NO PAÍS DO MENSALÃO

Na localidade brasileira de Londrina foi efectuada uma acção artística constituída por exposições de pintura, declamação de poemas e performances. Numa delas o artista Rubens Pillegi, tendo como referentes o corpo e o vestuário, expôs diversas peças de roupa engessadas e, como corolário, foi tirando paulatinamente a sua indumentária até ficar nu. Foi de imediato detido e acusado de atentado ao pudor e pornografia. Será julgado dentro de dias, correndo o risco de ser condenado a um ano (!) de prisão. Passa-se isto no país do mensalão. Porque me foi pedido, elaborei o seguinte texto. Escrevi-o porque aquele disparate - que pode terminar com o encarceramento duma pessoa - feriu o meu sentido da justiça e daquilo que creio ser o bom senso. Eis o texto:

A nudez tem um sinal de transfiguração religiosa. Religião vem de religare, que significa tornar a ligar. E a ligar o quê? O que, naturalmente, foi separado. Por entidades, pela natureza. Sim, mas fundamentalmente pelo mito que se dá como fundacional.
Assim sendo, a figura central da maior religião de re-ligação, a religião cristã e católica, é um corpo nu, o corpo de Jesus, o Cristo. Nu quando nasce e é exposto no Presépio, nu enquanto é baptizado no Jordão por João Baptista, nu quando na cruz expia a condenação a que foi submetido pelo poder enroupado (a roupa do sumo-sacerdote Kaiphás é decisiva e caracterizadora do poder de facto) judaico-romano.
Torturado na cruz, morto em estado de nudez (embora nos ícones apareça com uma faixa de tecido que lhe tapa as partes pudendas para que o beatério não se sinta afrontado) Cristo desce ao sepulcro e aí permanece envolto num lençol de linho cru até dali ser resgatado pelos dois anjos do Senhor que o retiram nu do mausoléu para depois o cobrirem com um manto não conspurcado pela morte.
Nu no seu corpo divino e humano, igualmente se nos apresenta nu - ou seja, despido - de mentiras, de preconceitos, de hipocrisias e de cizânias enquanto ser de espírito e de intelecto, logo de razão que vai além da desrazão que constituíra o suplício, a Paixão.
Nesta perspectiva, o ódio que os manipulados pela hierarquia e os próceres dessa mesma Hierarquia manifestam pelo corpo nu do Homem (e Cristo foi Deus mas também Homem) só pode ser de origem satânica, relapsa, infra-universal, contrária ao lema de Cristo e à sua mensagem sublime de bondade, de paz e de concórdia.
Nesta perspectiva, ao traçar estas linhas em vista a exautorar os que o prenderam e o buscam condenar, exprimo o meu repúdio por esses manejos autoritários e o meu apoio a Rubens Pillegi.

Nicolau Saião

2 comentários:

Ruy Ventura disse...

O meu apoio ao amigo brasileiro. Realmente não se pode compreender, nos nossos dias - depois de Miguel Ângelo, do "Cristo Nu" de El Greco, de tantos artistas que provaram ao mundo a divindade incluída no brilho de um corpo nu -, que alguém ainda seja preso por exibir - artisticamente - o seu corpo. É que o homem não era um tarado sexual... Era - pasmemo-nos - um artista - esse ser que tanta gente tenta abater, por transportar em si a divina claridade (falo, como é óbvio, dos verdadeiros artistas, e nunca das fraudes que por aí pululam que nunca passam de técnicos ou de assopradores).

nuno de matos duarte disse...

Transcrevo, a propósito destes assuntos, uma passagem do livro Photomaton & Vox de Herberto Helder, que me parece apropriada: "(...) O extremo poder dos símbolos reside em que eles, além de concentrarem maior energia que o espectáculo difuso do acontecimento real, possuem a força expansiva suficiente para captar tão vasto espaço da realidade que a significação a extrair deles ganha a riqueza múltipla e multiplicadora da ambiguidade. Mover-se no terreno dos símbolos, com a devida atenção à subtileza e a certo rigor que pertence à imaginação de qualidade alta, é o que distingue o grande intérprete do pequeno movimentador de correntes de ar (...)"