MANUEL ANTÓNIO PINA
E OS COGUMELOS
Manuel António Pina, autor estimável, afirmou há pouco tempo, no n.º 13 da revista Periférica, que em Portugal “nascem ‘poetas’ como cogumelos”.
Um poeta que não gosta de multidões... Chega a propor, desejando ser engraçado: “(...) não tivesse a poesia a aura que tem, e não haveria por aí tanta fraude. Escrever um livro de versos devia agravar o IRS e cair sob a alçada do Código Penal, ou então ser uma espécie de doença vergonhosa. Assim só seriam escritos os livros que não pudessem, de todo em todo, deixar de ser escritos. E alguém que continuasse a escrever poesia, mesmo com a Dra. Manuela Ferreira Leite ou o Dr. Bagão Félix e os tribunais à perna, havia de merecer ser levado a sério.”
A proposta seria cómica, se não tivesse antecedentes trágicos. Seria séria, se – apesar de anedótica – tivesse como primeiro “sofredor” voluntário Manuel António Pina, ele próprio poeta. Enquanto vou sorrindo com as declarações do autor sabugalense, ouço ecos da hipocrisia de certo senhor que, há umas décadas, considerava justos os sofrimentos e as censuras aplicados aos escritores – porque estimulariam a criação...
Poetas originais sempre os houve em todos os momentos da história literária. E escrevinhadores fraudulentos também. É tão fácil encontrá-los nos catálogos de algumas editoras de grande difusão como noutros meios de difusão mais restrita, nos ditirâmbicos artigos do nosso ensaísmo universitário e do nosso “jornalismo cultural” (conhecido por só louvar aquilo que está seguro ou na moda, mesmo que seja uma porcaria) como nas publicações semi-clandestinas que vão sendo editadas à custa dos seus promotores, sem apoios nem prémios oficiais. E se a quantidade não é sinónimo de qualidade, só a liberdade de expressão assegurada pela publicação e divulgação dignas poderá fornecer ao futuro (esse grande juiz) o material necessário para fazer uma avaliação livre de circunstâncias. Não será castigo suficiente para muitos poetas que persistem na escrita verem os seus livros rejeitados anos a fio pelas editoras de grande circulação, quando – ao mesmo tempo – vão assistindo à publicação de inanidades nas casas que lhes fecharam a porta?
Mas volto aos cogumelos – metáfora usada por Manuel António Pina para se referir aos poetas que vão surgindo no nosso tempo. Dado que em todas as épocas apareceram muitos escritores de poesia, então todos os poetas são, na lógica de Pina, cogumelos (mesmo que o tempo os vá classificando e escolhendo)... Chamarem-me “cogumelo” é para mim um elogio – eu que me pelo por tortulhos assados, de molho ou de miolada... desde que sejam carnudos e gostosos. Nisto de macrofungos poéticos, fico porém com uma dúvida: em que grupo se situará Manuel António Pina, cogumelo-poeta – por mais que lhe custe a classificação, ele que não gosta de misturas com os seus colegas humildes do reino Fungi, talvez por receio da concorrência? Acredito que não se incluirá no grupo dos venenosos. Sendo macrofungo comestível, como de facto é, seria interessante sabermos se se considera míscaro transmontano, tortulho alentejano, cogumelo chinês de estufa ou champignon de lata, vendido já laminado – para guisar com natas de pacote, sem dar trabalho ao cozinheiro... nem ao comedor.
São vultos e sombras
que ficam depois dos incêndios
(as pedras negras
resistem na estrutura).
E a cruz é apenas mágica
enquanto reflexo.
São ossos e gestos
que ficam depois da vida
(as arestas hesitantes
não resistem às chamas).
E a cor é apenas mágica
enquanto luz.
*****
Das luzes surgem sinais longínquos
da sede e da água
Queria falar-te da voz
e da força,
mas a tua sombra era mais densa
do que o teu corpo.
Assim,
só as máscaras seriam lembradas
e só as actrizes vencedoras.
Mas não havia jogo,
e o enunciado estava errado
porque já continha a resposta.
“Estrada do Alicerce” publicará, a partir de hoje, uma breve antologia de poemas escritos por autores pertencentes à nova geração de poetas, nascida a partir do início dos anos ’70.
Iniciamos esta iniciativa com dois poemas de Ana Francisco. Nascida em Lisboa no dia 4 de Janeiro de 1978, é arquitecta e trabalha em Londres num conceituado ateliê. Depois de algumas colaborações na imprensa periódica (DNJovem, A Bola, Correio dos Açores, Fanal, etc.), publicou na Black Sun Personagens para um lugar memorável, memória transfigurada de dois anos de trabalho num alfarrabista do Chiado. Os dois poemas reproduzidos saíram, em Fevereiro de 2005, no número 21 da revista Bíblia.
Nos últimos tempos tenho pensado dedicar-me à propaganda política. Sei que um amanuense nunca poderá ser um “estadista” ou “salvador da pátria” e que um manobrador pouco verá para além dos seus interesses – mas, ainda assim, estou a pensar propor-me a alguns candidatos presidenciais como director de campanha.
A minha estratégia será inovadora. Desta vez, o nosso país precisa de propaganda eleitoral que não minta. Estamos numa democracia, caramba! E, neste regime que é o pior tirando todos os outros, o povo já tem maturidade suficiente para não se assustar com cartazes que afirmem a verdade sobre os candidatos.
Deixo-vos aqui algumas das frases que, dentro de pouco tempo, irão com toda a certeza ver inscritas naqueles “outdoors” que ficam tão bonitos nas nossas terras e na nossa paisagem. Ao dr. Soares proporei: “COM SOARES – BRANCO MAIS BRANCO NÃO HÁ!”. Ao prof. Aníbal aconselharei: “CAVACO LAVA MAIS BRANCO” ou “CAVACO NÃO ENGANA, É LIMPEZA PERFEITA”. (Não vale a pena propor estratégias a Jerónimo e a Louçã, pois não são candidatos a sério, mas partidos resumidos ao seu chefe. Quanto a Manuel Alegre, penso ainda na estratégia, dado que o seu caso é semelhante ao daquele sumo algarvio, delicioso mas sem uma grande empresa de distribuição e venda por detrás.)
Algumas das leitoras, mais atentas aos anúncios que costumam passar na televisão, já devem ter reparado na semelhança existente entre os slogans que proponho para Soares e Cavaco e a publicidade a alguns detergentes para lavar a roupa e os soalhos. E têm razão: a semelhança não é pura coincidência. É propositada. Por mais voltas que um director de campanha honesto dê à cabeça, só encontra as frases que revelei. É claro, poderia mentir e propor: “CAVACO, O SALVADOR DA PÁTRIA VINDO DO NEVOEIRO” ou “SOARES, MAIS UMA VEZ POR PORTUGAL”. Os candidatos desejarão, porém, divulgar a verdade, aquela verdade que o povo percebe. E a verdade, como recentemente analisou a revista Atlântico, é que tanto Soares quanto Cavaco têm apostado nos últimos anos numa limpeza cirúrgica do seu passado político.
Cavaco, por exemplo, quer que acreditemos que o seu tempo como primeiro-ministro foi o melhor do mundo, quando todos sabemos que a desgraça económico-financeira actual se deve muito (como relembrou Miguel Cadilhe) ao despesismo brutal em que mergulhou o país e ao consumismo inconsequente que os seus governos promoveram. Deseja ainda que pensemos nele como um futuro super-primeiro-ministro que governará na sombra, quando os poderes presidenciais não lho permitem sem violar a Constituição. Tenta fazer-nos crer que não é um político profissional, quando governou o país durante uma década e só não foi presidente nos últimos dez anos porque os portugueses não quiseram. Quer impingir-nos até que deseja um Portugal em que o mérito seja valorizado, quando todos nos lembramos de que fez ocupar o Estado com os conhecidos “laranjinhas” e de que nada fez para que certos cargos da nossa administração fossem ocupados pelos melhores e não pelos menos incómodos.
Um detergente é um produto químico que dissolvido em água consegue limpar uma superfície suja. Por mais sério que seja ou pareça ser, Cavaco é neste momento um candidato-detergente: um produto político que, mergulhado em ambições presidenciais, deseja limpar a memória dos portugueses para ser eleito como “salvador da pátria”. Soares também, mas doutro modo. Esperemos que, desta vez, os detergentes não funcionem.
Coimbra
Livros - Os livros vão parar às mãos de quem os merece, sem que se saiba como. Na rua Ferreira Borges, junto ao Largo da Portagem, encontro um número da Águia a preço de invejar. Folheei-o para ver se era aquele que traz o artigo do Pessoa. Nada vi. Passei-o para as mãos do Antonio Sáez Delgado. Comprou-o. À noite, ao jantar, diz-me com indisfarçável triunfalismo: "Ah grande Ruy, aquela Águia é a que traz o artigo do Pessoa!" Estóico, lá respondi: "Tu é que a mereces!" Eu fiquei-me pela segunda edição do Fel e pela primeira dos Apontamentos da Irene Lisboa, mais conformes ao meu sentir e à minha ambição...
Criptopórtico - Por momentos, pensei estar vivendo num labirinto. Teria descido aos infernos? Bustos de mármore, amputados de um corpo demasiado supérfluo, fitam os transeuntes. Uma lápide regista a morte de uma jovem de vinte anos. Dois mil anos depois, deixo-lhe a minha oração, na esperança de que os deuses compreendam (demasiado tarde?) um voto, agora impossível: que a terra lhe seja leve!
Quinta das Lágrimas - Na Quinta, em vez das lágrimas anunciadas, encontrei antes a floresta do alheamento. E, num recanto, os amores são apenas das raízes pela terra. Sem remédio.
Castelo de Vide
Descobri, sem esperar, a casa onde viveu Ventura Porfírio. Depois de deambular pelo labirinto da vila, como sempre, desde a infância. (Tocam-me estes recantos frescos e sombrios...)
De súbito, por detrás de Santo Amaro, uma ruela abandonada, rodeada por muros que a chuva, o sol e as ervas foram corroendo. Assomo por um buraco duma velha porta e contemplo a torre da igreja (carcomida no meio de um quintal), onde um sino virado aos canteiros e às figueiras parece querer tocar a qualquer momento, despertando séculos e séculos de silêncio.
Que ruína contemplo nesta terra se não a ruína da própria humanidade que, ao passar dos dias, se foi enterrando entre pedras e pedaços de telha partida, entre musgos e mato, entre ervas que o tempo sufocou?
Subi a calçada, íngreme mas fresca. Destaca-se uma casa. Simples, mas lançando para o meu corpo uma emanação estranha. Não soube, na altura, reconhecer o seu proprietário. Houve, contudo, uma suspeita: pareceu-me encontrar ali algo do espírito de Ventura Porfírio. Ao mesmo tempo: tranquilidade e drama, harmonia e angústia, serenidade e melancolia. Nunca o conheci pessoalmente, mas tenho recebido estas linhas da sua pintura.
Cheguei a casa e procurei de imediato a fotografia daquela habitação, num livro que sobre ele foi publicado. Não me enganara.
NICOLAU SAIÃO
Nas arribas do Cabo Espichel
aí pela manhã
um tipo pensativo pôe-se a recordar
os tempos dilectos da juventude
quando trabalhava com o velho Indalécio
o carpinteiro tisnado de camisas de algodão
e ambos galhofavam serenamente
um em frente do outro, de pés em cima da mesa
na sala traseira da vetusta lojeca
atestada de móveis como dantes se faziam
perto do farol do arquipélago das Berlengas.
“Quando o vento acalmava, rapariga
a morte e a doença à porta não chegavam
à porta não chegavam, digo-te eu
minha garota, minha garota bela!”
Indalécio, rei das cadeiras e das mesas
o das camisas baratas de algodão.
Colete, calça e paletó
e às vezes uma rosa na mão direita
- mas não como se fosse um troféu
E tudo sem palavras, sem um gesto
sem sequer uma canção que vem de longe
que vem de muito longe e ressoa.
(publicado na revista Bíblia, nº 22)
Maria Lucília Moita e a sua pintura fazem parte da minha infância. Relembro com grata recordação as horas que eu passava a vê-la pintar na minha aldeia das Carreiras, a sua voz calma, o seu olhar analítico e maravilhado sobre o mundo que a rodeava, o seu percurso até à casa da ti' Ana Rita (onde costumava descansar). Tinha eu seis, sete anos... Quantas vezes falei com ela... Com que deslumbramento contemplei com demora uma exposição sua (a única que realizou na terra que lhe deu tantas imagens...). Se hoje a Pintura (e a Arte em geral) fazem parte da minha vida, em boa parte a ela o devo.
Soube hoje, entretanto, que a pintora da minha infância (e que ainda hoje aprecio muito) vai ter um museu em Abrantes. Foi um momento de felicidade. Espero ansiosamente pela sua abertura.
Na imagem, "Paixão de Cristo com palavras de Herberto Helder", de Maria Lucília Moita.
O QUE FAZ CORRER CAVACO OU
UM SIMULACRO DE HOLLYWOOD
Eça de Queiroz, esse excelente prosador, criador de tipos e eminente provinciano como estabeleceu Agostinho da Silva, dizia que Portugal era uma nação traduzida do francês. Talvez…
Actualmente, por obra e graça de boas-vontades e da natural evolução das coisas do mundo, tenho para mim que é um país transcrito de Hollywood – resalvadas as naturais excepções.
Cavaco e Silva, que nos tempos das vacas-gordas conseguiu duas maiorias absolutas muito por mérito do ambiente de arrivismo esperançoso em que então se vegetava por obra e graça dos cheques a fundo perdido de Bruxelas, viveu sempre politicamente criando à sua volta um tom de fita de mistério da série B: não dispondo da aura misteriosa de um Salazar – que mal ou bem acreditava no seu destino de homem providencial – buscou sempre instaurar em torno um ar de segredo a que temos direito, parafraseando um antigo jornal que, como ele, afixava um autoritarismo para novos ricos ideológicos, ainda que de sinal contrário.
Cavaco não é um Roosevelt de centro nem sequer um Kennedy de direita, embora se esforce por parecer um Reagan já não de filme, como o antigo cowboy, mas um ícone realista das economias e dos números para lusitano embobar.
Aquando da sua antiga saída, em que enovelado em sofismas e apuros de contrasenso passou a pasta a um atónito Fernando Nogueira que muito justamente durou o que duram as rosas de Malherbe, Cavaco declarou que se ia embora, para além do mais, porque e cito de memória - sua esposa em geral e a família em particular se queixavam de que lhes dava pouco arrimo.
Declaração magnífica e esclarecedora do perfil dum homem que se pretendeu e pelos vistos pretende, estadista.
Cavaco deve ter feito suas contas. Acreditando-se escudeiro da Pátria, baseado nos tais números em que o dizem perito, com as certezas que o caracterizam e o élan que o deve mover interior e exteriormente, vai ser o novo presidente da República – não sendo de esperar que esse lugar de vilegiatura seja apanhado por um Soares a caminho da senilidade ou um Alegre a caminho da sedimentação lírica.
Só que Cavaco, sendo conforme dizem os entendidos um economista de valor, foi sempre enquanto homo politicus um indivíduo de pouco sustento: em tudo o que se meteu falhou – a estrutura económica ficou frágil, o seu “pensamento” é inexistente, os seus discípulos um almoço ao sol.
Sendo claramente para os sectores dominantes (um Belmiro, um Balsemão, etc. que são quem verdadeiramente manda em Portugal) o senhor que vai meter a caminho cá o jardim florido, limpando-lhes a coutada – vão sair-lhe a terreiro monstros indizíveis. Com o riso de um simpático Jerónimo e de um gárrulo Louçã, que tudo terão a ganhar com a subida à cadeira curul do taciturno algarvio.
Vêm aí tempos pouco entusiasmantes…
Texto de Nicolau Saião / Ilustração de Hélio Rola
Sempre que tenho ocasião de passear pelas ruas da Quinta do Conde, confesso que gostaria de concretizar em mim um pouco da filosofia do pintor austríaco Hundertwasser. Teorizador da relação total do Homem com a Natureza, se um dia tivesse a oportunidade de deambular por esta vila enxertada num imenso pinhal (de que resta ainda forte presença), certamente a contemplaria com um olhar esperançoso – vendo aqui todas as oportunidades de concretização do seu “Manifesto do Bolor”, da sua oposição ao betão e ao asfalto, da sua concepção anti-racionalista da arquitectura.
Infelizmente, não sou Hundertwasser. Se, por um lado, partilho a sua defesa de uma interacção criativa entre os seres humanos e o meio que os envolve, por outro repugna-me sempre toda e qualquer atitude que revele desprezo pelo espaço que habitamos. Tento trazer à superfície certas gotas de esperança. Mas não consigo esquecer, sempre que cruzo as ruas da terra onde agora habito, que aos cidadãos da Quinta do Conde se deve o entulho que por todo o lado se acumula, o lixo que suja espaços intrinsecamente belos (jardins que a Natureza nos oferece sem nada pedir em troca). Nestas horas, temo que se concretizem as linhas escritas um dia por António Osório (poeta de primeira grandeza): temo que este lixo e esta poeira tomem posse dos condenses e os afastem de um civismo activo, que um dia quiseram concretizar no nome da sua padroeira (Nossa Senhora da Esperança).
Apesar de tudo, gosto de viver na Quinta do Conde. Sempre que subo ao último andar da minha casa, deixo-me encantar pelo horizonte que a vista alcança – com pinceladas verde-pinho e cor-de-tijolo que conseguem iluminar os dias. Ao longe, adivinha-se o Tejo, encoberto pelas altas chaminés do Barreiro. E, se desço até à varanda do primeiro andar, consigo sentir já a respiração da Arrábida (altar da Saudade, como a definiu – e bem – o grande Teixeira de Pascoaes).
Seja qual for a direcção que tomemos, a Quinta do Conde consegue ser sempre uma antecâmara de algo mais alto, de um conjunto de lugares onde podemos sempre subir. De um lado, Lisboa e o Tejo. Do outro, a Arrábida e o largo oceano. Para nascente, Palmela e a sua fortaleza física e humana. Para poente, Sesimbra e – depois de Sesimbra – essa finisterra que nos atrai e nos assombra.
Entre todas as direcções, sigo quase sempre para Sul. Sempre que preciso de ouvir a voz do Espírito de modo especial, dirijo-me para o sul arrábido, onde sei encontrar – no verde denso, pontuado pela imponência dos rochedos, vizinho de um azul que nos eleva (o do céu e o do mar) – a voz de que nos cala, porque só no Silêncio podemos escavar a nossa Alma e nela encontrar os vestígios de memória que iluminam os dias que estamos destinados a viver. Ao dirigir-me para sul, sei-me vizinho das duas vozes da Serra – que tão bem souberam interpretar a herança aí deixada pelos sufis: mais longínquo, mas espiritualmente próximo, Frei Agostinho da Cruz; intenso e, simultaneamente, ingénuo, Sebastião da Gama. Os seus corpos, que fertilizam pedaços desta terra, parecem interpelar-me em cada momento – convocando-me para uma Palavra Essencial que é preciso aguardar, escutar e guardar no peito, lançar para o Mundo como um viajante que parte, depois de dois ou três dias de visita.
Antecâmara deste templo, que nem o fogo dos homens consegue destruir, a Quinta do Conde tem-me como cidadão discreto. Gostaria de contemplá-la de outro modo. Com maior encantamento. Que a Esperança (sua padroeira) se concretize por toda a parte. Que um Espírito limpo dê lugar a uma terra limpa. Que a espiritualidade secular de uma Arrábida – tão próxima – faça descer, sobre esta terra e sobre Homens desta terra, um amor profundo por cada pedaço de Natureza que Deus quis oferecer-nos.
IACYR ANDERSON FREITAS
Das Releituras
(A Gabriel Freitas)
Para alguns livros não estamos prontos.
Quando os lemos, tal leitura esconde
o visto e o não visto nos pespontos.
Se algo clama, não sabemos onde.
Desses muitos livros nos livramos
como quem se esquece de si mesmo.
Num dia a árvore perde os ramos,
noutro as raízes, e vai a esmo
até perder o ar que nunca teve,
a música, a memória, o chão
que não conhece e que não reteve
uma só lembrança dos que vão
à míngua, de milênio em milênio.
Entretanto, nada disso importa.
Urge voltar, e vencer o gênio
que outrora nos fechara a porta.
(in Terra Além Mar, Ardósia Cultural, 2005)
Carrilhão
Rebusco os cantos mais apagados do meu corpo
e agora em todos eles toca um sino
de que puxas a corda
que vai da base da catedral às torres
movimentando uma enorme rede
de guitas invisíveis:
contigo este corpo é um carrilhão
de múltiplas escalas
sinos de bronze e outros metais de ouvir ao longe
tangendo convulsivos hinos subterrâneos de sangue
ou de suspiros cadenciados
no movimento rotativo e centrípeto
de amor.
Na localidade brasileira de Londrina foi efectuada uma acção artística constituída por exposições de pintura, declamação de poemas e performances. Numa delas o artista Rubens Pillegi, tendo como referentes o corpo e o vestuário, expôs diversas peças de roupa engessadas e, como corolário, foi tirando paulatinamente a sua indumentária até ficar nu. Foi de imediato detido e acusado de atentado ao pudor e pornografia. Será julgado dentro de dias, correndo o risco de ser condenado a um ano (!) de prisão. Passa-se isto no país do mensalão. Porque me foi pedido, elaborei o seguinte texto. Escrevi-o porque aquele disparate - que pode terminar com o encarceramento duma pessoa - feriu o meu sentido da justiça e daquilo que creio ser o bom senso. Eis o texto:
A nudez tem um sinal de transfiguração religiosa. Religião vem de religare, que significa tornar a ligar. E a ligar o quê? O que, naturalmente, foi separado. Por entidades, pela natureza. Sim, mas fundamentalmente pelo mito que se dá como fundacional.
Assim sendo, a figura central da maior religião de re-ligação, a religião cristã e católica, é um corpo nu, o corpo de Jesus, o Cristo. Nu quando nasce e é exposto no Presépio, nu enquanto é baptizado no Jordão por João Baptista, nu quando na cruz expia a condenação a que foi submetido pelo poder enroupado (a roupa do sumo-sacerdote Kaiphás é decisiva e caracterizadora do poder de facto) judaico-romano.
Torturado na cruz, morto em estado de nudez (embora nos ícones apareça com uma faixa de tecido que lhe tapa as partes pudendas para que o beatério não se sinta afrontado) Cristo desce ao sepulcro e aí permanece envolto num lençol de linho cru até dali ser resgatado pelos dois anjos do Senhor que o retiram nu do mausoléu para depois o cobrirem com um manto não conspurcado pela morte.
Nu no seu corpo divino e humano, igualmente se nos apresenta nu - ou seja, despido - de mentiras, de preconceitos, de hipocrisias e de cizânias enquanto ser de espírito e de intelecto, logo de razão que vai além da desrazão que constituíra o suplício, a Paixão.
Nesta perspectiva, o ódio que os manipulados pela hierarquia e os próceres dessa mesma Hierarquia manifestam pelo corpo nu do Homem (e Cristo foi Deus mas também Homem) só pode ser de origem satânica, relapsa, infra-universal, contrária ao lema de Cristo e à sua mensagem sublime de bondade, de paz e de concórdia.
Nesta perspectiva, ao traçar estas linhas em vista a exautorar os que o prenderam e o buscam condenar, exprimo o meu repúdio por esses manejos autoritários e o meu apoio a Rubens Pillegi.
Nicolau Saião
FERNANDO FÁBIO FIORESE FURTADO
velocípede
Fóssil da infância, velocípede existe em fuga para o vermelho.
*
De miniatura viagem, velocípede açula um Ulisses dentro.
*
Com sua frágil lição da queda, velocípede ensina o silêncio da festa.
*
Deus ex-machina do menino, velocípede está em fazer do verbo bicicleta.
(In Dicionário Mínimo, Funalfa Edições / Nankin Editorial, São Paulo, 2003)
Já se percebe que nessa altura era eu bem pequeno.
Mais tarde, vi cavalos nos prados e campinas de muitos lugares: nos plainos de Espanha, nos vergéis da "Grand Prairie" francesa, nas ruas de Lisboa e de Portalegre quando era dia de festa nacional, transportando agentes militarizados, nas quintas do Ontário ao longo da estrada que vai de Toronto a Otawa, na "rota índia" americana. Tive mesmo ensejo de cavalgar algumas vezes em campos abertos - essa emoção absoluta de descendente de antigos cavaleiros aldeões - e, quando calha, na herdade de um amigo dado às cavalgadas e falcoarias, o conde José António Valdez, que é o fidalgo de antiga nobreza lusitana mais plebeu e saudavelmente terra-a-terra que existe - faço a minha perninha como razoável "calção" como tradicionalmente se usa apelidar.
E que dizer dos cavalos vistos na arte: na pintura, na escultura, no cinema, nos livros de quadradinhos da minha infância e adolescência de leitor encartado? As cavalgadas, no papel, de índios e de cóbois, desde os apaches de Jerónimo aos oglalas de Sitting-Bull e de Nuvem Vermelha até ao, noutro registo, cavalgar em estilo "feio, forte e formal" do John Wayne? E o ar hierático de Gary Cooper ou do James Stewart ? (Que, aqui entre nós, sempre me pareceu ter um rosto um pouco cavalar...).
Nicolau Saião
(Este texto é uma resposta de Nicolau Saião a uma prosa muito interessante do poeta brasileiro Soares Feitosa, incluída no "Jornal de Poesia", de que é editor.)
memória
mal oiço o som do alaúde em tua casa.
não consigo ver a pomba
voando sobre a cinza,
no sepulcro da ruína e desta alma.
exumei com os olhos
o mosaico que rodeava, talvez, esse coração –
mergulhado na água e na melodia.
séculos depois, encontro esse rosto
tão cedo escondido.
desenhado no mármore.
como numa fotografia.
esse sorriso escavando a penumbra da nave –
a iluminação das lágrimas
no interior do vidro.
Mérida –
estela funerária de Lutatia Lupata (séc. II d. C.)
habitação
mensagem em voice-mail na hora de mudar
descer escadas, transportar os livros,
séculos de passado sobre os músculos
e resguardá-los vivos verticais entre chamas.
cada título incendeia a palavra
que parece se mover noutro sentido.
quando irrompem os amigos pela porta
aconselham noutra voz os atalhos
que a leitura deve ter sob os lábios.
uma ressonância com cd’s e valsas tristes
para a calma assomar ao corpo
que percorre ainda o fragor dos temporais.
inflamam-se nos cinzeiros os pensamentos
e o olhar desorbitado da tv
que de tanto ardor falado ninguém vê
embora nos espie em claro-escuro.
é nesta habitação que os muros
se desabrigam à tentação da margem sul
(in Voz Descontínua – Antologia Mínima, Black Sun Editores, 2002)
Sideração
Há uma aguda faca de cansaço
contra o meu lado esquerdo, coração e cérebro:
“Serão as pegadas de mais tempo?
“Será o universo tresmalhado?
(Será um assassinato a quem se ama).
Regresso a uma casa e arde o tempo:
Aqui habito. Aqui transpiro. Aqui desapareço.
- E é de voltas a sítios num espaço
que os astros uns aos outros se consultam.
Na Terra nasço, e na terra eu durmo
Na Terra ocupo o espaço e a fala canta
- Despi os Astros
e reúno dúvidas...
A vida é como eu digo – acaba cedo;
E o sentido de sê-lo nem um credo,
extraído às raízes da Ciência,
vem revelar às portas da razão
um anjo transportado sobre os séculos...
(in Sinais: 15 Poemas de Sideração e de Saudade, Átrio, 1991)
O mesmo galardão fora atribuído em anteriores edições ao alentejano José Luís Peixoto e à carioca Adriana Lisboa.
Antevejo que, daqui a uma suficiente quantidade de anos, a atender ao valor que se reconhece publicamente aos premiados, continuarão a crescer em importância enquanto o que dá nome ao prémio se apagará pouco a pouco. A nosso ver ele é um mito bem promovido por diversas instâncias - mas de facto, como disse um escritor, esse sim de génio, o nobel Czseslav Milosz, "um escritor de segunda ordem", que deve quase tudo ao partidão e à "nova diplomacia", não a um valor de excepção. Cremos que este é secundário como o de muitos nobeis já passados ao esquecimento. O que de facto não se esquecerá é o espírito persecutório que Saramago incarnou enquanto esteve a mandar no "Diário de Notícias". A memória dos artistas e da gente lúcida do meio não é curta.
Esses actos infelizmente mancharam o seu percurso e não sairão da recordação de qualquer pessoa com exigências éticas.
Cremos que a História irá ser dura para Saramago.
CARREIRAS
Ao fundo da rampa (onde outrora fora uma latada) havia uma construção de madeira e folha de zinco. Na varanda, permaneceram, durante dezoito anos, duas barricas com água da Fonte Nova e, uma vez por ano, com algumas arrobas de azeitona. O tanque tinha um odor diferente de tudo quanto o rodeava – guardava um pouco de nós nas suas águas sem movimento.
De tempos a tempos, era preciso gatear a cancela com pregos sem serventia ou com arame retirado a algum fardo de palha. Delimitava um espaço que não deveríamos ultrapassar, embora (sobre o muro) fosse fácil dirigir o olhar até uma casa rasteira, onde apenas a porta comunicava luz ao interior da cozinha.
(Foram precisos alguns anos para que entendesse a disposição deste corpo – desvanecendo-se.)
Junto à salsicharia, a avenida deixava de existir. A cor desaparecera há muito. A música da varanda partia até debaixo da tangerineira. No inverno, uma parte da rua escurecia – subitamente.
Certo dia, foi preciso entregar a chave – como se o carteiro passasse a recusar os degraus que vão até ao primeiro andar. A porta de madeira, posta na horizontal, deixou de ser suficiente para nos resguardar da chuva. Em compensação, passaram a existir folhas de jornal entre o vidro e a grade – para que o sol ficasse menos intenso.
O MEU AMIGO CLÓVIS
Faz hoje um ano que me morreu um Amigo. Chama-se Clóvis Artur. Era um ser que dava gosto frequentar, com o seu acolhimento sempre caloroso, com a sua companhia que sabia ser silenciosa, com a sua comunicação peculiar, mas eloquente. Ao dono deste amigo especial (Clóvis Artur era o cão de outro amigo, esse humano, Nicolau Saião), aqui fica um abraço forte, de quem partilha as suas saudades. Entretanto, reproduzo aqui o soneto que no dia da sua morte escrevi (eu, que até aí, nunca me expressara em formas fixas...).
[Clóvis Artur]
alimento esta casa e a oliveira
com memória, com sangue – a alegria
que na vossa mão pus em cada dia,
guardando no meu corpo a terra inteira.
junto do fogo – da alma, da lareira –
guardei nos olhos a sabedoria
desses caminhos que bem conhecia,
da clara água fresca da ribeira.
lanço na terra a minha semente
(feita de carne, de ossos, de saudade)
fertilizando tudo, toda a gente.
a raiz trará vento, tempestade –
uma sombra talvez na tarde quente,
voz soando por toda a eternidade.
NUNO MATOS DUARTE
Já manifestei aqui uma vez a minha admiração pela pintura de Nuno Matos Duarte. Arquitecto nascido em 1971, vive e trabalha na sua terra natal, Ponte de Sor. Vale muito a pena conhecer melhor a obra e o trabalho deste artista substantivo, navegando pela sua página pessoal: http://nunodematosduarte.no.sapo.pt/
É importante, ainda, consultar os dois blogues que administra:
"Imagoluce" em www.imagoluce.blogspot.com
"Colédoco" em http://-coledoco.blogspot.com
Asseguro-vos. Não darão o vosso tempo por perdido...
Aviso os leitores do "Estrada do Alicerces" de que, a partir de hoje, quando registarem os vossos comentários (acolhidos e lidos sempre com muito gosto) deverão escrever no sítio apropriado umas letrinhas indicadas pelo programa (para além do nome/pseudónimo). É uma maneira de evitar os irritantes spams...
Eu, maçarico na blogosfera, agradeço a ajuda de quem me informou do procedimento.
Há quatro anos, depois de conhecer os resultados eleitorais das Autárquicas de 2001, escrevi n’ O Distrito de Portalegre, referindo-me à arrogância de alguns vencedores:
“Ao votarem como votaram, para o bem dos seus municípios, [os portugueses] não concederam aos diversos partidos e/ou autarcas eleitos cartas brancas. O voto não foi míope, e muito menos cego. Longe das leituras – mais ou menos oportunistas – de alguns comentadores para todo o serviço, se lermos com equilibrada distância e sem maniqueísmo os resultados nacionais das eleições autárquicas, veremos com nitidez a mensagem que os eleitores deixaram escrita para os próximos quatro anos.
[...] [m]anifestaram-se frontalmente contra um poder que satisfaz a vontade de assalto às instituições por parte de alguns, cujos objectivos circulam entre o clientelismo encapotado e a corrupção descarada. Disseram não aos autarcas que obedecem de forma cega às suas estruturas partidárias e seus interesses. Negaram-se a eleger quantos preferem hipotecar o desenvolvimento global e harmonioso do nosso país para atenderem às conveniências políticas. [...]
[Os resultados aconteceram] não tanto pelos partidos que apoiavam os candidatos, mas pelas equipas que apresentaram ao escrutínio.”
Passado este tempo, reafirmo quanto escrevi (em 18.01.2002). Embora conheça vitórias que se deveram à propaganda sem escrúpulos e derrotas muito injustas, continuo a pensar que a voz do povo se fez ouvir com sabedoria, mesmo quando essa sabedoria se expressou na escolha de um mal menor, em vez da eleição de uma boa solução para os concelhos, porque inexistente. Não tenhamos dúvidas: sem em muitos casos os portugueses elegeram os presidentes que realmente queriam, em muitos outros apenas rejeitaram candidatos incompetentes e indignos. Chegámos a este ponto na nossa evolução política...
A derrota do Partido Socialista em tantos municípios nestas eleições deve-se, em boa parte, ao factor que apresentei. Houve listas em que os candidatos não iam além da mediocridade pessoal, social e/ou política. Ao escolhê-los, o PS criou condições para a vitória de outras candidaturas partidárias (mesmo que fossem deficientes ou, até, perigosas, pela suspeita de tráfico de influências) e de várias candidaturas independentes. Poderia dar exemplos que conheço bem, mas tenho por princípio não criticar os vencidos mais do que o necessário, para que as minhas palavras, modestamente, possam proporcionar uma reflexão com consequências no futuro. Tenho sempre em mim uma leve esperança na concretização daquela frase que alguém escreveu num armazém de Cacilhas: “Uma pancada nos olhos faz ver...” Será desta vez?
Os autarcas agora eleitos ou reeleitos deverão guardar, entretanto, uma certeza: “ao longo destes quatro anos os eleitores não gostarão certamente de ver as suas expectativas frustradas”. Muito menos irão tolerar a arrogância dos vencedores que, prontamente, castigarão na primeira oportunidade.
Depois de dois mandatos muito discutíveis como Presidente da República, Sampaio parece ter decidido arregaçar as mangas e enfrentar o boi da corrupção pelos cornos.
Do que ouvi do seu discurso do 5 de Outubro, defendeu que o ónus da prova deve ser invertido, permitindo que certos cidadãos enriquecidos subitamente (sem que ninguém saiba de onde vieram os seus fundos) possam ser obrigados a mostrar à justiça a fonte de onde vieram os seus chorudos proventos.
Quem não deve não teme... Mas, como seria de esperar, desde ontem levantou-se um coro de protestos - invocando, hipocritamente talvez, a tão proclamada "presunção de inocência". Um dos mais assanhados foi o bastonário da Ordem dos Advogados, mas outros se apresentaram...
Espero que as palavras do Presidente não sejam fogo de vista (último fogo de artifício em fim de festa, para encher o olho aos portugueses), mas correspondam a um desejo consequente. De uma vez por todas, os homens bons deste país têm que trabalhar para que a corrupção seja devidamente punida e não aceite e praticada como fatalidade. Nenhum cidadão com bom senso deverá ser contra o enriquecimento, mas todos deveremos ser contra as fortunas súbitas que fermentaram à custa da acção criminosa, habilmente encapotada. Só assim Portugal poderá ser um país digno e um Estado de Direito.
Já agora exige-se igual vigor na luta contra o tráfico de influências - uma versão apenas mais ligeira do cancro que, como diz Jorge Sampaio, está a apodrecer o nosso país.
VOZES DO BRASIL
RODRIGO DE HARO
TODOS OS VIAJANTES SE MOVEM COM ESFORÇO
Todos os viajantes se movem com esforço
A noite é pesada, podemos afundar a cada passo.
É uma lua errante que nos conduz ao mar.
Se pararmos a estepe fica maior, o barro nos segura pelos cabelos
A dama coroada com flores de pensamento exita numa encruzilhada.
Cercada de caminhos como sóbria rosácea.
É um pássaro que lhe pousa no ombro?
São quantos pássaros de caras mortuárias?
São tão etílicos clamores que ela é a árvore da noite.
Mister que esta Madona caminhe com suas rodas dentadas
Para que meticuloso circo avance, arrastando as carretas.
A próxima cidade só portais acesos como as demais
A próxima cidade com o pó de suas partituras
embaciada como as demais
A próxima cidade com suas máscaras de gesso
expostas à espera de um sino
A próxima cidade é o mesmo adolescente suicidando-se
sem dizer palavra
A próxima cidade o rumorejar de águas noturnas
E uma provisão de cataventos
A próxima cidade são enumerações, gargantas de prata
e nada mais
A próxima cidade a menina deitada no açude
com suas rendas e nada mais
A próxima cidade é o campo desolado
e uma estrela caindo
Onde se acha o poço de água viva?
Onde a morte mais violenta que tememos?
Cavalo branco; são três da manhã
A noite é pesada
Jerusalém fica longe com suas pianolas.
O leitor recorda-se de um filme, protagonizado por Arnold Schwarzenegger (o irmão grande) e o Danny de Vito (o irmão pequeno), que tempos atrás fez as delícias de miúdos e graúdos como se dizia no “Cavaleiro Andante” e no “Mundo de Aventuras”?
Eles eram impagáveis!
Pois há bocado, ao ver os noticiários da perclara televisão, dei comigo a pensar que aqueles actores têm agora reproduções…mas na esfera política!
Dum lado o truculento Jerónimo (o Schwarzenegger), do outro o melífluo Marques Mendes (o de Vito).
Um diz mata e o outro diz esfola, escalpando os adversários das outras formações.
Onde um deixa palmadas e cachações, o outro deixa finas tacadas verrinosas, mas veiculadas naquele estilo de, como dizia Bernard Shaw, “pequenote de fala grossa”.
Um increpa, o outro ralha. Um dá cotoveladas, o outro dá biqueiros. Um faz a chuva, o outro faz o mau tempo…
Dois verdadeiros irmãos gémeos no escaqueiramento, na troça cavernosa, no jogo de esfola e cresta desta política partidária azeda como um sorriso cavacal.
Gémeos – mais gémeos do que se tivessem saído do mesmo script cinematográfico!
E não é da sabedoria das Nações o provérbio de que “os bons espíritos sempre se encontram”?
Que S. Spielberg nos valha…
Nicolau Saião
“O Sol gira e movem-se as sombras das coisas invisíveis”
Tonino Guerra, O Mel, Assírio & Alvim, 2003
Sobre a ponte, observas
o ondular da água, o bater
do sol nas muralhas do rio (os limos
e as margens como um só silêncio ou
a solidão imaginada de uma forma qualquer),
o movimento inclinado dos esteios, o quebrar
das sombras
as flores nocturnas – desfeitas – das palavras esquecidas
os deuses tardios que interrompem as madrugadas
até que o vento ao longe se aquiete
(Poema incluído na antologia Os Rumos do Vento, organizada por Pedro Salvado e Alfredo Pérez Alencart, recentemente editada pela Câmara Municipal do Fundão.)