CINEMA DESCARTÁVEL
Não sou especialista em cinema. Tenho sobre a chamada “7ª Arte” um olhar impressionista que se afasta da dissecação crítica. Gosto ou não gosto de um filme em função de critérios, digamos, poéticos. Posso apreciar ou repudiar a sua forma, mas só consigo analisar o seu conteúdo.
Outro olhar sobre este assunto tem o poeta brasileiro Guido Bilharinho, autor de vários livros sobre cinema. Por isto decidi partilhar convosco alguns parágrafos da sua obra O Cinema de Bergman, Fellini e Hitchcock, que revelam um olhar lúcido sobre a ficção, nomeadamente a cinematográfica, com o qual me identifico. Devem ser lidos com atenção.
“O leitor e o espectador comummente consideram bons os filmes e livros de ficção quando a estória, o enredo, agrada-lhes. Esse o critério que os norteia. Na realidade, falta de. / Em si, a estória que se conta e os factos, a acção e os acontecimentos que a recheiam não têm a importância, nem ao menos secundária, que se lhes atribuem. Normalmente só atrapalham. [...] / Toda a enxurrada de filmes que normalmente tem sucesso público e nos meios de comunicação [...] não passa de simples produção industrial, sem nenhum valor artístico, cultural e humano. / A indústria e o comércio cinematográfico possuem estrutura que, apenas para simplesmente sobreviver, [...] necessitam de produção e comercialização permanentes e em série, já que essa grande máquina, mesmo quando parada ou sub-utilizada, consome enorme soma de recursos. / Daí a necessidade vital de realizar e exibir filmes comercializáveis, de amplo agrado e apelo popular, com o tríplice objectivo de remuneração do capital investido, de sua própria manutenção e de lucratividade, esta, aliás, a finalidade básica e razão primeira da sua existência. / Há outra porém. É que o oferecer à sociedade tais obras descartáveis, ainda a mantém ideologicamente conformada e alienada, já que afastada do conhecimento e discussão das questões e problemas realmente importantes. / Assim, agindo nas articulações desse círculo vicioso, o sustenta, desenvolve e aprofunda, quando não o cria em setores novos. Alimentando o gosto superficial e inconseqüente do público e realimentando-se desse mesmo gosto, a avassalante indústria de entretenimento aumenta cada vez mais a sua influência, já que seus produtos passam a ser indispensáveis, entre outros motivos, para preenchimento do tempo de lazer. / Para atendimento, pois, desses objectivos, tanto no sector cinematográfico quanto no editorial, no musical, etc., impõe-se a produção massiva de artefactos de entretenimento despidos de criatividade, profundidade, complexidade e, principalmente, de qualquer compromisso com os valores artísticos e culturais e com a verdade e realidade humanas. / Ao invés disso, o que se tem, como já dito, são meros produtos comerciais com acção, acontecimentos, violência e trama urdidos e desenvolvidos sobre falsos problemas ou, quando não e pior, sobre questões efectivas, porém, tratadas com a falsidade, a superficialidade e leviandade que os referidos objectivos determinam. / Todavia, é necessário que se saiba e se proclame sempre (responsabilidade dos professores de todos os graus e em geral por eles exercida em sua actividade de elo entre o conhecimento e a juventude), que na arte ficcional (romances, contos, peças de teatro e filmes), o que menos importa é a estória como sucessão de actos e ocorrências ou como simples trama. Tais factores, por sinal, por si sós, não configuram arte. Apenas compõem o género ficcional, distinguindo-o, por exemplo, da poesia e do ensaio na literatura e do documentário ou da reportagem no cinema. / O que é essencial é o que se faz disso e com isso. É o tratamento artístico e a orientação, a profundidade e a amplitude conteudística que se lhe imprimem.”
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