JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

A serpente cega
nos dedos de Fernanda

E de súbito descubro o rosto de Fernanda na pequena multidão que cruza o Largo das Duas Igrejas no Chiado. De um lado a Paroquial da Encarnação; do outro lado a igreja privativa dos italianos de Lisboa. Reparo numa serpente cega num dos dedos de Fernanda e lembro-me, de imediato, da Margarida, a heroína do livro Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio. Margarida no convés de um navio em viagem entre a Horta e Lisboa a conversar com um dos Serpas que fez parte, em tempos, da melhor linha de backs do Fayal Sport Clube nas tardes sem fim do Relvão da Doca. O mítico lugar onde os pioneiros do futebol na Ilha lançaram as raízes do Sporting Clube da Horta, do Fayal Sport Clube e do Angústias. Este lugar onde nos encontramos e eu admiro a beleza da serpente cega num dos dedos de Fernanda era ponto de passagem de João Garcia quando o jovem aspirante regressava do quartel na Junqueira e, depois de ouvir os últimos boatos nos vários cafés do Rossio, subia por aqui até à Rua da Rosa, ao quarto alugado por cima da capelista sempre à espera de uma carta de Margarida. Agora reparo que o dia em que escrevo é o Dia Internacional da Mulher. Não sei porquê mas a verdade é que dos dedos de Fernanda sai um suave cheiro a massa sovada. Afinal já não estamos no Largo das Duas Igrejas mas sim dentro de um romance. Fernanda está com pressa, olha para o relógio e explica que tem que ir abrir as portas da sua livraria. Eu tenho as minhas obrigações e os meus compromissos. Mas o cheirinho da massa sovada permanece como se tivéssemos os dois, eu e Fernanda, saído do lugar determinado do encontro no Largo das Duas igrejas e entrado logo a seguir nas páginas dum romance inesquecível.

2 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

Meu Caro Ruy Ventura:
Só hoje pude retribuir a visita de anteontem a «O Misantropo Enjaulado» e de confirmar que o Meu Estimado Visitante é o Mesmíssimo Poeta que já admirava.
Publiquei um poema Seu, não sei se terá dado por ele, em
http://misantropoenjaulado.
blogspot.com/2006/02/leitura-matinal-273.html

Claro que fico cliente da «Estrada do Alicerce» e, amanhã, "linká-la-ei", que a esta hora, certamente, não conseguiria fazê-lo.
Permita-me abraçá-Lo.

Ruy Ventura disse...

Não tem nada que agradecer. Eu é que agradeço a sua preferência.