JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


O dedo mindinho da mão esquerda

De vez em quando acontecem pequenas coisas que, percebemos depois, não são coisas pequenas. Pode este pacato cidadão passar um dia cheio de dores no dedo mindinho da mão esquerda. A origem desta dor intensa deve ser o aumento da gota, uma doença que no meu tempo de criança era uma doença dos ricos. Eu nunca fui nem serei rico mas acabo por ter uma doença de ricos. De repente lembrei-me do meu avô José Almeida Penas que era carpinteiro e tinha o dedo mindinho da mão esquerda completamente ancilosado. De vez em quando o meu avô dizia ao doutor Bertolino (o único médico numa zona de mais de vinte quilómetros) que ia cortar o dedo com uma enxó. Claro que não passava de uma ameaça nunca concretizada. O dia está cheio de sol, a vida corre, há uma brisa fresca no meio do esplendor do sol mas o dedo mindinho da mão esquerda espalha incomodidade por todo o corpo. É um sentimento estranho. De repente sinto-me mais perto do meu avô, estranhamente perto, eu que tenho 55 anos de idade e que ouvi o meu avô dizer muitas vezes que cortava o dedo com uma enxó. O doutor Bertolino sorria, a minha avó resmungava, eu não percebia nada mas agora começo a perceber. Não é o bilhete de identidade que nos dá a entender que estamos velhos. São estes pequenos sinais do corpo, estas pequenas intuições da alma. São estas dores que se espalham, intensas e profundas, numa espécie de máquina sentimental a projectar memórias. É tudo isto que nos explica de modo implícito e não explícito que o nosso tempo está a passar cada vez mais veloz e nós cada vez mais sem tempo para o acompanhar na sua velocidade. E o dedo mindinho da mão esquerda continua a doer.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bom texto. O seu a seu dono. A crítica a coisas que achamos erradas não exclui o reconhecimento da qualidade literária dum autor.