O SILÊNCIO DE DEUS
Com o corpo e com o espírito em Auschwitz, Bento XVI, no drama do indizível, questionou o silêncio de Deus perante o holocausto nazi. Tal como Cristo na cruz: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Este gesto apresenta aos Homens de boa vontade a mais forte prova da crença, a do ser que procura respostas, que deseja comunicar com o Alto e compreender os sinais (mesmo os mais brutais) que Ele faz surgir, que não duvida da Sua presença mas anseia conhecer os Seus caminhos, mesmo os mais pedregosos.
Tudo em Auschwitz e noutros campos de morte parece afirmar na senda de S. Paulo: nem mortos seremos aniquilados. A voz de Ratzinger ecoa contudo:
"Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um grito dirigido a Deus: porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? (...) Como pôde permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?"
SURREALISMO À VISTA
A página Triplo V é conhecida pelas suas saborosas iniciativas. Desta vez Maria Estela Guedes resolveu dar um destaque forte ao surrealismo nas suas diversas dimensões. Entre outros textos do bloco agora divulgado, merecem especial atenção uma entrevista do nosso colaborador Nicolau Saião e um texto de João Garção intitulado "Surrealismo e Liberdade". A não perder!
(na imagem: quadro de João Garção)
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
A segunda solidão de Miguel Garcia
A segunda solidão de Miguel Garcia não resulta de nenhuma expulsão. É diferente da primeira solidão. No Entroncamento, em Outubro de 1999, Miguel Garcia foi expulso de um jogo de Juvenis com o CADE. Chovia muito nessa manhã e, no escuro corredor de acesso às cabinas, as lágrimas de Miguel Garcia eram uma pequena chuva salgada a resgatar a solidão e a mágoa de ter sido expulso. Hoje, Maio de 2006, na sua segunda solidão, trata-se de um processo mas de exclusão. Ele contribuiu para o apuramento da equipa de Sub-21 para o Europeu mas foi excluído da fase final. O mais curioso é que foi Miguel Garcia que secou por completo Ricardo Quaresma no jogo mais espectacular do ano no Estádio do Dragão. A equipa de Miguel Garcia acabou por perder porque o árbitro expulsou mal o defesa esquerdo dessa equipa e, no minuto seguinte, no lugar onde esse jogador não estava, um jogador sul-africano marcou o golo do empate. Curiosamente na primeira solidão de Miguel Garcia em Outubro de 1999 foi Ricardo Quaresma que, com uma exibição de sonho, num campo de lama, a resgatou e colocou de novo um sinal de alegria ao seu olhar. Transformou um empate a dois golos num esplendoroso cinco a dois. Nesta sua segunda solidão nada nem ninguém lhe fará o resgate de uma exclusão injusta. O mesmo seleccionador que já antes tinha culpado Lourenço por uma derrota em Almeirim não tem ninguém para culpar. É sua, inteira, completa e exclusiva, a culpa da segunda solidão de Miguel Garcia. Os dois resultados negativos são já o prenúncio de um deserto de ideias que começou na convocatória e está a concretizar-se nos resultados mais que maus e nas exibições mais que pobres.
DE ESFREGÕES A LIXO
Segundo noticiou o Diário de Notícias de ontem, o Ministério da Educação apresentou na sexta-feira o seu projecto de avaliação do desempenho dos professores.
Defendo, como princípio, essa avaliação, desde que seja levada a efeito por sujeitos competentes e com base em critérios mensuráveis. Como o Ministério determina, não. Os professores passam a ser obrigado a lamber as botas ao facilitismo paternal (quando exista) e a compactuar com os jogos de poder que caracterizam muitas das nossas escolas. É lamentável!
Se os professores já tinha o estatuto de esfregões sociais, com o novo regime de avaliação do desempenho (se for aprovado como está) passarão à categoria de lixo social.
Há questões que se impõem nesta vergonha proposta. Voltarei ao assunto.
Segundo noticiou o Diário de Notícias de ontem, o Ministério da Educação apresentou na sexta-feira o seu projecto de avaliação do desempenho dos professores.
Defendo, como princípio, essa avaliação, desde que seja levada a efeito por sujeitos competentes e com base em critérios mensuráveis. Como o Ministério determina, não. Os professores passam a ser obrigado a lamber as botas ao facilitismo paternal (quando exista) e a compactuar com os jogos de poder que caracterizam muitas das nossas escolas. É lamentável!
Se os professores já tinha o estatuto de esfregões sociais, com o novo regime de avaliação do desempenho (se for aprovado como está) passarão à categoria de lixo social.
Há questões que se impõem nesta vergonha proposta. Voltarei ao assunto.
Vozes do Brasil
CARLOS NEJAR
Cantochão
O aparente chão de meu chamado
é canto
e o chão de sangue é pássaro voando
que ao bico traz
o chão de algum recado
e pão se torna.
Assim o mundo:
fato, vestígio,
uma larga paixão
que mais me busca.
Meu componente é vaticínio,
mundo,
chapéu aberto de chamados fundos,
peito de tempo contraído,
chão de vivos e mortos.
Mundo, coberto pelo próprio musgo
que é céu não descoberto.
O chão onde te espreito
é amor de amada e corpo.
E a terra, se não vinga,
é porque foi sumida
que a terra por tão pouca,
é mundo. E de tocá-la
com mãos ou pés ou sangue,
nos fazemos humanos.
Mundo, não te abandono.
O canto me precede.
A ele sigo, cavalo,
tão mudo quanto cego.
Ó árvore do mundo,
só o canto me prende
e me desprende.
(da antologia Breve História do Mundo, organizada por Fabrício Carpinejar e publicada recentemente nas Ediouro Publicações, no Rio de Janeiro.)
QUEM NÃO TEM PADRINHOS MORRE MOURO
Sempre me chocou este provérbio, nascido talvez nos tempos da Inquisição e das conversões forçadas, dado que encarna o espírito (nacional?!) da corrupção, do tráfico de influências, da ausência de valorização do mérito. Veio-me de novo à memória no dia em que escrevo, depois de ter lido uma entrada saborosa do poeta-editor Jorge Reis-Sá no seu Diário (18/5/2006). Nela repescou um texto de Manuel Alberto Valente, editor da ASA, intitulado "10 Conselhos (Irónicos) a um Candidato a Jovem Escritor" que, a dado passo, afirma:
- "Procure, se possível, um 'notável'. Se o seu original vier 'recomendado' é evidente que as hipóteses aumentam."
Não me surpreendeu este conselho, pois há muito não tenho ilusões em relação ao meio literário e editorial. Surpreendeu-me neste texto de 2003 a sinceridade do editor que, sem hipocrisia, não hesitou revelar o tráfico de influências que domina o meio em que trabalha. Não estamos habituados a tanta frontalidade no nosso país. Tudo se faz pela calada...
Manuel Alberto Valente tem o condão de revelar o jogo: quem quiser publicar numa editora comercial tem que arranjar cunhas; caso não o faça, as coisas estarão difíceis para o seu lado. Quem não tiver padrinhos morrerá mouro ou investirá dinheirinho do seu bolso em edições de autor ou pseudo-comerciais.
Fernando Pessoa tinha razão: para editar livros, salvo honrosas excepções, só há dois caminhos - gastar dinheiro que eventualmente se tenha ou usar as artes do senhor Manuel Peres Vigário.
PS - M. A. Valente aconselha os candidados a jovens escritores. Seria bom que os seus conselhos se aplicassem apenas à malta nova. Infelizmente as vítimas do tráfico de influências literário encontram-se em todos os níveis etários.
Sempre me chocou este provérbio, nascido talvez nos tempos da Inquisição e das conversões forçadas, dado que encarna o espírito (nacional?!) da corrupção, do tráfico de influências, da ausência de valorização do mérito. Veio-me de novo à memória no dia em que escrevo, depois de ter lido uma entrada saborosa do poeta-editor Jorge Reis-Sá no seu Diário (18/5/2006). Nela repescou um texto de Manuel Alberto Valente, editor da ASA, intitulado "10 Conselhos (Irónicos) a um Candidato a Jovem Escritor" que, a dado passo, afirma:
- "Procure, se possível, um 'notável'. Se o seu original vier 'recomendado' é evidente que as hipóteses aumentam."
Não me surpreendeu este conselho, pois há muito não tenho ilusões em relação ao meio literário e editorial. Surpreendeu-me neste texto de 2003 a sinceridade do editor que, sem hipocrisia, não hesitou revelar o tráfico de influências que domina o meio em que trabalha. Não estamos habituados a tanta frontalidade no nosso país. Tudo se faz pela calada...
Manuel Alberto Valente tem o condão de revelar o jogo: quem quiser publicar numa editora comercial tem que arranjar cunhas; caso não o faça, as coisas estarão difíceis para o seu lado. Quem não tiver padrinhos morrerá mouro ou investirá dinheirinho do seu bolso em edições de autor ou pseudo-comerciais.
Fernando Pessoa tinha razão: para editar livros, salvo honrosas excepções, só há dois caminhos - gastar dinheiro que eventualmente se tenha ou usar as artes do senhor Manuel Peres Vigário.
PS - M. A. Valente aconselha os candidados a jovens escritores. Seria bom que os seus conselhos se aplicassem apenas à malta nova. Infelizmente as vítimas do tráfico de influências literário encontram-se em todos os níveis etários.
José Matias Alves
(a partir de Miguel Santos Guerra)
COMO FORMAR DELINQUENTES
Sem o saber, a família e a sociedade vão formando delinquentes. A solidão e a correria, o predomínio do ter sobre o ser, a crença de que “o mundo é um brinquedo”, a difusão de referências éticas, o consumismo febril, o império das marcas... são alguns dos sinais do nosso tempo. E a escola é que paga. É que tem de salvar as famílias, regenerar a sociedade, tornar possível o laço social. Numa missão impossível e num processo de destruição psicológica dos professores. Também por isso é preciso acabar com o mito de “uma escola ao serviço da sociedade” e mobilizar a sociedade para estar ao serviço da escola. Eis as práticas eficazes de uma formação para a delinquência:
1) Comece desde a infância a dar ao seu filho tudo o que ele pede. Assim este crescerá convencido de que o mundo inteiro lhe pertence.
2) Não lhe dê qualquer educação moral. Espere que seja de maior idade para que possa decidir livremente.
3) Quando disser palavrões, ria-se. Isto animá-lo-á a fazer coisas ainda mais graciosas.
4) Não o confronte, não lhe diga que errou, que está mal algo que faz, pois poderia criar-lhe um complexo de culpa.
5) Apanhe tudo o que ele tiver espalhado: livros, sapatos, roupa, jogos... Assim, ele habituar-se-á a deixar os outros assumir as responsabilidades.
6) Deixe-o ler tudo o que lhe caia nas mãos e ver todos os programas que lhe apetecer. Tome cuidado para que os seus pratos, copos e talheres estejam bem esterilizados, mas deixe que a sua mente se encha de imundície, para que ele aprenda a considerar valioso aquilo que é lixo.
7) Discuta e brigue com o seu cônjuge na sua presença. Deste modo ele não se surpreenderá nem sofrerá demasiado quando a família se separar.
8) Dê-lhe todo o dinheiro que ele quiser gastar para que ele não suspeite que para dispor de dinheiro é preciso esforçar-se para trabalhar.
9) Satisfaça todos os seus desejos, apetites, comodidades e prazeres. O sacrifício e a austeridade poderiam frustrá-lo.
10) Ponha-se do seu lado em qualquer conflito que ele mantenha com os professores, vizinhos e amigos. Acredite que todos eles têm preconceitos contra o seu filho e, na verdade, só o querem prejudicar.
(in Correio da Educação, nº 245, 16 de Janeiro de 2006)
[Nota: Sugiro que todos os directores de turma entreguem uma cópia deste texto aos encarregados de educação. RV]
(a partir de Miguel Santos Guerra)
COMO FORMAR DELINQUENTES
Sem o saber, a família e a sociedade vão formando delinquentes. A solidão e a correria, o predomínio do ter sobre o ser, a crença de que “o mundo é um brinquedo”, a difusão de referências éticas, o consumismo febril, o império das marcas... são alguns dos sinais do nosso tempo. E a escola é que paga. É que tem de salvar as famílias, regenerar a sociedade, tornar possível o laço social. Numa missão impossível e num processo de destruição psicológica dos professores. Também por isso é preciso acabar com o mito de “uma escola ao serviço da sociedade” e mobilizar a sociedade para estar ao serviço da escola. Eis as práticas eficazes de uma formação para a delinquência:
1) Comece desde a infância a dar ao seu filho tudo o que ele pede. Assim este crescerá convencido de que o mundo inteiro lhe pertence.
2) Não lhe dê qualquer educação moral. Espere que seja de maior idade para que possa decidir livremente.
3) Quando disser palavrões, ria-se. Isto animá-lo-á a fazer coisas ainda mais graciosas.
4) Não o confronte, não lhe diga que errou, que está mal algo que faz, pois poderia criar-lhe um complexo de culpa.
5) Apanhe tudo o que ele tiver espalhado: livros, sapatos, roupa, jogos... Assim, ele habituar-se-á a deixar os outros assumir as responsabilidades.
6) Deixe-o ler tudo o que lhe caia nas mãos e ver todos os programas que lhe apetecer. Tome cuidado para que os seus pratos, copos e talheres estejam bem esterilizados, mas deixe que a sua mente se encha de imundície, para que ele aprenda a considerar valioso aquilo que é lixo.
7) Discuta e brigue com o seu cônjuge na sua presença. Deste modo ele não se surpreenderá nem sofrerá demasiado quando a família se separar.
8) Dê-lhe todo o dinheiro que ele quiser gastar para que ele não suspeite que para dispor de dinheiro é preciso esforçar-se para trabalhar.
9) Satisfaça todos os seus desejos, apetites, comodidades e prazeres. O sacrifício e a austeridade poderiam frustrá-lo.
10) Ponha-se do seu lado em qualquer conflito que ele mantenha com os professores, vizinhos e amigos. Acredite que todos eles têm preconceitos contra o seu filho e, na verdade, só o querem prejudicar.
(in Correio da Educação, nº 245, 16 de Janeiro de 2006)
[Nota: Sugiro que todos os directores de turma entreguem uma cópia deste texto aos encarregados de educação. RV]
O CÓDIGO BROWN
Por causa do filme, a polémica em torno do Código Da Vinci, de Dan Brown, reacendeu-se.
Grave no livro/filme nunca será a crítica à Igreja Católica e à Opus Dei, saudável no primeiro caso e necessária no segundo. Muito grave é a desonestidade intelectual de quem faz passar, como verdades, falsidades comprovadas. Passam com um estatuto imerecido porque vivemos numa época dominada pela ignorância arrogante, que coloca ao mesmo nível paradigmas, suposições, documentos, hipóteses, delírios, invenções, fraudes e factos provados.
Que fazer? Proclamar a verdade, mesmo que ela incomode ou seja rejeitada.
Por causa do filme, a polémica em torno do Código Da Vinci, de Dan Brown, reacendeu-se.
Grave no livro/filme nunca será a crítica à Igreja Católica e à Opus Dei, saudável no primeiro caso e necessária no segundo. Muito grave é a desonestidade intelectual de quem faz passar, como verdades, falsidades comprovadas. Passam com um estatuto imerecido porque vivemos numa época dominada pela ignorância arrogante, que coloca ao mesmo nível paradigmas, suposições, documentos, hipóteses, delírios, invenções, fraudes e factos provados.
Que fazer? Proclamar a verdade, mesmo que ela incomode ou seja rejeitada.
RECEITA
Deseja dar cabo de um belo pedaço da sua terra? Aqui fica a receita:
Pegue num edil míope, junte-lhe um engenheiro ou um arquitecto igualmente míope, inconsciente ou incompetente, misture-lhes um novo-riquismo pelintra - e o resultado não será coisa bonita de se ver.
Assim se vai esturrando, em muitos locais do nosso país, o magro orçamento nacional. Assim vamos enchendo os bolsos de alguns empreiteiros. Assim vamos consentindo no logro proposto por alguns políticos sem escrúpulos, que vão enganando os tolos, os humildes ou os amedrontados com papas deste jaez.
Deseja dar cabo de um belo pedaço da sua terra? Aqui fica a receita:
Pegue num edil míope, junte-lhe um engenheiro ou um arquitecto igualmente míope, inconsciente ou incompetente, misture-lhes um novo-riquismo pelintra - e o resultado não será coisa bonita de se ver.
Assim se vai esturrando, em muitos locais do nosso país, o magro orçamento nacional. Assim vamos enchendo os bolsos de alguns empreiteiros. Assim vamos consentindo no logro proposto por alguns políticos sem escrúpulos, que vão enganando os tolos, os humildes ou os amedrontados com papas deste jaez.
JOGOS DE LETRAS?
O poeta José do Carmo Francisco escreve há muito poemas "desportivos". Já nos anos oitenta publicou um livro intitulado Jogos Olímpicos e uma antologia comentada sobre a presença do desporto na poesia portuguesa (a única até hoje lançada em Portugal - a necessitar de urgente reedição). Depois disso, recentemente, apareceram nas livrarias dois livros seus dedicados à mesma temática, entre eles um memorável Os Guarda-Redes Morrem ao Domingo, na Padrões Culturais. Não podemos esquecer ainda a actividade jornalística e crítica que tem desenvolvido há quase vinte anos, quase sempre em torno das ligações entre a actividade desportiva e a literatura, em jornais como A Bola, Gazeta dos Desportos e Sporting.
Francisco José Viegas conhece bem José do Carmo Francisco e toda a sua obra. Basta lembrarmos que convidou o autor de Transporte Sentimental para colaborar na revista Ler, do Círculo de Leitores, e no suplemento DNA, do Diário de Notícias. Se hoje José do Carmo Francisco não escreve nesses periódicos, isso só acontece porque a sua figura estava ligada ao escritor transmontano. Saído Viegas, Carmo Francisco teve que sair também.
E, no entanto, o actual director da Casa Fernando Pessoa parece não conhecer José do Carmo Francisco e o facto de ser o maior conhecedor em Portugal das ligações entre a literatura e o desporto. Amnésia? Como se explica então que, promovendo uns debates na Coelho da Rocha sobre a Literatura e o Desporto, tenha marginalizado o poeta de Universário? Jogos de Letras? Será que, para ele, ser conhecido significa mais do que ser importante? Viegas saberá responder.
Antologia “Fanal”
JOSÉ VIEIRA
Os lugares e os destinos
O GALINHEIRO
Disse à criada que não queria o galo morto
Frangos havia na capoeira e galinhas
de préstimo que não ia além dos ovos
O galo esmera-se com equilibrado regozijo
Esmera-se debaixo da crista a vibrar
de sangue sonoro. Estremeção na sombra
Os frangos ou galinhas mas o galo não
Tão aprumado e excessivo no alguidar.
NA TASCA
A mulher com os pés no chão
indispõe a quietação do mirone
Há qualquer coisa aí que não lhe agrada
“Não tem uns chinelos, minha senhora
vou comprar-lhos ali ao lado”
É o frio lajeado onde os velhos
vão comer que mais o inquieta
“Não é preciso, meu filho
eu nasci descalça”.
(nº 6, 20/10/2000)
JOSÉ VIEIRA
Os lugares e os destinos
O GALINHEIRO
Disse à criada que não queria o galo morto
Frangos havia na capoeira e galinhas
de préstimo que não ia além dos ovos
O galo esmera-se com equilibrado regozijo
Esmera-se debaixo da crista a vibrar
de sangue sonoro. Estremeção na sombra
Os frangos ou galinhas mas o galo não
Tão aprumado e excessivo no alguidar.
NA TASCA
A mulher com os pés no chão
indispõe a quietação do mirone
Há qualquer coisa aí que não lhe agrada
“Não tem uns chinelos, minha senhora
vou comprar-lhos ali ao lado”
É o frio lajeado onde os velhos
vão comer que mais o inquieta
“Não é preciso, meu filho
eu nasci descalça”.
(nº 6, 20/10/2000)
INFÉRTEIS E DESPREZADOS
Um grupo de cidadãos enviou aos nossos deputados uma carta aberta sobre a infertilidade, doença que neste momento já afecta cerca de 15 a 20 % dos casais portugueses. Num momento político em que o governo capitaneado por Sócrates se prepara para castigar financeiramente os casais sem filhos, revolta qualquer cidadão minimamente consciente o desprezo a que estão votados os cidadãos que precisam de tratamento médico para terem os seus filhos biológicos e o calvário que são obrigados a suportar quantos desejam adoptar uma criança.
A carta referida deve ser lida e reflectida por todos, independemente da sua posição sobre este assunto. Não nos esqueçamos de que alguns dos maior problemas da nossa população são o envelhecimento e a baixa natalidade.
Um grupo de cidadãos enviou aos nossos deputados uma carta aberta sobre a infertilidade, doença que neste momento já afecta cerca de 15 a 20 % dos casais portugueses. Num momento político em que o governo capitaneado por Sócrates se prepara para castigar financeiramente os casais sem filhos, revolta qualquer cidadão minimamente consciente o desprezo a que estão votados os cidadãos que precisam de tratamento médico para terem os seus filhos biológicos e o calvário que são obrigados a suportar quantos desejam adoptar uma criança.
A carta referida deve ser lida e reflectida por todos, independemente da sua posição sobre este assunto. Não nos esqueçamos de que alguns dos maior problemas da nossa população são o envelhecimento e a baixa natalidade.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
As rolhas da Catalunha
e os meninos do Circo
Eu vi e não queria acreditar. Saí de Lisboa com destino a Newcastle no dia 25 de Abril à hora de almoço e regressei na madrugada do dia 3 de Maio. Ao todo oito dias de ausência. Com o objectivo de ficar com uma ideia de como estava o País liguei a RTP 1 para ver o Bom dia Portugal. E foi aí que vi o que não estava à espera de ver. Ou seja, duas reportagens das quais eu me lembrava de ter visto antes de sair de Portugal no dia 25 de Abril. E ambas permaneciam como se nada tivesse acontecido.
As rolhas portuguesas que são muito apreciadas pelos produtores de vinho na Catalunha e os meninos do Circo que já podem ter uma directora de turma através de Internet. Fiquei chocado por ver como é possível a indigência chegar a este ponto. Mais de oito dias depois lá estavam as rolhas e os meninos. Havendo tantos assuntos de interesse é espantoso como, mais de uma semana depois, os mesmos trabalhos televisivos aparecem no Bom dia Portugal como se fossem feitios naquele dia. E nem sequer estou contra os jornalistas porque eu próprio também sou jornalista. Estou é contra o sistema cultural que permite estas coisas insólitas. Mais que insólito: tudo isto é imoral, absurdo e anti-deontológico. Dito de outra maneira: haver enlatados de notícias é um crime contra a liberdade que todos temos de exigir uma informação limpa. Como há enlatados musicais ou enlatados de telenovelas. Nós que pagamos os nossos impostos não podemos estar à mercê de gente como esta. Gente que em vez de puxar pela imaginação se limita a ir aos arquivos e mandar por no ar notícias velhas de mais de oito dias. Sem qualquer respeito pelos espectadores. Sem respeito por nada. Sem respeito por ninguém.
Antologia “Fanal”
JOSÉ CARLOS BREIA
Long Play
Se um terço tiras
à rotação do disco
logo se empasta o som.
Retira a agulha
do sulco que se esgarça
e – estroboscópio persistente –
repõe o tempo certo
ao movimento.
Tu sabes que o CD
tem outra limpidez.
Que a estática perturba
a melhor gravação
do disco de vinil.
Mas, aberta a gaveta
já ouves as canções,
já as vozes te agitam:
Baez, Emmylou, Roberta, Melanie,
Anita, Sarah, Ella e “Lady” já se vê,
Piaf, Barbara, Catherine, Greco,
Sotiria, Nara, Milva, Nana e Elis Regina
– mulher que tanto amor te deram
em 33 e 1/3.
(nº 7, 24/11/2000)
JOSÉ CARLOS BREIA
Long Play
Se um terço tiras
à rotação do disco
logo se empasta o som.
Retira a agulha
do sulco que se esgarça
e – estroboscópio persistente –
repõe o tempo certo
ao movimento.
Tu sabes que o CD
tem outra limpidez.
Que a estática perturba
a melhor gravação
do disco de vinil.
Mas, aberta a gaveta
já ouves as canções,
já as vozes te agitam:
Baez, Emmylou, Roberta, Melanie,
Anita, Sarah, Ella e “Lady” já se vê,
Piaf, Barbara, Catherine, Greco,
Sotiria, Nara, Milva, Nana e Elis Regina
– mulher que tanto amor te deram
em 33 e 1/3.
(nº 7, 24/11/2000)
Vozes de Espanha
MARÍA JOSÉ FLORES
A Editora Regional da Extremadura acaba de editar Antología Poética (1984-2003), de María José Flores. Nascida em Burguillos del Cerro (Badajoz) no ano de 1963, professora de língua e literatura espanholas na Universidade de Aquila (Itália), este é o seu oitavo livro de poemas. Da sequência Del Animal y de su Culpa (publicada pela primeira vez neste volume), extraímos os três textos que aqui divulgamos.
Son las primeras luces.
Los animales gozan en las sombras
o huelen el peligro o acechan o desgarran
o van hacia las fuentes y los claros.
Sólo el hombre se niega
o se demora.
*
Como quien vuelve de una larga ausencia
y apenas reconoce la que fuera su casa
vuelvo de la desdicha y de la culpa.
Con un sabor de frutos ajenos en los labios.
*
Lo que detrás del cuerpo se oculta
y es el cuerpo.
Es el cuerpo que fluye en su memoria
y nos desvela.
Como esos cauces secos que muestran la heredad
de lo que fue abundancia o fue miseria.
MARÍA JOSÉ FLORES
A Editora Regional da Extremadura acaba de editar Antología Poética (1984-2003), de María José Flores. Nascida em Burguillos del Cerro (Badajoz) no ano de 1963, professora de língua e literatura espanholas na Universidade de Aquila (Itália), este é o seu oitavo livro de poemas. Da sequência Del Animal y de su Culpa (publicada pela primeira vez neste volume), extraímos os três textos que aqui divulgamos.
Son las primeras luces.
Los animales gozan en las sombras
o huelen el peligro o acechan o desgarran
o van hacia las fuentes y los claros.
Sólo el hombre se niega
o se demora.
*
Como quien vuelve de una larga ausencia
y apenas reconoce la que fuera su casa
vuelvo de la desdicha y de la culpa.
Con un sabor de frutos ajenos en los labios.
*
Lo que detrás del cuerpo se oculta
y es el cuerpo.
Es el cuerpo que fluye en su memoria
y nos desvela.
Como esos cauces secos que muestran la heredad
de lo que fue abundancia o fue miseria.
RUY CINATTI
um poema inédito
um poema inédito
em Setúbal
Ganho sempre algo quando vou a Setúbal. Mesmo ferida por alguns atentados urbanísticos, a cidade mantém uma digna delicadeza na sua forma urbanística, discreta, mas com riquezas que ninguém se pode dar ao luxo de desprezar. Basta deambularmos pelas suas ruelas ou apercebermo-nos de que o seu perímetro urbano não termina na avenida Luísa Todi e se abre ao rio Sado, num jardim marginal que constitui um dos trechos mais interessantes da paisagem urbana da Península da Arrábida.
Meio escondida nas proximidades da câmara municipal, é preciso orientação para descobrirmos a livraria Universo, propriedade do escritor Raposo Nunes. Situada na rua do Concelho, número 13, merece no entanto uma visita. Não será uma catedral do livro, tão pequena é. Constitui, no entanto, sem dúvida, um local de devoção a esse veículo de luz.
Visitei a livraria na passada semana. Enquanto conversava com o proprietário sobre amigos comuns, fixei o meu olhar num poema emoldurado, exposto em canto discreto. Pedi autorização para observá-lo. Vi então, com emoção minha, que se tratava (que se trata) do manuscrito de um poema de Ruy Cinatti (1915-1986). Raposo Nunes pensa que está inédito. É muito provável. Com generosidade, deixou-me copiá-lo e fotografá-lo. Não poderia deixar de partilhá-lo convosco, devidamente transcrito.
Navegas ao acaso
sobre múltiplas ondas,
que rombam, se cruzam
sem sentido algum.
Onde páras tu
nesta confusão,
sentida, entretanto,
no teu coração?
Delas tiras rumo
contra os sem razão.
Unge-te, rumina.
Depois desce aos fundos[.]
6/8/83
Ruy Cinatti
Ganho sempre algo quando vou a Setúbal. Mesmo ferida por alguns atentados urbanísticos, a cidade mantém uma digna delicadeza na sua forma urbanística, discreta, mas com riquezas que ninguém se pode dar ao luxo de desprezar. Basta deambularmos pelas suas ruelas ou apercebermo-nos de que o seu perímetro urbano não termina na avenida Luísa Todi e se abre ao rio Sado, num jardim marginal que constitui um dos trechos mais interessantes da paisagem urbana da Península da Arrábida.
Meio escondida nas proximidades da câmara municipal, é preciso orientação para descobrirmos a livraria Universo, propriedade do escritor Raposo Nunes. Situada na rua do Concelho, número 13, merece no entanto uma visita. Não será uma catedral do livro, tão pequena é. Constitui, no entanto, sem dúvida, um local de devoção a esse veículo de luz.
Visitei a livraria na passada semana. Enquanto conversava com o proprietário sobre amigos comuns, fixei o meu olhar num poema emoldurado, exposto em canto discreto. Pedi autorização para observá-lo. Vi então, com emoção minha, que se tratava (que se trata) do manuscrito de um poema de Ruy Cinatti (1915-1986). Raposo Nunes pensa que está inédito. É muito provável. Com generosidade, deixou-me copiá-lo e fotografá-lo. Não poderia deixar de partilhá-lo convosco, devidamente transcrito.
Navegas ao acaso
sobre múltiplas ondas,
que rombam, se cruzam
sem sentido algum.
Onde páras tu
nesta confusão,
sentida, entretanto,
no teu coração?
Delas tiras rumo
contra os sem razão.
Unge-te, rumina.
Depois desce aos fundos[.]
6/8/83
Ruy Cinatti
José do Carmo Francisco
Os barcos velhos
da Ilha Sagrada
Os barcos velhos da Ilha Sagrada nunca morrem. Quando ficam cansados e deixam de poder fazer viagens nas águas frias do Mar do Norte, ninguém os queima nem corta em pedaços para serem lenha nas lareiras das casas da Ilha. Não. Nessa altura os pescadores cortam os barcos ao meio e voltam-nos ao contrário. Depois pregam umas tábuas no lugar onde foram serrados e colocam uma porta. Ficam assim com dois pequenos armazéns para os seus apetrechos de pesca. Depois isolam o casco que passa a ser o tecto de nova casa. Os peregrinos e os turistas recebem assim uma lição de ecologia quando chegam à Ilha Sagrada. Chama-lhe Ilha Sagrada porque está repleta de abadias, umas em ruínas, outras ainda dedicadas ao culto. Situada no Mar do Norte, algures entre Edimburgo e Newcastle, a Ilha Sagrada fica isolada do mundo algumas horas por dia em função das marés. No dia em que lá fui, o dia 2 de Maio, o mapa indicava que a estrada da Ilha estava transitável entre as 9 e 25 da manhã e as 5 e 5 da tarde. Depois, com a subida das águas, a Ilha Sagrada volta a ser de novo uma ilha no sentido total da palavra. O som do violoncelo da Guilhermina Suggia ainda permanece nos salões do castelo da Ilha Sagrada. O mundo é pequeno e a artista portuense foi amiga dos donos deste castelo nos idos anos 20. Quando regressei ao meu roteiro de terra ainda vi duas senhoras a limparem os pés com a toalha e a calçarem os ténis. Tinham acabado o seu percurso na areia e, com a igreja à vista, não queriam sujeitar os seus pés a um massacre no alcatrão da única estrada da ilha. Ao longe os barcos convertidos em armazém mostravam como a ecologia não precisa de quem a proclame mas de quem a pratique.
Vozes do Brasil
C. Ronald
(3º poema de Caro Rimbaud)
30.
Tudo é ser a serviço da variação.
O lençol do holocausto dobrado muitas vezes,
a cariátide louvada como se fosse
santa no portal onde se entra pela fé,
tudo isso determina
a série de significados, o crescimento
da prática se não houvesse
conseqüência no fenômeno da certeza.
Lavo a concentração só no escrever
porque nem todo o redondo
torna-se acúmulo. Dia seguinte,
fuja da palavra onde há desejos e conceitos
explodindo. Os pedidos são
diferentes como são os milagres todos.
A ESCALADA
DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
(mais uma vez...)
Não sou propriamente um admirador de Eduardo Prado Coelho. Defendo no entanto que devemos elogiar a clarividência onde quer que ela exista. Como neste texto, de que reproduzo as linhas iniciais:
"Há qualquer coisa que não está a funcionar bem no Ministério da Educação. Existe uma determinação em abstracto do que se deve fazer, mas uma compreensão muito escassa da realidade concreta. O que se passa com o ensino do Português e a aprendizagem dos textos literário é escandaloso. Onde deveria haver sensibilidade, finura e inteligência na compreensão da literatura, há apenas testes de resposta múltipla completamente absurdos. Assim não há literatura que resista. Há tempos, dei o exemplo da regulamentação por minutos e distâncias de determinadas provas. O ministério respondeu-me que se baseavam na mais actualizada bibliografia e que tinham tido reacções entusiásticas perante tão inovadoras medidas. Não me convenceram minimamente. Trata-se de dispositivos ridículos e hilariantes, que provocam o mais elementar bom senso.
O problema reside em considerar os professores como meros funcionários públicos e colocá-los na escola em sumária situação de bombeiros prontos para ocorrer à sineta de alarme. Mas a multiplicação de reuniões sobre tudo e mais alguma coisa não permite que o professor prossiga na sua formação científica. Quando poderá ler, quando poderá trabalhar, quando poderá actualizar-se? [...]"
Saído originalmente no Público, pode ser lido na íntegra no Talvez uma Península, de Teresa Lopes. Merece ser reflectido e divulgado, dado que veicula um olhar fundamentado sobre vários problemas que vão tornando a actividade docente quase num inferno.
DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
(mais uma vez...)
Não sou propriamente um admirador de Eduardo Prado Coelho. Defendo no entanto que devemos elogiar a clarividência onde quer que ela exista. Como neste texto, de que reproduzo as linhas iniciais:
"Há qualquer coisa que não está a funcionar bem no Ministério da Educação. Existe uma determinação em abstracto do que se deve fazer, mas uma compreensão muito escassa da realidade concreta. O que se passa com o ensino do Português e a aprendizagem dos textos literário é escandaloso. Onde deveria haver sensibilidade, finura e inteligência na compreensão da literatura, há apenas testes de resposta múltipla completamente absurdos. Assim não há literatura que resista. Há tempos, dei o exemplo da regulamentação por minutos e distâncias de determinadas provas. O ministério respondeu-me que se baseavam na mais actualizada bibliografia e que tinham tido reacções entusiásticas perante tão inovadoras medidas. Não me convenceram minimamente. Trata-se de dispositivos ridículos e hilariantes, que provocam o mais elementar bom senso.
O problema reside em considerar os professores como meros funcionários públicos e colocá-los na escola em sumária situação de bombeiros prontos para ocorrer à sineta de alarme. Mas a multiplicação de reuniões sobre tudo e mais alguma coisa não permite que o professor prossiga na sua formação científica. Quando poderá ler, quando poderá trabalhar, quando poderá actualizar-se? [...]"
Saído originalmente no Público, pode ser lido na íntegra no Talvez uma Península, de Teresa Lopes. Merece ser reflectido e divulgado, dado que veicula um olhar fundamentado sobre vários problemas que vão tornando a actividade docente quase num inferno.
Vozes do Brasil
C. RONALD
17.
Eu penso no lugar. O que existe
não lhe dá espaço. Sou a amendoeira
nostálgica no inverno sem outra
mudança além das raízes cobertas.
Um corpo igual reaquecido na pedra
após ela estar escrita. Nossos ancestrais
admirando a lua mais morta que viva.
Poderias estar memorizando o ruído.
Esse ser na curva não volta ao erro
se algumas colunas da Grécia deixam de
crescer. Todo acordo mesquinho é
a metade do gesto que devia aparecer.
(segundo poema retirado de Caro Rimbaud, 2006)
C. RONALD
17.
Eu penso no lugar. O que existe
não lhe dá espaço. Sou a amendoeira
nostálgica no inverno sem outra
mudança além das raízes cobertas.
Um corpo igual reaquecido na pedra
após ela estar escrita. Nossos ancestrais
admirando a lua mais morta que viva.
Poderias estar memorizando o ruído.
Esse ser na curva não volta ao erro
se algumas colunas da Grécia deixam de
crescer. Todo acordo mesquinho é
a metade do gesto que devia aparecer.
(segundo poema retirado de Caro Rimbaud, 2006)
C. RONALD
Entre dois caminhos
(Poema retirado do novo livro do autor, Caro Rimbaud, editado há pouco tempo pela Bernúncia Editora, de Florianópolis, Brasil. Este é o primeiro de três textos que publicaremos. Para conhecer melhor a obra de C. Ronald não deixe de visitar a sua página.)
Entre dois caminhos
A janela da casa iluminada não é a mesma que tens lá fora. Depois do nascimento divide-se a coragem com animais ferozes; e o grito criado por tudo e por tão pouco é como latido de cão, asfalto sob rodas em derrapagem: duro, mas por ali passa o sentido duplo, vontades e destinos em bicicleta, automóvel, caminhão, ônibus. Quem dirige o novo vai mesmo e leva a corrente no pescoço. Até onde chega a escadaria sem proveito para os loucos como eu, o grande castigado no entendimento alheio com o barulho de baixo.
Os sinos tangenciam o pânico das crianças e dos duendes, mas deixam muitos sons sem imagem. Olhem a viúva do narrador com seu prêmio esperado, sua pobreza controlada. Fogo de violino em cabelo ruivo, nunca pegou vento leste desse lado...
(Poema retirado do novo livro do autor, Caro Rimbaud, editado há pouco tempo pela Bernúncia Editora, de Florianópolis, Brasil. Este é o primeiro de três textos que publicaremos. Para conhecer melhor a obra de C. Ronald não deixe de visitar a sua página.)
CRÓNICA DE UM DESASTRE
Li há poucos dias o livro de Nuno Crato intitulado O 'Eduquês' em Discurso Directo - Uma Crítica da Pedagogia Romântica e Construtivista, editado pela Gradiva. Não me trouxe quaisquer novidades, mas teve o condão de esclarecer e fundamentar uma visão empírica do desastre em que está mergulhado o nosso sistema educativo. Merece ser lido com toda a atenção e, sobretudo, sem preconceitos, para que tenhamos todos consciência das causas reais do insucesso da nossa Instrução e do nosso Ensino que, pela calada, têm contribuido perigosamente para uma sociedade desigual, injusta, medíocre e ignorante (embora afirmando o contrário).
Sobre ele, deve ler-se um artigo recente de Vasco Graça Moura, publicado no Diário de Notícias de 5 de Maio passado. Não anda longe do que penso.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
Natália Correia
lida em voz alta
no North Yorkshire
No passado dia 27 de Abril na pacata localidade de Harome no Yorkshire aconteceu o casamento da minha filha Ana Maria. Tal situação em si (e só por si) não justificaria a existência de nenhuma crónica pois os assuntos privados não podem servir de ponto de partida para um exercício de escrita e de leitura. Não aos assuntos privados. Mas há sempre um mas. Neste caso um dos aspectos mais comoventes da cerimónia do casamento foi a leitura pela minha filha Marta do poema de Natália Correia que começa assim: «Creio nos anjos que andam pelo Mundo / Creio na Deusa com olhos de diamantes / Creio em amores lunares com piano ao fundo / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes.» O mais curioso tem a ver com o facto de o poema terminar desta maneira: «Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen. » Ora a senhora conservadora do Registo Civil de Molton a princípio recusou o poema porque incluía a palavra «Ámen» mas a minha filha Ana Maria teve artes de a convencer que aquele «Ámen» tinha o significado poético de «Assim seja» pois todo o poema está construído numa dinâmica de afirmação. Numa cerimónia totalmente civil uma referência a temas religiosos seria inaceitável mas felizmente a senhora conservadora (tão conservadora que ainda usa mata-borrão) acabou por aceitar o poema de Natália Correia lido em voz alta pela menina das alianças, a minha filha Marta. O meu filho Filipe registou tudo em filme funcionando assim de modo informal como o fotógrafo do casamento. Para uma cerimónia que teve início ao som da música de Eric Satie nada melhor que as palavras fortes, altas e sonoras de Natália Correia numa grande profissão de fé no amor. Assim seja.
(Nota: Ana Maria Francisco é arquitecta no Reino Unido. Poeta e escritora, publicou o livro Personagens para um Lugar Memorável, na Black Sun Editores. RV)
Natália Correia
lida em voz alta
no North Yorkshire
No passado dia 27 de Abril na pacata localidade de Harome no Yorkshire aconteceu o casamento da minha filha Ana Maria. Tal situação em si (e só por si) não justificaria a existência de nenhuma crónica pois os assuntos privados não podem servir de ponto de partida para um exercício de escrita e de leitura. Não aos assuntos privados. Mas há sempre um mas. Neste caso um dos aspectos mais comoventes da cerimónia do casamento foi a leitura pela minha filha Marta do poema de Natália Correia que começa assim: «Creio nos anjos que andam pelo Mundo / Creio na Deusa com olhos de diamantes / Creio em amores lunares com piano ao fundo / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes.» O mais curioso tem a ver com o facto de o poema terminar desta maneira: «Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen. » Ora a senhora conservadora do Registo Civil de Molton a princípio recusou o poema porque incluía a palavra «Ámen» mas a minha filha Ana Maria teve artes de a convencer que aquele «Ámen» tinha o significado poético de «Assim seja» pois todo o poema está construído numa dinâmica de afirmação. Numa cerimónia totalmente civil uma referência a temas religiosos seria inaceitável mas felizmente a senhora conservadora (tão conservadora que ainda usa mata-borrão) acabou por aceitar o poema de Natália Correia lido em voz alta pela menina das alianças, a minha filha Marta. O meu filho Filipe registou tudo em filme funcionando assim de modo informal como o fotógrafo do casamento. Para uma cerimónia que teve início ao som da música de Eric Satie nada melhor que as palavras fortes, altas e sonoras de Natália Correia numa grande profissão de fé no amor. Assim seja.
(Nota: Ana Maria Francisco é arquitecta no Reino Unido. Poeta e escritora, publicou o livro Personagens para um Lugar Memorável, na Black Sun Editores. RV)
UM MAU ESCRITOR TALENTOSO
Li há pouco tempo um saboroso e muito vertical artigo do filósofo e poeta Paulo Tunhas sobre o ensaio de João Pedro George em torno dos livros de Margarida Rebelo Pinto (p. 43 do nº 14 da revista Atlântico). A dado passo afirma:
“[...] porque é que ninguém desenvolve o mesmo inquérito em relação a outros romancistas [?] José Saramago, por exemplo. Eu também o li. [...] Cheguei à conclusão que Saramago é um mau escritor talentoso, uma espécie vulgar. Palavroso, moralista, sem ponta de ironia. Uma opinião, apesar de tudo, ligeiramente melhor do que aquela para a qual, na minha ignorância, eu tendia naturalmente. Leva-se suficientemente a sério para não se entediar a meio da escrita dos livros, e isso permite-lhe um certo élan, naturalmente interdito a espíritos mais voláteis ou simplesmente mais lúcidos.”
Como a memória tem coisas que ninguém entende, enquanto lia estas frases recordei uma crónica recente de Fernando Venâncio, onde – delicada e ironicamente – punha a nu os espanholismos desnecessários que enxameiam as obras do romancista, não como recursos estilísticos, o que seria normal, mas como pés que resvalam para a poça, como descuidos que um bom revisor nunca deveria permitir.
Sobre o homem-Saramago recordei ainda um artigo de José do Carmo Francisco intitulado: “Será José Saramago um fotógrafo de Estaline? (Crónica para os olhos tristes de Maria Belmira)”, vindo a lume no nº 29 de suplemento Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (22/11/2002):
“[...] O mesmo José Saramago que um dia recebeu um enormíssimo ramo de flores numa homenagem promovida por uma Câmara Municipal no Alentejo e não quis voltar para Lisboa sem primeiro passar pelo Lavre para entregar o ramo à tua mãe para que o destino final daquelas flores fosse a campa do teu irmão João, foi o mesmo que resolveu apagar o nome do teu pai, da tua mãe, da tua irmã e de várias muitas outras pessoas da primeira página do livro Levantado do Chão. E isto mesmo depois de ter assegurado por escrito e por extenso – Sem eles não teria sido escrito este livro.
[...] [Este texto] é no fundo um texto de descoberta, de revolta e de repúdio por uma situação de morte civil só comparável à acção dos fotógrafos de Estaline que faziam desaparecer das fotografias várias pessoas inconvenientes e que, só anos depois se viria a saber, não deveriam ter estado ao lado do ‘grande líder’. [...]
[...] [Isto] para ir lembrar o ano de 1976 quando tinhas apenas quinze anos de idade e um escritor quase desconhecido entrou pela porta da casa dos teus pais para escrever um livro (Levantado do Chão) e para, muitos anos depois, de modo totalmente inesperado e (para mim) injusto, vir fechar a primeira página desse livro a quem lhe tinha aberto as portas da sua casa e do seu coração.”
A pouco e pouco o pano vai caindo. Há cada vez mais homens e mulheres que concordam com as palavras do poeta C. Milosz (galardoado justamente com o prémio Nobel) que, no momento em que Saramago recebia a distinção sueca, não teve papas na língua e quebrou o unanimismo acrítico, afirmando que o autor de Memorial do Convento não passa de “um escritor de segunda ordem”. Fosse o grande escritor polaco português e chamar-lhe-ia, talvez, como Paulo Tunhas, “um mau escritor talentoso”. Eu encontraria outros adjectivos, mas aqueles que se apresentam são suficientes para quem vive e quem escreve naquele ser humano.
W. B. YEATS
Uma prece pela minha filha
Desaba a tempestade outra vez; escondida
sob os mantos e os véus do berço, adormecida,
minha filha. Nenhuma outra barreira existe,
senão a mata espessa e uma colina triste,
contra o vento que vem do Atlântico potente,
abatendo o celeiro e os tetos, quando solto;
e há uma hora já que rezo e vou e volto,
pois é grande a apreensão em minha mente.
Há uma hora já que estou a rezar, indo e vindo,
A ouvir a ventania ao longe produzindo
Contra a torre ou na ponte o seu forte assobio,
Ou sobre os olmos, na distância, além do rio.
Num devaneio inquieto, eu fico a imaginar
Que o futuro chegou e agora vem, surgido –
A dançar num frenético alarido –
Da inocência mortífera do mar.
Que ela tenha beleza, e entanto que não seja
A ponto de causar o alheio espanto e a inveja,
Ou o seu próprio perante o espelho, pois todo esse
Que a beleza cumula e dota se envaidece,
E a toma por um fim em si mesma ou um bem,
Perdendo a natural bondade e muita vez
Toda a espontaneidade e singelez
Que escolhe certo – e vive sem ninguém.
Helena, a eleita, por estar aborrecida
Foi ao lado de um tolo estragar sua vida,
Enquanto a outra imortal Rainha, que nasceu
Do imenso mar, sem pai, por homem elegeu
Um feioso artesão coxo e de pernas tortas.
Belas mulheres vão às vezes misturar
Uma salada louca ao seu manjar
Tão logo a Cornucópia esteja à porta.
Na cortesia é que eu a pretendera exímia;
Os corações não são prendas: mas pela estima
Vence-os quem não é tão bonito; e quem bancou
O bobo e da beleza em si se enamorou,
Tornou-o sábio a graça interior; mais de um crente
Que, pobre, pelo mundo andou perambulando,
Amando muito e amado se julgando,
A bondade o conquista certamente.
Que ela uma árvore seja a florir escondida,
E seja o seu pensar uma ave agradecida,
Ocupada somente em exercer o dom
De espargir ao redor um magnânimo som,
E alegremente saia em busca do alimento
E, mesmo querelando, o faça alegremente.
Oh, seja como o verde louro, assente
Num perpétuo lugar do sentimento.
Minha mente, devido às mentes que eu amei,
Ao tipo de beleza em que me deleitei,
Bem pouco prosperou, secou, e agora sabe
Que sufocar em ódio é coisa que não cabe,
Que de tudo o que é mau é sempre o mal maior.
Se não deixarmos o ódio entrar em nossa mente,
Por mais que o vento se levante e tente,
Não cai da folha o pássaro cantor.
De todos o pior é o ódio intelectual;
Então que ela aborreça opiniões. Afinal
Não vi também mulher, entre todas amável
Que no mundo deitou o Corno inesgotável,
Pela simples razão de um cérebro opinioso
trocar aquele chifre e os bens que ele contém,
Como os de índole humilde sabem bem,
Por velho fole e vento furioso?
Considerando assim, toda ira dominada,
Sua inocência tem a alma reconquistada
E aprende que a inocência em si se delicia,
Em si se apazigua, e a si se policia,
E que ela quer somente aquilo que o Céu quis;
Ela pode – por mais que o outro franza o cenho,
Por mais que o vento muja e faça empenho
E cada fole sopre – ser feliz.
E então para uma casa a leve o seu esposo,
Para um viver regrado e cerimonioso,
Pois soberba e rancor são más mercadorias
Que se podem comprar nos becos e nas vias.
Senão na cerimônia e no costume, como
Pode haver inocência e florescer a graça?
Cerimônia, eis o nome dessa taça,
E o verde louro chama-se costume.
(Tradução de Renato Suttana – para minha filha Marina – abril/2006)
Uma prece pela minha filha
Desaba a tempestade outra vez; escondida
sob os mantos e os véus do berço, adormecida,
minha filha. Nenhuma outra barreira existe,
senão a mata espessa e uma colina triste,
contra o vento que vem do Atlântico potente,
abatendo o celeiro e os tetos, quando solto;
e há uma hora já que rezo e vou e volto,
pois é grande a apreensão em minha mente.
Há uma hora já que estou a rezar, indo e vindo,
A ouvir a ventania ao longe produzindo
Contra a torre ou na ponte o seu forte assobio,
Ou sobre os olmos, na distância, além do rio.
Num devaneio inquieto, eu fico a imaginar
Que o futuro chegou e agora vem, surgido –
A dançar num frenético alarido –
Da inocência mortífera do mar.
Que ela tenha beleza, e entanto que não seja
A ponto de causar o alheio espanto e a inveja,
Ou o seu próprio perante o espelho, pois todo esse
Que a beleza cumula e dota se envaidece,
E a toma por um fim em si mesma ou um bem,
Perdendo a natural bondade e muita vez
Toda a espontaneidade e singelez
Que escolhe certo – e vive sem ninguém.
Helena, a eleita, por estar aborrecida
Foi ao lado de um tolo estragar sua vida,
Enquanto a outra imortal Rainha, que nasceu
Do imenso mar, sem pai, por homem elegeu
Um feioso artesão coxo e de pernas tortas.
Belas mulheres vão às vezes misturar
Uma salada louca ao seu manjar
Tão logo a Cornucópia esteja à porta.
Na cortesia é que eu a pretendera exímia;
Os corações não são prendas: mas pela estima
Vence-os quem não é tão bonito; e quem bancou
O bobo e da beleza em si se enamorou,
Tornou-o sábio a graça interior; mais de um crente
Que, pobre, pelo mundo andou perambulando,
Amando muito e amado se julgando,
A bondade o conquista certamente.
Que ela uma árvore seja a florir escondida,
E seja o seu pensar uma ave agradecida,
Ocupada somente em exercer o dom
De espargir ao redor um magnânimo som,
E alegremente saia em busca do alimento
E, mesmo querelando, o faça alegremente.
Oh, seja como o verde louro, assente
Num perpétuo lugar do sentimento.
Minha mente, devido às mentes que eu amei,
Ao tipo de beleza em que me deleitei,
Bem pouco prosperou, secou, e agora sabe
Que sufocar em ódio é coisa que não cabe,
Que de tudo o que é mau é sempre o mal maior.
Se não deixarmos o ódio entrar em nossa mente,
Por mais que o vento se levante e tente,
Não cai da folha o pássaro cantor.
De todos o pior é o ódio intelectual;
Então que ela aborreça opiniões. Afinal
Não vi também mulher, entre todas amável
Que no mundo deitou o Corno inesgotável,
Pela simples razão de um cérebro opinioso
trocar aquele chifre e os bens que ele contém,
Como os de índole humilde sabem bem,
Por velho fole e vento furioso?
Considerando assim, toda ira dominada,
Sua inocência tem a alma reconquistada
E aprende que a inocência em si se delicia,
Em si se apazigua, e a si se policia,
E que ela quer somente aquilo que o Céu quis;
Ela pode – por mais que o outro franza o cenho,
Por mais que o vento muja e faça empenho
E cada fole sopre – ser feliz.
E então para uma casa a leve o seu esposo,
Para um viver regrado e cerimonioso,
Pois soberba e rancor são más mercadorias
Que se podem comprar nos becos e nas vias.
Senão na cerimônia e no costume, como
Pode haver inocência e florescer a graça?
Cerimônia, eis o nome dessa taça,
E o verde louro chama-se costume.
(Tradução de Renato Suttana – para minha filha Marina – abril/2006)
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