VENTOS E TEMPESTADES
A morte no Porto de um adulto às mãos de um grupo de adolescentes e pré-adolescentes espantou muita gente. Muita gente, mas não toda a gente. Houve muitos cidadãos para quem o triste acontecimento foi apenas a confirmação de algo que há muito esperavam. Outros semelhantes já haviam ocorrido em países de onde importámos uma postura irresponsável perante a infância. Era uma questão de tempo suceder algo de semelhante em Portugal.
Como a esmagadora maioria dos docentes deste país, durante os anos que durou a minha formação, fui alvo de uma lavagem cerebral. Os autores da barrela, com pouca experiência prática e muitas leituras serôdias, tentaram convencer-me da inocência das crianças, de que o sistema educativo deve submeter-se às “necessidades” do aluno, de que a aprendizagem deve ser lúdica, de que os valores e o conhecimento são relativos, etc..
Só quanto entrei no sistema como professor me apercebi de que a ladainha não correspondia apenas a teorias ultrapassadas (há muito abandonadas em países mais clarividentes, onde haviam nascido) pregadas por gente lírica. Comecei a ter consciência de que tudo aquilo era apenas um ramo da filosofia defendida pelos burocratas que governavam e governam o Ministério da Educação – na sua maioria rapaziada nova quando ocorreu o 25 de Abril, isto é, cidadãos que não arranjaram outra forma de reagir ao cinzentismo da Instrução Pública salazarista se não importando filosofias educativas que já haviam sido colocadas nas prateleiras empoeiradas da História da Educação. Entrei no Sistema Educativo português, confesso, com a vista enublada por toda esta lavagem. Mas, como é bom de ver, cirros e nimbos foram-se dissipando a pouco e pouco, à medida que a realidade do quotidiano escolar se foi sobrepondo às teorias paradisíacas em que fôra mergulhado. E lá comecei a adaptar-me, ou seja, a produzir uma síntese dum olhar realista sobre o processo de ensino-aprendizagem com a doutrina defendida por senhores e senhoras que nunca lidaram de perto (ou raramente lidaram) com uma turma.
Nessa altura tomei ainda contacto com outra dimensão da educação: a relação das famílias com a educação das suas crianças. Apanhei de tudo: pais interessadíssimos e saudáveis no seu relacionamento com a escola, com os professores e com os seus filhos; gente humilde que me emocionou, tanto o carinho que dedicavam aos meninos, apesar de dificuldades sociais, culturais ou económicas; cidadãos rigorosos com consciência de que educar implica disciplina, rigor, responsabilidade e exigência; encarregados de educação sobranceiros que, apesar de semi-analfabetos, “arrotavam postas de pescada”, normalmente saídas daquelas colunas em que “especialistas” pregam à multidão ignara; familiares que nos levavam a canonizar os filhos (com pais daqueles, os filhos pareciam anjos); figuras repugnantes que – fosse Portugal um país justo – há muito teriam os seus filhos entregues a famílias de acolhimento ou de adopção.
Ao longo de dez anos de serviço, infelizmente, vi crescer a promoção da irresponsabilidade e da impunidade entre os alunos. Caiu-me o calvário em cima, como é costume dizer-se, quando tive que instruir processos disciplinares. Só nessa altura tomei consciência de quanto o sistema protege os prevaricadores (quem lida com crianças sabe de quanta crueldade são capazes) e desprotege as vítimas de insultos, de chantagens, de agressões físicas. Estou à vontade quando escrevo, pois vários anos trabalhei voluntariamente com turmas de Currículos Alternativos, com rapazes e raparigas à beira da marginalidade.
Por toda esta experiência (curta, se comparada com a de cidadãos muito mais calejados) não fiquei surpreendido com o assassinato, no Porto, daquele cidadão brasileiro. A complacência e a irresponsabilidade que tem sido promovida há décadas tinha que dar resultado. Semearam-se ventos, colheu-se agora uma tempestade. Quantas virão ainda?
2 comentários:
Também sou professora, concordo com tudo o que dizes e acrescento que a situação tem tendência para piorar. (Paula, tua colega de curso.)
Um grande abraço para ti! Manda notícias para o meu mail
ruy.ventura@clix.pt
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