CARREIRAS

As ruas das Carreiras onde eu nasci (após ter visto a luz em Portalegre e sangue novo em Lisboa) já não existem. São outros os nomes, outras as pedras – que teimam em não deixar esquecer a calçada antiga -, outras as casas. Só o horizonte não mudou ainda: a mesma serra, o mesmo azul longínquo, os mesmos sobreiros rompendo por entre as lajes, a escola, rompendo a folhagem das acácias e das amoreiras.
Entre o número oito da rua da Fonte Nova e o número cinco da Calçadinha, pouco resta de há vinte e cinco anos.
A fonte perdeu alguns dos seus azulejos e deixou de ter malvariscos pelo São João.
A dona Maria José já não se preocupa com as suas dálias, algures entre as minhas duas tangerineiras. O ti’ João Narciso já não abre a sua meia-porta vermelha, nem a ti’ Bernarda fica comigo na altura das azeitonas.
O barro desapareceu hoje dos caminhos (assim como os escaravelhos, e os burros escorregando até em frente às ruínas da Casa da Carreirinha).
Do Chão da Amoreira, como eu ainda o conheci, ficou apenas uma nesga de terra apertada entre duas casas. Os castanheiros, os abrunheiros, o muro (quase segurando a oliveira), situam-se no mesmo lugar que hoje ocupa a casa da avó - amarela, com barras brancas, um botaréu cheio de craveiros, uma roseira fazendo esquina frente ao canto do lume, do outro lado da rua, entre as flores dos rapazinhos e a parede de pedra solta, há muito tempo esbarrondada.
O Ribeirinho é hoje só nome de rua. Já ninguém lava nas suas águas, empresadas junto de uma figueira velha. Desapareceu sob o alcatrão e a sarrisca, para dar lugar a uma estrada larga. Continuo, no entanto, a regressar a este espaço, como se regressasse chamado pela voz dos sinos, que tanto embalam os mortos quanto repicam carreirense novo ou hora de procissão. O automóvel (como há uns anos a camioneta) continua a dar a mesma volta, trezentos e sessenta graus em torno da distância, feita entre algum riso e toda a melancolia.
NOVA (E BELA) BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA

Nem tudo é mau no nosso país. De entre o muito que funciona com critério e qualidade, temos em Portugal uma das melhores redes de biblioteca públicas da Europa que, a pouco e pouco, vai crescendo um pouco por todo o país. Ainda há muito para fazer neste domínio? É certo. Mas devemos desde já ter orgulho nos espaços que, neste momento, colocam à nossa disposição uma boa parte da verdadeira Cultura. Se a gestão, nalguns casos, é deficiente (promovendo muitas vezes a mediocridade local), isso não invalida a valia do esforço municipal e governamental que tem dotado o país com algo de que se pode orgulhar.
Orgulho deve ter Sesimbra neste momento, ao visitar a sua nova biblioteca municipal, inaugurada no sábado passado. Construída no espaço do antigo cine-teatro, atrai qualquer cidadão quer pela sua arquitectura luminosa quer pela sua organização modelar.
Para além da sua praia tranquila e das suas paisagens, Sesimbra tem agora mais um atractivo, a que se juntam, por exemplo, o museu da Igreja do Espírito Santo e o Castelo, revitalizado com gosto.
AINDA FELGUEIRAS

Sobre o chamado "Caso Fátima Felgueiras" e seus últimos desenvolvimentos (que o "Estrada do Alicerce" já abordou através de dois textos frontais de Nicolau Saião), merece ser lido um post de Eduardo Pitta no seu blog "Da Literatura". Não deixem de fazê-lo. Intitula-se "Fátima, Nome de Guerra".

http://daliteratura.blogspot.com/
ESTA VIDA DE PROFESSOR

Começou por ser um comentário a um dos meus posts, mas este texto de Joaquim Saial merece honras de primeira página, pela sua frontalidade e pelo seu desassombro. Aqui fica.

É evidente que a quase generalidade da trastaria governativa (capitaneada pela equipa 5 outubrense), alguns degenerados jornalistas (daqueles que sabem de tudo e falam de tudo, desde as mil maneiras como uma retrete se pode entupir até às possibilidades que uma formiga tem de iniciar uma guerra entre esquimós e pigmeus), o povoléu (não o verdadeiro povo, mas aquele que se baba nos reality-shows) e toda uma corja de frustrados e desocupados falam mal dos professores, também conhecidos como "aqueles gajos". Estamos neste pé e não há nada a fazer. Mas é que nem é preciso. Nós (os tais "aqueles gajos" de quem fala a D. Miquelina quando vai no autocarro da Rodoviária a conversar com o homem do talho que vai fazer a inscrição do filho na escola tal...), sabemos o quanto nos esmiframos para metermos nas cabecinhas dos portugueses a sabedoria que fomos recolhendo ao longo da nossa vida de estudantes e de professores já feitos, em investigações mil, custosas pelo desgaste mental e de bolso... Sabemos que somos sérios (tirando alguns exemplares raros que têm homólogos paralelos em todas as profissões). Sabemos que se não fazemos mais e melhor não é por falta de vontade mas sim pelos entraves que os tais políticos nos põem (nomeadamente aqueles que mais nos deviam ajudar)entraves de toda a ordem (toneladas de papéis para preencher, em burocracias paralizantes, turmas com 30 alunos, equipamentos e escolas obsoletos... etc., etc.). Digamos que há-de haver um dia em que os professores serão respeitados e verdadeiramente estimados, devido à sua função relevante na sociedade. É essa uma das nossas utopias. Até lá, o melhor que a gente tem a dizer (ainda que em pensamento), a Sousas Tavares, Manuéis Fernandes, Socráticos, Donas Miquelinas, homens do talho e quejandos, é: vão para o raio que os parta e deixem-nos trabalhar. E digam-me lá, ó professores que me lêem: vocês que sabem quem somos, acham-se piores do que esses simulacros de gente que nos bate? Claro que não! Coração ao alto, intelecto em riste, melhores dias virão.

JOAQUIM SAIAL

Pablo Neruda


“la verdad es amargo movimiento.”
in Cantos Cerimoniales


há uma mancha de cinza
na transparência deste vidro –
gotas de sangue
no caixilho da janela

que não deixam crescer
o sol – a alma.

sem raízes, a paisagem enegrece.
palavras brilham,
mas não posso esquecer
o sangue envolvendo a língua,
a cinza dissolvendo o corpo e a memória.

“o medo envolve os ossos”?
o sangue e a cinza obscurecem
a fotografia que o tempo gravou
durante a noite.

um fio de saliva secou
por entre os lábios
(na estepe que não quiseste ver).

construíste a casa e o jardim.
mas deixaste sobre a ilha
essa sombra –

cinza e sangue,
dor e esquecimento.

Ruy Ventura, in Vale dos Homens (livro inédito)
(este poema representou o autor na antologia de homenagem a Neruda, organizada por Cristino Cortes e publicada recentemente pela Universitária Editora)
Nos 50 anos de vida literária
de ANTÓNIO SALVADO

Podemos depor a favor de um escritor por interesse, por gratidão, por amizade ou por justiça. Há quem louve um escritor porque está interessado no seu apoio (editorial, social, etc.). Há quem o elogie porque lhe deve favores ou sente ser sua obrigação de amigo escrever ditirambos. Há, ainda, quem deponha de forma positiva porque acha justo fazê-lo – sem esperar nada em troca, apenas porque o seu depoimento se impõe não como dever pessoal, mas como dever cívico de testemunho.
É uma questão de justiça escrever este depoimento nos cinquenta anos de vida literária de António Salvado, ainda que sejam palavras curtas e despretensiosas. Conheço-o há mais de dez anos (sem nunca nos termos encontrado fisicamente) – tempo breve, é certo, mas para mim suficiente no aquilatar da sua qualidade como poeta, como tradutor, como ensaísta, como divulgador de Cultura e – sobretudo – como ser humano. Poderia registar aqui a minha leitura da sua poesia, alicerçada – em parte – na investigação/transfiguração do classicismo, levada a cabo por uma geração alicerçada no 2º Modernismo e fertilizada por alguns dos princípios defendidos por revistas tão ecuménicas quanto Árvore e Távola Redonda. Outros o farão melhor do que eu. Poderia ainda referir-me com demora ao papel de António Salvado como organizador de antologias, como director de revistas culturais (lembro os despretensiosos, mas importantes, cadernos Sirgo) e como importante tradutor e divulgador em Portugal de vários autores de língua castelhana (Claudio Rodríguez ou Ricardo Paysero, por exemplo). Prefiro contudo recordar a postura cívica do autor de Jardim do Paço, vertical e intransigente na defesa da Justiça e da rectidão.
Há um episódio que, para mim, exemplifica bem a craveira da sua figura cívica e literária. Quando há alguns anos um semanário nacional publicou uma reportagem sobre a face humana de José Régio, foram reproduzidas algumas declarações que punham em causa a boa memória desse homem exemplar que foi o autor de Davam Grandes Passeios aos Domingos. Pois, nessa altura, António Salvado foi dos primeiros a concordar que seria necessário um desagravo público à figura do escritor e, assim, assinou comigo e com mais onze escritores um texto que, depois, foi divulgado por vários órgãos de imprensa. Mas não ficou por aqui. Quando Nicolau Saião, João Garção e o autor destas linhas foram alvo de uma campanha de difamação – porque ousaram, em Portalegre, contestar esses ataques à memória profissional de Reis Pereira, movidos por figurinhas locais –, desde a primeira hora o poeta albicastrense se pôs ao seu lado, apoiando-os e dispondo-se até a testemunhar em tribunal, caso fosse necessário. Durante os longos anos do processo que conduziu à condenação dos difamadores, sempre António Salvado se interessou pelo caso e pela mágoa dos ofendidos – ao contrário de outros cujo apoio era uma obrigação, mas cobarde ou interesseiramente borregaram. Salvado, não. Nunca regateou uma palavra amiga, nunca escondeu a sua indignação, nunca tentou branquear atitudes e – sobretudo – nunca desmentiu a sua postura cívica de Homem vertical.
Para alguns, esta atitude valerá pouco. Será até considerada marginal quando se celebram, sobretudo, os cinquenta anos de publicação em livro de um escritor que nos vem inundando (no melhor sentido da palavra) com a sua poesia. Para mim representa muito, pois sou daqueles que – apesar de acreditarem que a Poesia não se escreve com bons sentimentos – continuam a pensar que a Ética e a Literatura devem ser duas faces da mesma moeda.
O QUE ELES CRESCEM...

Tive hoje pela manhã uma daquelas surpresas que nos deixam quase com lágrimas nos olhos. Um ex-aluno meu, que há mais de sete anos não vejo e de quem não sabia absolutamente nada, escreveu-me, contando-me um pouco da sua vida e procurando saber da minha.
Estas e outras é que nos dão vontade de continuar a ser professores, apesar de levarmos bordoada todos os dias na comunicação social e na boca do povinho, apesar de estarmos sujeitos a determinações incompreensíveis de um Ministério da Educação que continua dominado por pessoas que nunca tiveram uma turma de jovens alunos pela frente.
O rapaz que me escreveu está agora a entrar para a universidade, exercendo em simultâneo uma actividade free-lancer de designer. Se quiserem dar uma vista de olhos na página dele, é só ligarem-se a:

http://pwp.netcabo.pt/nr_lourenco/
Fala do roupeiro Vítor Sério em 1997

Sou eu que tenho a chave deste espaço
Onde guardo os sonhos mais fagueiros
De quem faz desta equipa um abraço
Num mundo de caminhos traiçoeiros

Nas vitórias o vendaval é de euforia
Nas derrotas chuva de palavras feias
Custam como o duche de água fria
Ao lado das camisolas e das meias

Pela minha parte tenho a psicologia
Do resgate da sua tristeza neste lugar
Lembrando que amanhã é outro dia
E no sábado há outro jogo para jogar

Depois é um quadrado de marmelada
À espera que ele vá activar a insulina
Para que a equipa não fique cansada
E viva os sonhos fechados na cabina

José do Carmo Francisco
Sou um bandido!

Não se assuste, leitor, com este título plenamente assumido. Nem se admire. Se tiver paciência para continuar a ler, já compreenderá – como sucede nos romances de mistério eu vou já descriptar o caso…
Como sabe, bandidos houve (e pelos vistos há) muitos: Robin dos Bosques, que conforme a lenda e a história tirava aos ricos para dar aos pobres e era um justiceiro contra os barões e por isso ficou no coração dos britânicos; Ned Kelly, que desmascarava os argentários poderosos na sua região e é hoje o herói da Austrália; Dick Turpin, que cavalgava pelas verdes terras irlandesas; ou o Zorro, que no México desbaratava os esbirros que por ali havia.
Como se vê, eram os chamados bandidos sérios. Como se diz nas novelas, “bandidos de coração de oiro”.
Eu sou um bandido de tipo diferente. Sabe porquê? Eu conto…
Como os leitores sabem, nas democracias há umas coisinhas que têm o nome de eleições. Ou seja, aquelas coisinhas que os ditadores sempre detestaram, porque dão às populações a possibilidade de escolher livremente. Que, conforme dizia um sujeito da minha nação, um tal Salazar também conhecido pelo “Botas”, “inquietam as pessoas e servem aos que querem lançar a confusão”. E foi por isso que este honesto cidadão, durante 40 anos, não deixou que esses períodos de inquietação existissem – a não ser umas caricaturas para enganar o pessoal.
Mas desde o 25 de Abril, que uns tantos nostálgicos detestam, há eleições.
Ora estamos na minha nação praticamente nessa circunstância.
E sabe o que um dos dirigentes duma legítima, aliás, formação política disse duns candidatos de uma equipa diferente? Que eram “candidatos bandidos”.
Sem que as pessoas que ele queria atingir tivessem sido julgadas e condenadas por qualquer entidade que tem essa função.
Assim, despejadamente, como quem solta para o ar uma chuva de cuspo…
Ora acontece que sou pai dum desses candidatos. Que pertence a uma equipa que provavelmente vencerá as eleições.
Como estou integralmente do lado desse candidato, como é óbvio, sou portanto também um bandido.
Um que joga, é certo, apenas nas intenções e no crédito do filho, pessoa que sempre foi considerada, no país e no estrangeiro onde o conhecem, pessoa séria.
Mas não deixo de o ser, apesar de um bandido pequenino – eu sei lá…
Aviso então os leitores que ao lerem-me e ao escreverem-me estão a ter o “privilégio” de se dirigir a um quadrilheiro. Das letras? Talvez, mas um quadrilheiro em todo o caso…
No entanto, ouso colocar em equação esta frase: talvez se houvesse mais bandidos desta qualidade houvesse menos bandidos da outra…
Não quereis entrar para a minha quadrilha?

Nicolau Saião
ELEIÇÕES
(um olhar de Domingos Fernandes)

Todos o sabem: estamos em período eleitoral. Numa época em que é fácil deixarmo-nos enganar por candidatos “sedutores”, mas incompetentes ou corruptos, todo o pensamento que nos ajude no exercício de uma cidadania activa e consciente é precioso. No tempo em que vivemos, é preciso resistirmos à lábia dos homens que “roubam, mas fazem”, dos promotores da mediocridade e/ou da pseudoqualidade, de certa gente “simpática” que faz “jeitos”, que compactua com alguns juristas, alguns construtores e outros traficantes de influências. Só os “homens (realmente) bons” (sérios, íntegros, capazes) – para usar uma expressão com raízes na Idade Média – devem merecer a nosso voto, independentemente do partido que representem, pois, ao contrário do que alguns por aí afirmam, as eleições de 9 de Outubro não servem para avaliar o Governo e as suas decisões (correctas ou incorrectas), mas para premiar ou excluir os cidadãos que têm gerido, bem ou mal, as nossas cidades, vilas e aldeias.
Registava eu estas frases – lugares-comuns que é sempre bom reafirmar –, quando me lembrei de Domingos Fernandes (1887-1972). Poeta humilde e democrata republicano convicto, sofreu na sua terra (Carreiras, Portalegre), enquanto viveu, as agruras do caciquismo salazarento, cujos vestígios parecem resistir por ali, passados mais de trinta anos sobre a sua morte. Pouco ou nada publicou em vida. Deixou, no entanto, para o futuro os seus escritos – alguns deles poemas com mensagem política que talvez seja bom reler nestes dias. Foram publicados no nº 12 da revista Ibn Maruán, de Marvão, em 2002. Aqui ficam de novo, para proveito (espero) dos leitores.

“Será agora que eles olham para nós, / Que [querem] atender nossos pedidos? / É desde sempre, já os nossos avós / Viveram aqui, desprezados, esquecidos! // Eu deveras digo: sou um despeitado, / Embora nos oiçam já de mais perto. / Se o meu agouro não me sair errado, / Ficamos ainda... em pleno deserto. // Isto são manobras, não há mais que ver. / Enganar-me-ei nas minhas previsões? / É taxativo, vieram-nos prometer // Quando se aproximam as eleições. / No meu conceito, faz-me parecer, / Isto vem somar as nossas desilusões!”

“Minha terra malfadada! / Tu queixas-te com razão! / Só tens sido enganada / Dos governos da Nação. // Não terás tu o direito, / Pedires o que é justo?! / Só a muitíssimo custo, / Bem pouco te têm feito! / [...] // [...] Privaram-te dos direitos / Impõem-te os deveres, / Pois todos os teus haveres / Ao Estado são sujeitos. / Prometeram-te alguns jeitos / À porta da eleição. / Passa a ocasião, / Tudo se reduz a nada, / Se tens sido desprezada / Dos governos da nação!”

“Há muito livro bonito, / Muito bem encadernado; / Mas tudo quanto tem escrito / É reclame de mercado. // Há livros mal capeados, / Não prestam para vender; / Mas são uns livros sagrados / Que todos deviam ler. // Com tais livros apontados / Há homens muito parecidos; / Há talentos mal roupados, / Há imbecis bem vestidos. // Há muito sábio perdido, / É pena não ser achado, / Há muito burro mantido / À manjedoura do Estado.”

“[...] // Vão com frases sedutoras, / Cínicas, aduladoras, / Para conseguir um fim; / Essa corja de marotos / Vem de tempos mui remotos, / E hão-de seguir assim. / [...] / A nossa sociedade / Está mal organizada! / Atrofiou a verdade, / Consumiu a lealdade, / E segue descontrolada, / Pobre do povo! que vive, / Neste tremendo declive, / Guiado pelo cinismo / Que o priva de andar / Forçando-[o] a tropeçar / No monstro do comodismo. / Se não se equilibrar / Brevemente vai rolar / Desfazer-se no abismo. / [...]”
DOIS ARQUIVOS BEM RECHEADOS

Há no espaço virtual dois arquivos que merecem uma visita demorada e atenta.
Um deles pertence a Renato Suttana, poeta e ensaísta brasileiro de que já publiquei um poema no Estrada do Alicerce. O outro é administrado pelo historiador e escritor Joaquim Saial, director da revista Callipole, de Vila Viçosa. Ficção, poesia, crónica, pintura, etc. - muitos alimentos saborosos por lá se encontram. Sirvamo-nos...

http://geocities.yahoo.com.br/rsuttana/
http://joaquim.saial.info/
D. Pedro V

Tenho estado a ler a biografia de D. Pedro V, escrita por Maria Filomena Mónica e publicada recentemente pelo Círculo de Leitores. Impressiona a vontada férrea deste jovem monarca em mudar o país que o viu nasceu, contrariada, durante todos os seus dias, por políticos incompetentes, corruptos e/ou preguiçosos. Morto com 24 anos, deixou-nos um retrato duramente realista do seu tempo. Para mal dos nossos pecados, o Portugal de meados do terceiro quartel do século XIX continua muito parecido com o nosso - salvas algumas diferenças, como é óbvio.
Como no Oeste...

Fátima Felgueiras, que está acusada - mas que alguns pretendem condenar através das notícias - de determinados ilícitos alegadamente feitos, voltou para ser julgada.
Voltou para poder provar, segundo disse várias vezes, a sua inocência. Perante uma justiça que tem frequentemente agido de forma estranha, como é sabido publicamente.
O julgamento será feito. E a visibilidade que alguns, com a pior das intenções, lhe deram, vai ser observado pelo país e pelo estrangeiro.
As reacções que certos sectores têm tido revela como certa política é feita. Um dos interrogados pelos órgãos de informação, cujos repórteres tentaram "orientar" os entrevistados no sentido de a condenarem desde já, chegou mesmo a dizer que os militares contestatários, já que estão em processo de ruptura, deviam pensar em executar um golpe de Estado para mudar as coisas no País!
Em suma: apelos à sedição, muito claros - baseados num caso que tem sido manipulado nos mass media.
E se Fátima Felgueiras, conforme afirma, estiver inocente? E se ficar provado que tudo isto não passa duma nefanda perseguição motivada por obscuros desígnios?
Recordemo-nos que, segundo o Direito, ninguém pode ser condenado antes de ser julgado!
De facto talvez o país - alguns sectores do país - tenham de ser morigerados ou até irradiados. Mas possivelmente numa direcção muito diferente daquela que certos operadores tem tentado, implacavelmente, incutir nas mentes."

Nicolau Saião

NOVO MORALES NO PRADO

É uma boa notícia para quantos amam a pintura. Segundo nos informa o site do Museu do Prado (Madrid), uma nova obra do pintor extremenho Luis de Morales el Divino passou a integrar a exposição deste museu espanhol. Trata-se de um "Nascimento da Virgem" até agora desconhecido, recentemente comprado num leilão londrino.
Lembro que algumas obras de Morales podem ser apreciadas em cidades portuguesas, nomeadamente no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, no Museu de Arte Sacra de Elvas e na Sé Catedral de Portalegre, no retábulo da capela de Nossa Senhora do Carmo. Em Portalegre há ainda um tríptico da Paixão que deve ser também de Luis de Morales, pintura que se encontra muito repintada e mal acondicionada - a necessitar de urgente restauro e digna exposição.
A PROPÓSITO DE “O MESTRE DE ESGRIMA”

A obra epigrafada, de Arturo Pérez Reverte, é uma parábola sobre a sabedoria.
Debrucemo-nos sobre este livro iniciático, que aliás nos fornece o exemplo de como progride um texto discretamente apresentada como um thriller histórico – e o autor fá-lo com a subtileza que lhe permite ter o necessário impacto, como se verifica a uma releitura. Este procedimento é usual e caracteriza aliás outras tragédias da literatura policial como por exemplo “Versão original” ou “Um domingo esquecido”, respectivamente de Bill Ballinger e Fred Kassak. A sequência novelesca é dada como uma lição prática de esgrima: “Do assalto”, “Ataque simulado duplo”, etc.
Depois da introdução, o autor refere como de passagem que é uma “tragédia”. Tal como sucede com outros detalhes capitais (o nome de Cazorla, tio de dois dos alunos de Jaime Astarloa, que assim sabe da existência do mestre de esgrima e das relações que este tem com o marquês dos Alumbres, o que permite perpetrar-se a armadilha que o irá aniquilar) isso é dito dissimuladamente, escapando à atenção dos leitores menos atentos.
Aparentemente, portanto, o livro é uma história de mistério ambientada num período histórico determinado.
Naquela Madrid da segunda metade do século dezanove, alheado dos embates que em volta se verificam (conspirações do general Prim que em breve iriam levar à queda de Isabel II, a mui católica rainha duma Espanha herdada de Narvaez, “o Militarão de Loja”, morto antes do começo da acção) vive um mestre de armas clássicas, discípulo do famoso esgrimista francês Lucien de Montespan e imbuído dos princípios de honra e de fidelidade que aprendera a cultivar na Paris de um quarto de século antes. Estranhos sucessos começam a desenrolar-se em sua volta depois de ser visitado por doña Adela de Otero, fascinante mulher ainda jovem que dispõe duma extraordinária capacidade como esgrimista.
Aceite pelo mestre após hesitações iniciais provindas da tradição, Adela revela-se como uma mulher que tem por trás de si um segredo (revelado posteriormente). A sua vida é pouco vulgar e em certos círculos da capital espanhola isso é comentado mais ou menos discretamente: não trabalha, não é nobre e todavia vive com evidentes meios materiais.
Em volta do maestro agitam-se personagens ora equívocas ora típicas de um ambiente em que as convulsões sociais eram determinadas pela decadência da monarquia espanhola e o ascendente republicanismo. Mas Astarloa, descentrado dum tempo que lhe não pertence uma vez que é um avatar da era precedente onde pontificavam os seres honoráveis da sua juventude, toma as coisas pelo seu valor facial: apaixona-se por Adela e, dada a profunda solidão em que vive e que enfrenta mediante o apego às recordações, passa a existir entre a angústia e a expectativa de algo que no entanto intui nunca poder alcançar.
O marquês dos Alumbres, único indivíduo que lhe demonstrava uma verdadeira estima caldeada de apreço pelas tentativas que o maestro vai efectuando para escrever o livro sublime sobre a estocada imparável, morre de forma violenta. Astarloa está agora definitivamente só, uma vez que Adela também deixou as aulas de atiradora esgrimista que eram o refrigério de Jaime, votado agora apenas a ganhar o pão quotidiano.
Depois de diversas peripécias de índole dramática (luta com assassinos a soldo, um companheiro torturado de forma bárbara por rufiões, o assassinato de uma mulher que a polícia toma pela bela manobradora, etc.) há de noite um último encontro entre uma Adela afinal viva e um Jaime que começa a entrever algo que no entanto não consegue verdadeiramente nortear: não nota que numa das cartas dum ministro consta um nome afinal seu conhecido, assim como não repara que em documentos posteriores esse nome desapareceu. Para cúmulo, a carta que dá sem equívocos a identidade do perpetrador dos crimes caíra, num momento de atrapalhação, para debaixo duma papeleira. Astarloa é pois um homem que não sabe o concreto, sabendo contudo e apenas – o que aliás lhe serve bem - que há causas pelas quais vale a pena viver e morrer: a fidelidade a um passado de decência, de respeito pelos outros e pelas recordações que lhe acalentam a honra quotidianamente assumida.
Ao dar-se conta das teias em que havia caído, sendo ocasional comparsa de manejos que o ultrapassavam (os negócios escuros do regime, a traição de correlegionários, as aparências tapando as realidades mais sórdidas…) o maestro recusa as facilidades que o seu silêncio lhe permitiria. Apesar de amar Adela não pode esquecer os crimes de que esta foi cúmplice e mesmo autora.
Num último duelo entre um homem fiel aos seus princípios e uma mulher que motivada por um drama sentimental se fizera encarnação maléfica da Espanha “moderna”, argentária e plutocrata (o canalha seu benfeitor e chefe é banqueiro e homem-de-negócios), em condições muito desfavoráveis ele consegue matar Adela atingindo ao mesmo tempo, num lampejo que a sua arte e experiência das armas possibilitou, a estocada perfeita, o seu Graal.
Por outras palavras e dado que se voga num universo simbólico: a descoberta da Pedra Filosofal possibilitada pela confrontação com um amor que morrera.
Ou seja: no acto de ser morta, Adela faz viver ainda que de forma trágica, para sempre, a memória de Astarloa como autor de um manual absoluto. É através desta morte em combate, que Jaime tragicamente recapitula frente ao espelho (imagem virtual da vida real), que tudo fica perfeito e completado.
Corpo morto enquanto demónio, Adela cadáver repousa como uma coisa reconfigurada e devolvida às origens e que nem mesmo é já necessário olhar. É um invólucro apenas, presença para além de todo o bem e todo o mal. Como que vive agora noutra dimensão, naquilo que Jaime atingiu depois de tantos anos de busca inglória.
A despeito de si mesma, afinal forneceu a Astarloa a “ars aurea” dos triunfadores. Se ela não tivesse existido, mesmo que do lado negro e infernal, Jaime teria morrido possivelmente num asilo ou num quarto modesto absolutamente só e desapossado do achamento. Nesta perspectiva, sendo uma novela iniciática, de busca da sabedoria, é também uma novela de esperança e de amor íntegro que nos diz, como na “Opus Magna”, que as trevas não prevalecerão contra os filhos da Luz.


NICOLAU SAIÃO
ALDEIA

Não há semáforos à entrada da aldeia. No entanto, o vermelho cai constantemente, sobretudo para aqueles que - querendo avançar - vêm de fora, sendo de dentro. Não há sequer uma passagem para peões (ou qualquer limite de velocidade que justifique a sua presença). Existem, porém, semáforos invisíveis que não obrigam a parar, mas conseguem que o automóvel parta mais depressa. Por vezes sem cor, revelam dois ou três rostos conhecidos (na terra), sentados todo o dia na esplanada do café ou (daqui por uns anos) debaixo de uma das árvores do largo, num albergue ou à porta da casa mortuária. Só o verde parece não existir - para aqueles cuja presença incomoda as pedras. Para estes, os semáforos têm apenas duas lâmpadas (uma amarela, outra vermelha), avisando quem teime avançar contra a escuridão e contra o medo. Não se vêem, mas existem à entrada da aldeia – numa das curvas da estrada, depois do portão (sempre aberto) do cemitério.

Dois poiais sempre ao redor. Mas poderiam ser dois cabos eléctricos a debruar a fachada da igreja, dois focos a escurecerem a torre ou, apenas, duas placas com erros de ortografia. Assim se constrói uma aldeia... Mesmo quando existem roldanas, lembrando o embargo da construção. A terra é a mesma. E se, em cinquenta anos, foi cemitério, parque infantil, balneário público, junta de freguesia e parque de estacionamento, a culpa é apenas do terreno, instável, apesar da rocha. A essência fica e o odor é o mesmo. E não será uma trasladação em caixão de chumbo que irá resolver o assunto.

Das tascas nem uma sobrou. A única que ainda se ergue (com portas há muito fechadas) será, com certeza, um quarto de cama ou uma casa de banho privativa. A rua nem sobe nem desce. Até os andores, em dia de procissão, preferem agora estrada nova, num povo onde os santos têm reforma compulsiva, sem processo disciplinar nem culpa formada. As bocas - essas - calam-se, com medo.... Como se as casas (e todas as palavras...) fossem clandestinas, não vão alguns ser como o santo que, primeiro, se negou ao chibo da promessa, mas depois já corria atrás dele.
A alegria permanece, apesar das nuvens. E da cortiça (quase humana) que não sai - mesmo depois dos nove anos -, correndo o risco de perder a serventia. A alegria permanece. A vontade fica. Regressa. Embora traçada com a mágoa e com a angústia daqueles cujo automóvel encontra todos os dias (ou quase todos) um sinal vermelho à entrada desta aldeia.

GALERIA PESSOAL



"Jovem Cavaleiro na Paisagem" - Carpaccio

PACIÊNCIA...

Quando penso naquilo que nos rodeia enquanto portugueses (uma justiça inoperante, uma economia coxa, políticos incompetentes, corruptos ou apenas influenciáveis, um ensino que vai resistindo como pode às investidas de gente que nunca deu aulas...), tenho a certeza de que apenas um santo nos pode valer (dando-nos Esperança e vontade de lutar): o Senhor da Paciência...

(na imagem: "Senhor da Paciência", escultura em barro dos séculos XVII/XVIII, pertencente ao Museu Municipal de Portalegre)

Vozes do Brasil

RENATO SUTTANA

O POLVO

Coisa de pura
sobrevivência,
o polvo

transforma-se em
pedra,
transforma-se em

coral,
areia,
alga, água de mar trevoso. –

Perscruta
com olho sagaz
o perigo que espreita

do fundo do azul
ou, então,
trocando-se por um rastro

de negro engodo,
foge
em disparada.

in "Bichos"
(Desenho de Nicolau Saião)
SOLDADINHO NOVO
(romance tradicional)

"Adeus soldadinho novo que tão triste andas na guerra.
Ou te lembra pai ou mãe ou alguém da tua terra."
"Não me lembra pai nem mãe, nem ninguém da minha terra,
Só me lembra a minha amada, que era uma linda donzela."
"Toma lá este cavalo, vai a tua amada ver,
Mas no fim de sete meses há-des mo cá vir trazer."
Soldadinho, de contente, no cavalo s' amontou.
Chegando lá muito adiente, o Diabo o incuntrou.
"Não te espantes cavalo branco, cavaleiro que nele vem."
(Não é assim.)
"Não te espantes cavalo branco, cavaleiro que nele vem,
Aqui tens a tua amada, que t' amou com grande bem."
(Enganei-me.)
"Onde vás ó soldadinho, por que vás todo a termer?"
"Deixa-me lá ó diabo, vou a minha amada ver."
"Tua amada já é morta. Já é morta, bem na vi."
"Dá-me os sinais que levava, que me quero fiar em ti."
"Levava vestido d' ouro, camisa de carmesim.
Os padres qu' àcompanhavam não tinham conto nem fim.
Forem a abrir a cova cá no centro do jardim,
A enxada era de prata, o cabo de marafim."
"Mas seja o que Deus quiser, eu p'ra diente sempre vou."
A meio da sua jornada, um nuvraceiro s' armou.
"Não t' espantes cavalo branco, cavalheiro que nele vem.
Aqui tens a tua amada que t' amou com grande bem."
"Se tu és a minha amada, porque não olhas p'ra mim?"
"Os olhos com qu' eu te via já de terra os enchi."
"Se és a minha amada, beija-me agora aqui."
"Os lábios com qu' eu te beijava, já a cor deles perdi.
Vai-t' imbora, vai-t' imbora, vai-t' imbora amor eterno.
Já sinto por mim puxar lá das cordas do Inferno."
"Eu hei-d' ir àquele outêro, eu àquele outêro hei-d' ir.
Tanta vez t' hê-de bradar, até que m' há-des acudir."

(Aprendi, mas não era assim. E aqui está. Mas isto não aconteceu. O capitão não dava o cavalo ao soldado.)

Esta versão do romance medieval foi recolhida por mim no concelho de Marvão, na aldeia do Carvalhal (freguesia de São Salvador da Aramenha). Foi recitada por Maria Josefa Baptista (1919-2003). Reproduzimos neste post a recitação tal qual nos foi transmitida, incluindo todas as hesitações e intervenções da informante. - Ruy Ventura

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO,
PRIMEIRA COLABORAÇÃO

Outro colaborador novo que passarão a encontrar no "Estrada do Alicerce" é José do Carmo Francisco. Poeta, cronista e jornalista, é um autor que tenho aprendido a admirar à medida que visito os seus livros, alguns memoráveis, como Iniciais, Universário, 1983 um resumo ou Transporte Sentimental.

BALADA DA SERRA DE SÃO MAMEDE

Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde há sempre uma ribeira
Que só de olhar mata a sede
Onde há sempre um caminho
À espera de ser andado
E onde o branco das casas
Faz contraste no telhado
Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde o relógio não corre
E pára se a gente pede
Onde o tempo dura mais
E o olhar tem amplitude
Onde o andar não desgasta
E o cansaço é mais saúde

Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde se pescam os sonhos
Sem ser preciso usar rede
Onde o sol mais se demora
Onde a luz chega mais cedo
Mas o peso deste silêncio
Não se transforma em medo
Ai que prazer estar perdido
Entre Esperança e Nave Fria
Surgirá sempre um olhar
Capaz de dar luz de dia
A quem se perdeu na noite
Que envolveu seu coração
Mas se encontrou de novo
A caminho de São Julião

Ai que prazer estar perdido
Entre Caia e os Mosteiros
Porque os fumos das chaminés
São os sinais mais certeiros
Duma vida mais junto à terra
Mancha verde a multiplicar
Entre o apelo do Mundo
E o meu desejo de ficar
Ai que prazer estar perdido
Entre os Besteiros e a Parra
Para encontrar uma capela
Com o som de uma guitarra
Ai Serra de São Mamede
Grande desgosto que eu tenho
Não ser eu das tuas aldeias
Não ser também seu serrenho

José do Carmo Francisco


NICOLAU SAIÃO NO "ESTRADA DO ALICERCE"

"Estrada do Alicerce" vai passar a alargar o leque dos seus colaboradores. O texto que aqui divulgo é a primeira colaboração de Nicolau Saião, poeta surrealista (e não só), natural de Monforte, que muito aprecio como autor e como cidadão. Outros virão...

PARA O CONHECIMENTO DA HIPOCRISIA EM PORTUGAL

José Régio, que nasceu em Vila do Conde em 1901 e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969, foi um dos casos mais singulares das letras portuguesas. Poeta, dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e pensador, para além de pintor nas suas horas e coleccionador antiquário de destaque, foi também uma significativa figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura salazarista. Viveu muitos anos em Portalegre exercendo a sua tarefa de professor liceal, sendo por isso que existe nesta cidade alto-alentejana uma Casa-Museu com o seu nome.
Fui, até há quatro meses, o funcionário responsável pelo Centro de Estudos que lhe está anexo.
Devido a este facto – acrescentado à minha condição de publicista –, tenho-me debruçado ao longo dos anos sobre a vida deste excelso Poeta, nomeadamente as relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite sobre que há relatos), José Paulo Moreira da Fonseca, Murillo Mendes, Herberto Sales, Álvaro Lins, Mauro Mota, etc. Também na sua biblioteca brilham diversos autores de Cabo Verde.
Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio, um caso avultou a partir de dada altura a meus olhos: a sistemática ocultação que certas gentes têm tentado efectuar sobre a relevância de ter tido José Régio uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto – que Régio jamais esqueceria e considerou (veja-se o seu poema “Obsessão”, dado adiante) como o mais importante da sua vida – recebeu uma atenção específica de vulto. Alguns tentaram mesmo obscurecê-lo, mediante o silêncio que se nos antolha provir da hipocrisia mais marcada.
E isso considero-o caracterizador de certa gente da cena intelectual lusitana onde, a par dum ambíguo amiguismo e dum arrivismo de pequenos jogadores, existe ainda uma hipocrisia conservadora mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes aparentemente progressistas. Muitos deles, tentando apoderar-se do manuseio da vida e da obra de certas personalidades – como tem sucedido com Régio –, não recuam mesmo em utilizar a calúnia, a injúria e a difamação, como ocorreu há tempos com indivíduos castigados legalmente.
Para ilustrar, aqui deixo aos leitores que o não conheçam o poema citado, para que se veja o quanto ele revela da verdade interior que subjazia ao autor de Poemas de Deus e do Diabo – e que de igual modo dá também sinal claro do seu estro de excepção:

Sobre umas pobres rosas desfolhadas,
Vestidinha de branco, imóvel, fria,
Ela estava ali pronta para o fim.
Eu pensava:”De tudo, eis o que resta!”
E entre as palpebrazinhas mal fechadas,
(Como um raio de sol por uma fresta)
O seu olhar inda me via,
E despedia-se de mim.
Despedir-se, porquê?, se nunca mais,
Sobre essas pobres rosas desfolhadas,
A deixei eu de ver…, imóvel, fria.
Pois eu, acaso vivo onde apareço?
Lutas, ódios, amores, sonhos de glória, ideais,
Tudo me esqueceu já! Só não esqueço,
Entre as palpebrazinhas mal fechadas,
Aquele olhar que inda me via.


in Mas Deus é Grande

NICOLAU SAIÃO
Micromundos, de Manuel Simões

Micromundos, de Manuel Simões, publicado pelas Edições Colibri, é o sexto livro de poesia deste autor, professor jubilado da Universidade de Veneza. Os textos agrupam-se em duas secções: “Sobre as Margens do Mediterrâneo” e “Os Litorais Atlânticos”. Numa linguagem tersa e densa, concentrada em torno de visões, de palavras e de valores essenciais, os poemas deste volume vivem num “lugar devassado pelo caos do tempo, da dor, do humano, da dor do tempo humano” (conforme refere Roberto Vecchi, num prefácio intitulado “Micromundos Intersticiais”).
Da primeira parte do livro (p. 23), deixo aos leitores:

SACRA CONVERSAZIONE
(Giovanni Belllini)

A luz anuncia a cor
de ouro e púrpura, a incrível
simetria das figuras.
Estão assim só imóveis
ao olhar de êxtase, breve,
da aparência; o movimento,
esse, desenha-se no secreto
diálogo, no canto intuível
e na leitura: palavra e música
de uma textura quem sabe se
de coesão traduzível
no aparente enigma da pintura.

Uma antologia de poesia sobre a Nazaré



Quem escreve poesia deseja sempre interpretar. Quem disser o contrário, engana-se (ou engana os outros), pois cada poema, tenha a face que tiver, utilize os instrumentos que utilizar, é sempre a interpretação comunicada de um Universo superior ou inferior, pessoal ou alheio, interior ou exterior.
Neste último domínio, cabem sem grande esforço os textos que reflectem sobre um determinado espaço geográfico concreto. Recolher num mesmo volume vários poemas sobre uma parcela do mundo físico que nos foi dado viver é, assim, uma tarefa louvável, pois auxilia-nos no encontro de uma visão poliédrica que, quase sempre, ilumina melhor o lugar interpretado e as suas memórias.
Vêm estas palavras a propósito de uma antologia que recebi há pouco tempo. Intitula-se Canto de Mar e reúne poemas de vários autores sobre a Nazaré. O volume, em que tive a honra de participar, foi organizado por dois poetas nazarenos, Alexandre Isaac e Mário Galego (“m. parissy” nos livros), e dado à estampa pela Biblioteca Municipal deste concelho da Estremadura portuguesa. Entre outros motivos de interesse, destacam-se os poemas (alguns inéditos) de Afonso Lopes Vieira, António Osório, Casimiro de Brito, Jaime Rocha, Jorge Reis-Sá, Jorge Velhote, José do Carmo Francisco, José Luís Peixoto, Levi Condinho, m. parissy, Mário Botas, Miguel Torga, Murilo Mendes, Nicolau Saião, etc..
O livrinho, com bela capa nascida de um desenho de Mário Botas, merece ser visitado.
A POESIA HUMILDE DE FÁBIO GOMES

É sempre com muita alegria que encontro um poeta até então meu desconhecido, um daqueles criadores que colocou a sua vida ao serviço das palavras. Rejubilo quando descubro a autenticidade verbal e existencial de um Homem que, usando os recursos que tinha à sua disposição, tentou comunicar uma visão peculiar do Universo. Não me interessam as circunstâncias que rodearam o autor. Desejo apenas que os poemas sejam frutos saborosos e não imitações plásticas fabricadas por um versejador mais ou menos habilidoso. Como escrevi n’ O Distrito de Portalegre em 29/04/2005, “versejadores há-os em qualquer parte: nos bancos das tabernas e nas academias, nas leivas de terra e nos jardins relvados, nos jogos florais e entre luxuosas encadernações...”
Deste verão que agora termina guardo a alegria de ter encontrado um poeta. Nunca conheceu em vida o contentamento de um livro publicado. Pertence ao grupo dos criadores de uma Poesia Humilde (próxima do húmus, da terra), a que João David Pinto-Correia chamou “tradicionalistas”, porque se socorrem dos instrumentos da tradição oral, comunicando através de uma linguagem simples, mas autêntica. Chamou-se (chama-se) Fábio Gomes e nasceu em Aljezur a 31 de Julho de 1911, tendo falecido em Lisboa no dia 5 de Junho de 1998. O volume que, postumamente, guarda a sua produção poética intitula-se Flores de Outono e foi editado, em boa hora, pela Junta de Freguesia da sua terra e lançado no passado mês de Agosto.
É um autor modesto que nos escreve: “Não olhes para o poeta / Para saber se versa bem / Na cara dele não se vê / O valor que a rima tem // [...] // Às vezes escrevo com erros / Coisas que lembro da vida / Digo à pena os meus segredos / Escritos em letra tremida” (p. 180).
Ligado à terra, exalta o valor de quem a torna fértil, comparando o seu trabalho com o de um verdadeiro Artista: “O artista cavador / Com as cores da natureza / Pinta quadros de valor / Com realismo e beleza // [...] // Lindos pomares em flor / Os trigais da cor do mel / As tintas foram suor / A enxada o seu pincel // Com a enxada na mão / Dando vida à sua tela / Tirando da terra o pão / Faz a sua obra mais bela” (p. 59).
Fábio Gomes exprime com encantamento, com humor ou com mágoa, mas sempre com frontalidade, a sua visão do mundo, seja natural ou humano. Satiriza o “Carnaval” político, através de uma fábula em que um “chibato orgulhoso / Com a sua pêra imponente, / Pendura os óculos nos chifres / Foi eleito presidente!” (pp. 120 a 125). Manifesta desilusão, quando recorda os desmandos do pós-25 de Abril: “Estalou a revolução / Por todos tão desejada. / Eu sofri uma decepção / Vi a minha terra ocupada. // Agora com a ocupação / Sou um zero, não à direita, / Já não faço a sementeira / Nem sei nada da colheita.” (pp. 194/195). Nascido numa terra de gentes ligadas ao mar, personifica-o, para revelar os muitos dramas que guarda: “Numa noite tão serena / Chorava de dor o mar / Será que ele tinha pena / De tanta gente matar?...” (p. 88).
Muitos dos poemas são autobiográficos, como costuma suceder com boa parte da poesia lírica, apesar das máscaras do fingimento. Sentimentos, emoções e memórias ascendem à superfície do texto, de forma aberta ou velada. Adaptando um velho provérbio à sua experiência, Fábio Gomes afirma: “Há os que vivem chorando / Levando a vida a cantar / Eu levo a vida cantando / Com o coração a chorar” (p. 200). Mostra-se então uma dor de existir que se reflecte na escrita (“O que tem a minha pena / Que de pena anda perdida / Será porque a minha pena / Tem pena da minha vida?” (p. 15)), vinda da consciência de um tempo que passa e não regressa: “O tempo passou por mim / Sempre a correr sem parar / E eu à espera do tempo / Não vi o tempo passar.” (p. 104).
“Dizem que perto da morte / É só quando o Cisne canta. / Serei eu também assim / Que só agora no fim / Abri a minha garganta!? // [...] // Se estivesse em minha mão, / Como Cisne eu queria ser. / Mostrar a minha alegria / Cantando uma melodia / E depois de cantar, morrer.” (p. 26). A poesia, nascida no entardecer da vida, é para Fábio Gomes um canto de cisne – um canto de cisne que merece ser conhecido por quantos apreciam uma poesia humilde e, logo, autêntica.
HOMENAGENS E CONDECORAÇÕES

Não julguemos que é coisa de agora. Desde que o Poder é Poder que existem formas públicas de reconhecimento do mérito, da influência sócio-económica, da fidelidade ou da obediência a princípios e/ou chefias. Na Antiguidade colocavam-se anéis nos dedos, no Antigo Regime nobilitava-se, no Liberalismo vendiam-se títulos, na República atribuem-se condecorações honoríficas. A nível local, condecoram-se os cidadãos com medalhas “de mérito municipal”. Há ainda as homenagens, através da toponímia, da estatuária ou de actos públicos simples, com lugar à oferta de uma “lembrança” ao homenageado – medalhas de latão, placas de metal cromado, salvas de prata ou de estanho.
Revistam a forma que revestirem, as condecorações e as homenagens promovidas por instâncias de Poder nunca são inocentes. Se promovem determinados valores, rejeitam outros. Se valorizam o mérito, desvalorizam a mediocridade. Em princípio... Justas ou injustas, merecidas ou imerecidas, louváveis ou repugnantes, as condecorações e as homenagens permitem-nos entender melhor a ética, o civismo e a mentalidade de quem as promove e da época em que foram levadas a efeito. Não nos podemos esquecer de que há homenagens que só servem para alimentar a vaidade e a necessidade de protagonismo de quem as dinamiza. Tenhamos em conta a hipocrisia de certos reconhecimentos públicos que só visam calar vozes incómodas ou enganar a História. Outros há, no entanto, que reparam décadas de injustiça, que perpetuam a memória de seres humanos exemplares, que corporizam a gratidão sincera de uma comunidade a alguém que tudo lhe deu.
Cada caso é um caso... O futuro começa no momento em que a homenagem se concretiza. O futuro julgá-la-á de forma imparcial. Nalguns casos, render-se-á à justiça do acto e à força da sinceridade. Noutros, rejeitará a subserviência do Poder a gente vaidosa e interesseira, a caciques manobradores e impunes. Noutros, revoltar-se-á perante a consagração da mediocridade e/ou da maldade. Nalguns, estranhará a ignorância dos representantes dos cidadãos, que não perceberam (ou não quiseram perceber) os verdadeiros interesses dos promotores das homenagens ou a verdadeira face dos homenageados.
Quando penso na minha região de Portalegre, recordo sempre casos concretos de homenagem que exemplificam muito do que expus: o justíssimo reconhecimento em vida da devoção ao bem comum concretizada pelo dr. Amorim Afonso; a atribuição de uma medalha de mérito a um jornal citadino que será recordado como veículo de graves difamações contra pessoas de bem (oportunamente condenadas pela Justiça); a tardia condecoração atribuída, a título póstumo, ao dr. Manuel Inácio Pestana, historiador que teria merecido esta homenagem em vida.
Nesta matéria, recordo ainda o meu caso. Vários meses depois de ter recebido o Prémio Revelação, da Associação Portuguesa de Escritores, entendeu a Junta das Carreiras aproveitar uma sessão pública para aí manifestar o seu “reconhecimento” pela minha actividade literária, pelo meu trabalho em prol do estudo da História e da Cultura da freguesia e, até, pelas minhas críticas e sugestões. Lá recebi uma salva de prata, usando da boa-fé que costuma existir em sociedades civilizadas... Hoje olho para ela com sentimentos contraditórios. É que este acto público – que eu julgara sincero – não impediu que, passados poucos meses, o presidente da Junta me enxovalhasse num jornal, afirmando – entre outros dislates - que eu desconhecia a realidade da freguesia, nem coibiu o mesmo edil de, daí em diante, quase sempre me ostracizar e marginalizar na minha terra sempre que se realizaram acções culturais. Ainda há poucas semanas assim foi... Soubesse eu o que sei hoje...
COMENTÁRIOS LIVRES

Perdoai a minha maçariquice bloguista... Até agora os comentários aos posts eram restritos. A partir de hoje podeis comentar livremente. Dialoguemos!
ANO NOVO, ESCOLA NOVA

Acabei de apresentar-me na minha nova escola, desta vez "a minha escola", pois ao fim de dez anos de serviço fiquei no desejado Quadro de Nomeação Definitiva.
Abro contudo as portas deste novo ano lectivo com alguma apreensão. São tantas as novidades que se avizinham, que qualquer professor consciente tem que estar preocupado. Estamos habituados a receber placebos, quando aquilo de que precisamos são vacinas e medicamentos fortes para os problemas que minam a Escola Portuguesa. Tenhamos esperança, mas uma esperança com pés na terra...