toda a sua carga de testemunho transfigurado em arte: «Tão pesadas são as patas / do rapaz que me rasgou / uma costura de alfinetes / encostada ao frio / meia vergada sob o peso / do andaime das amarguras / tão grandes as tuas mãos / agarradas aos meus ombros minúsculos / tão pesadas as patas de urso / deformação genética antes do nascimento / feres-me os punhos como anilhas nas rolas / são pesadas, já disse, as tuas patas de urso / sobre mim que ocupo o espaço / entre dois dos teus dedos menores. /Todo tu és pesado a todo o meu corpo e alma / o Espírito brotou e logo foi cuspido num balde / És um rapaz já homem diferente de todos os rapazes / E tão igual a tantos homens à volta da terra / Não são as patas de urso / Eu gosto tanto dos animais! / É a força que anima as tuas patas de urso / e me sufocas os gemidos com elas e o seu peso / Se os meus gemidos se ouvisse na liberdade das árvores / Fariam chorar os pássaros adormecidos nos ninhos. / Não escolhi que sejas diferente como os monstros / não gosto da tua diferença de patas de urso. / Rapaz, tu cresceste! Nem eu sou mais uma menina com as tranças louras e longos lacinhos brancos a condizer com os sapatos»

O TÚMULO DE JESUS


Primeiro foi o Evangelho de Judas, conhecido desde 1978, que, graças à propaganda da National Geographic, passou de ficção gnóstica construída para estruturar e justificar as teorias heterodoxas de Valentim (como sempre foi considerado desde a sua descoberta) a texto destruidor de todas as outras versões canónicas e apócrifas da vida de Jesus de Nazaré.
Agora uma dezena de túmulos descobertos em Jerusalém, apesar de mais nada apresentar do que coincidências onomásticas e cronológicas (ainda assim discutíveis e pouco prováveis, segundo afirmam os arqueólogos autores do achado), serve agora para um realizador de cinema "provar", dois mil anos depois..., a inexistência da ressurreição.
Acreditamos todos que James Cameron estará pouco interessado nos proventos que esta "bomba" lhe proporcionará... Tal como outros bem intencionados, deseja apenas provar materialmente o que pertence ao domínio da crença espiritual. Não lhe interessa que seja um logro metodológico misturar alhos com bugalhos. Até porque o seu interesse é gerar a confusão e nessa confusão reinar, destruindo uma crença com outra crença, com a agravante de que as suas convicções (se as tem) são apresentadas sob uma muito duvidosa cientificidade.