Um iate, um cais, um copo de gin
(crónica de José do Carmo Francisco)

Voltei as costas ao bulício da parte velha da cidade, aos sacos que cheiram a compras e à pressa das pessoas nas escadas rolantes dos armazéns. Uma pequena viagem de Metropolitano é o suficiente para chegar ao Mar da Palha. Com a ponte Vasco da Gama à direita o Peter lá está à esquerda à minha espera. Um iate, um cais e um copo de gin – eis o lema que, desde sempre, fixei. Não tenho iate, cheguei aqui muito prosaicamente de Metropolitano mas tenho à minha frente um cais e um copo de gin. Junte-se um livro e uma tosta mista feita com aquele pão tão especial e temos programa para uma tarde bem passada no Peter do Parque das Nações. O dia começa a cair muito cedo. O cinzento vence o azul. Acendem-se as primeiras luzes do lado de lá. Sei muito bem que tenho à esquerda Alcochete e logo a seguir Samouco, Montijo, Barreiro e Seixal mas o meu espírito diz-me que ali em frente tenho na verdade a Ilha do Pico. As luzes do lado de lá podem ser da Madalena. Estou sozinho na mesa de quatro mas tenho à minha volta uma solidão povoada. Estão aqui comigo mesmo sem ninguém os ver a Eduardina, o Urbano Bettencourt, a Zezinha Lacerda, o Carlos Lobão, o Sidónio Bettencourt, o Emanuel Jorge Botelho, o Álamo Oliveira, o J.H. Santos Barros, o Emanuel Félix. E todos. E todas as vozes. E todos os livros. E todos os filmes a começar por Gente feliz com lágrimas de João de Melo e Zeca Medeiros. Sem um iate mas com um cais e um copo de gin eu posso convocar a paisagem e o povoamento dos Açores aqui no Parque das Nações. E ser feliz. Mesmo se for apenas nestes momentos de alegria breve numa tarde cor de cinza.

2 comentários:

Teresa Lobato disse...

Curiosa, esta crónica. Curioso, também, o facto de, calcorreando a Arrábida, me sentir, tanta vez, nos Açores. Há zonas, em particular, que me transportam para esse arquipélago fantástico.
Ainda bem que não é só a mim...

Ruy Ventura disse...

Não és só tu, Teresa. Apesar de nunca ter ido ao Pico, quando me sento no alto da Arrábida tenho a sensação de estar numa ilha de paz.