EDUARDO GUERRA CARNEIRO

três poemas


MERCEARIA

Nos lugares se encontram os vizinhos,
para buscar açúcar ou sabão.
Discutem preços e levam raminhos,
de salsa, coentros e agrião.
Cirróticos ainda buscam lenitivo
num chazinho do Gerez,
de hipericão. O rol da mercearia
não é definitivo – importante é a receita
do doutor. O primeiro assomo
de invernia para alguns é um ar. Choram
depois viúvas, encostadas às tábuas
do balcão. Tocam os sinos
no convento em frente:
meninas cegas em lento caminhar.


GATO


Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto,
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.


RUY BELO

É no Café Nacional, em Vila do Conde,
e eu converso com Ruy Belo, nos anos
sessenta. Não é tempo dele avançar
em longas bebidas e os próprios Beatles
não gravaram ainda o álbum do Sargento Pimenta.
O Poeta bebe apenas na chícara o quente
cimbalino, enquanto espera a Teresa,
em casa dos pais, na doçaria ao lado.
É no Café Nacional, em Vila do Conde,
em domingo de bola na telefonia
do balcão. Ele fala-me das palavras
sábias do poema mas eu não sintonizo
e, ouvidos moucos, desligo, desconfiado
que são apenas palavras de beato.


(poemas retirados do livro Contra a Corrente, editado em 1988 pela & etc.)

1 comentário:

Ruy Ventura disse...

Essa é que é essa, amigo Zé!