Carreiras (Portalegre), Agosto/06

AS PALAVRAS DE BENTO (4)


Se as palavras de Bento XVI coincidem com as palavras de muitos cidadãos de boa vontade, inclusivé muçulmanos, como podemos então compreender tanta polémica? Se lermos cuidadosamente a afirmação do imperador bizantino Manuel II, perceberemos o que está por detrás de tudo. Quando o Paleólogo se dirige ao seu interlocutor persa convidando-o a mostrar “o que Maomé trouxe de novo” e acrescentando que “só encontrar[á] coisas más e desumanas, como o seu mandamento de difundir pela espada a fé que pregava”, não se refere propriamente à fé islâmica, mas implicitamente à manipulação política do nome de Deus (que o utiliza como estandarte guerreiro), consciente de que “Deus não ama o sangue”, mas a misericórdia e a mansidão. Racionalmente, Manuel não refere “Alá” ou “Islão”, mas Maomé que, de facto, usou a guerra para alargar os territórios que dominava, abrindo caminho para a inclusão no livro sagrado dos muçulmanos de uma norma apelando à “guerra santa” como instrumento não de conversão religiosa, mas de domínio político e geo-estratégico. Só assim se explica a relativa tolerância inicial dos conquistadores em relação aos conquistados. Não lhes interessava tanto a difusão da mensagem de Alá, mas sobretudo o domínio do território pelas armas, embora o pretexto apresentado fosse o da “guerra santa”. Ameaçado pelos otomanos, o imperador de Constantinopla sabia onde residia a raiz do problema que, pouco tempo depois, aniquilaria o seu império. Não estava na religião, mas no entendimento irracional e/ou na manipulação política da mensagem de Alá, iniciados por Maomé, segundo contam as crónicas muçulmanas e os livros de História. Se a violência exercida em nome de Deus é ilegítima, como referiu e bem David Munir, então somos obrigados a reconhecer que o profeta do Islão terá sido, ele próprio, infiel à palavra que proclamava. Bento XVI não vai tão longe, mas afirma algo que deveria ser consensual: para que exista um diálogo inter-religioso frutuoso, é preciso que todas as confissões abdiquem do princípio da “guerra santa”.

*

Já em 1991 o então cardeal Joseph Ratzinger, numa obra intitulada A Igreja e a Nova Europa, diagnosticara – num pensamento lúcido, contra a corrente – as causas da “compreensão” do “ideal” terrorista, nascida em certos sectores políticos ocidentais de uma “simpatia filosófica” pelo carácter “revolucionário” dos praticantes de uma violência indiscriminada e deliberada. Nas mesmas páginas aponta que o trabalho legítimo de edificação de um mundo pacífico não pode levar a novas formas de violência que construam não a paz desejada, mas novas formas de guerra ainda mais violentas, física e psicologicamente. É que certos aspectos do “pacifismo” são muito perigosos, por serem condescendentes e quase sempre tolerantes em relação a muitas formas de totalitarismo, constituindo quantas vezes uma frieza em relação ao sofrimento de tantos seres humanos.

*

Que tem tudo isto a ver com o tempo em que vivemos? Muito, infelizmente. Vivemos, como é sabido, sob a ameaça de um terrorismo expansionista que, invocando o nome de Deus em vão, tem em vista dois objectivos, expressos em vários documentos fidedignos: 1) recolocar sob domínio islâmico todos os territórios que alguma vez na História foram conquistados por muçulmanos (isto inclui a Península Ibérica, a Grécia e todos os Balcãs); 2) destruir, pela violência indiscriminada e pelo medo, o modo de viver ocidental, sobretudo a democracia e os direitos do Homem.

*

Só venceremos a monstruosidade do terrorismo e impediremos a concretização dos seus objectivos se rejeitarmos a cobardia se os denunciarmos sem receios nem calculismos, utilizando os instrumentos da racionalidade, sendo capazes de estabelecer uma hierarquia de valores e uma proposta ética que rejeite o relativismo pós-moderno que tudo aceita. Como refere Joseph Ratzinger no seu ensaio: “Os aspectos positivos da modernidade devem ser reconhecidos sem reservas: estamos todos muito gratos pelas possibilidades grandiosas que esta abriu ao homem e pelo progresso em humanidade que nos permitiu. [...]. [...] apesar de toda a alegria experimentada face às possibilidades abertas à humanidade, vemos também as ameaças que emergem dessas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos ultrapassá-las. Só o conseguiremos se a razão e a fé se unirem de uma nova maneira [....]. Só assim passaremos a ser capazes de um verdadeiro diálogo entre as culturas e as religiões – um diálogo de que temos necessidade urgente. No mundo ocidental, predomina largamente a opinião de que só a razão positivista e as formas de filosofia que dela derivam são universais. Mas as culturas profundamente religiosas do mundo vêem nessa exclusão do divino da universalidade da razão um ataque às suas mais profundas convicções. / Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião para o nível das subculturas é incapaz de participar no diálogo das culturas. [...] / O Ocidente é desde há muito ameaçado pela sua aversão às questões que sustentam a sua racionalidade e, por isso, só pode sofrer grandes danos. [...] ‘Não agir segundo a razão, não agir com o ‘logos’, é contrário à natureza de Deus’, declarou Manuel II ao seu interlocutor persa, a partir do seu entendimento cristão de Deus. É para esse grande ‘logos’, para essa imensidade da razão, que convidamos os nossos interlocutores no diálogo das culturas. [...]” Esta posição viu-se confirmada e esclarecida nas palavras que, no passado dia 25 de Setembro, dirigiu aos embaixadores dos países islâmicos, tanto na passagem em que cita Karol Wojtila – “[…] o respeito e o diálogo requerem a reciprocidade em todos os domínios, sobretudo naquilo que respeita às liberdades fundamentias e mais particularmente a liberdade religiosa” – quanto no momento em que afirmou ser “imperativo que cristãos e muçulmanos se comprometam em conjunto para enfrentar os numerosos desafios que se apresentam à humanidade, nomeadamente naquilo que respeita à defesa e promoção da dignidade do ser humano e dos direitos que daí derivam. Quando crescem ameaças contra o homem e contra a paz, ao reconhecerem o carácter central da pessoa e trabalhando com perseverança para que a vida seja sempre respeitada, cristãos e muçulmanos manifestam a sua obediência ao Criador”.

*

Tudo isto me recorda alguns escritores europeus que, contra a corrente dominante, têm diagnosticado na sua obra o caminho da sociedade ocidental em direcção às margens do abismo. Conto, entre eles, a jornalista Oriana Fallaci e filósofos cimeiros, como Fernando Gil e Fernando Savater. Este último, no seu livro Os Mandamentos no Século XXI, apresenta ideias que, embora com nuances distintas, me parecem complementares das defendidas pelo papa Bento XVI. Com elas termino este conjunto de apontamentos: “Quando vivemos numa sociedade multicultural, temos de assumir que existe o direito a ter-se religião, a terem-se crenças, e isso comporta o facto de se terem que suportar também alfinetadas por parte da realidade. [...] / Mas isto é, por outro lado, acompanhado de uma leviandade que é perceptível por toda a parte e que se exprime através da máxima que diz: ‘todas as opiniões são respeitáveis’. O que é um disparate. Nem todas as opiniões são respeitáveis. Se assim tivesse sido, a humanidade não teria podido dar um único passo em frente. Não se podem respeitar as ideias totalitárias, xenófobas, racistas, exclusivas, que violem os direitos humanos elementares. [...] / Que respeito merecem as ideias por detrás das quais se acoitam os terroristas de diferentes sinais? [...] / [...] Não podemos respeitar os desrespeitadores.”

Escultura em Sesimbra. Julho/06
AS PALAVRAS DE BENTO (3)


Entre os deveres do cristão, está o do testemunho. Para que o concretize, tem de vencer a cobardia e o medo, isto é, não pode ser politicamente correcto nem diplomaticamente hipócrita. “Se o teu irmão te ofender, repreende-o; e, se ele se arrepender, perdoa-lhe”, afirma Jesus no Evangelho segundo S. Lucas (Lc 17, 3). Contra a opinião de muitos (inclusivé católicos com responsabilidades eclesiais), Bento XVI cumpriu esse dever, dando um exemplo de coragem a todo o mundo, cristão ou não-cristão. Conhecendo o irracionalismo no entendimento de Deus que dominou muitas épocas, recentes ou recuadas, da História do Catolicismo, do Islamismo, do Judaísmo ou de outras confissões, poderia ter lavado as mãos como Pilatos, poderia ter sido um Bartleby adaptado à religião (“preferiria não denunciar...”) ou uma Suíça feita homem, sempre neutral e sempre disposta a legitimar todas as monstruosidades políticas e financeiras do mundo. Preferiu no entanto seguir o exemplo de Jesus (que não teve medo de denunciar a hipocrisia dos fariseus do seu tempo), como o fizeram, noutros momentos da História, Francisco de Assis, Bartolomé de las Casas, António Vieira, António Ferreira Gomes, o seu antecessor João Paulo II (que apresentou ao mundo, na altura certa, os crimes da dominação comunista) e muitos outros. Joseph Ratzinger terá defeitos, como todos nós, mas não me parece que seja cobarde (e sê-lo-ia se calasse a sua visão do mundo cristão, islâmico, judaico, ateu, etc.). (Cobardia ou calculismo mostraram muitos que o criticaram ou nada disseram para o defender, nomeadamente os líderes europeus, como apontou e bem José Manuel Durão Barroso.) E não digam que o papa apenas critica o exterior da sua Igreja. Ainda na Páscoa de 2005 o ouvimos afirmar: “Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar [...]. [...] O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre [...]. Tende piedade da vossa Igreja: também dentro dela, Adão continua a cair. Com a nossa queda, deitamo-Vos ao chão, e Satanás a rir-se porque espera que não mais conseguireis levantar-Vos daquela queda; espera que Vós, tendo sido arrastado na queda da vossa Igreja, ficareis por terra derrotado.” Quem assim fala tem decerto o direito de proceder a uma firme correcção fraterna, decerto consciente de que a mensagem do Cristianismo, quando correctamente entendida, pode provocar a divisão entre os que a aceitam e quantos a rejeitam.

*

Bento XVI afirmou, já depois da sua conferência na Alemanha, inequívoco respeito pelos fiéis sinceros de todas as confissões religiosas, nomeadamente do Islão. Ora, respeitar algo ou alguém não implica uma miopia histórica nem obriga à aceitação de tudo quanto o outro pratica, por mais abominável que seja. Como refere G. K. Chesterton no seu livro Ortodoxia, entendendo bem a mensagem transmitida pelos Evangelhos, se um cristão deve perdoar infinitamente aos criminosos, tem por outro lado a obrigação de denunciar e de combater sem descanso, sem hesitações e sem hipocrisias calculistas os crimes que este cometa. Por mais voltas que queiramos dar à polémica, não conseguimos apagar da memória do mundo que a violência in nomine Dei tem andado sempre de braço dado com a civilização muçulmana. Constatar isto não significa que não reconheçamos os eventuais aspectos positivos de muitos movimentos da religião maometana. Mas não podemos esquecer que, como lembra qualquer volume sobre a História do Islão, desde o início a expansão dos seus princípios se deu à custa de muitas vidas e de vitórias militares e que essa dimensão guerreira está expressa, legitima ou ilegitimamente, nas linhas do Alcorão. Que isto corresponde a uma errada interpretação da vontade divina, parece-me inequívoco, como aliás parece inequívoco a muitos muçulmanos, como por exemplo ao imã da mesquita de Lisboa, que ainda no 5º aniversário do 11 de Setembro afirmou, sem hesitações, que quem mata em nome de Alá não acredita certamente nele. Bento XVI afirmou algo de diferente? Julgo que não.

(continua)

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Entre a ausência e a memória


Estamos num quente fim de tarde no Café Peter de Lisboa entre uma sandes de atum e o inevitável gin tonic. Entre o pão que sabe a terra e o atum que sabe a mar. O gin tonic, esse, é um convite a todas as viagens. Mesmo aquelas que se fazem sem sair da nossa mesa. Uma velha fragata recuperada aguarda os passageiros para uma volta pelo Mar da Palha. Parece que o nome deste estuário lhe vem das grandes inundações no Ribatejo no passado quando a corrente violenta trazia numerosos fardos de palha da Lezíria até Lisboa. Oiço, julgo que oiço, palavras, restos de palavras, sílabas, ditongos perdidos, pequenos sons da voz de Maria José. Misturam-se os dois tempos da ausência e da memória. E a mesa que parecia vazia surge povoada pelo tempo em que não havia distância nem silêncio. Todas as manhãs nesse tempo eram iluminadas pelos passos decididos de Maria José. Hoje, neste fim de tarde onde uma brisa teimosa procura empurrar o calor para o estuário do Tejo, despeço-me do Café Peter e passo de novo junto à fragata de cores garridas. De súbito vejo, julgo ver, o seu nome que mudou – em vez de Castro Júnior é agora Maria José. A voz de Maria José é um vento novo que empurra a velha fragata recuperada para uma travessia até ao outro lado do Mar da Palha. Eu sou apenas um pequeno ponto na grande multidão do Parque das Nações. Passam centenas de atletas urbanos a correr, outros pedalam vigorosamente em bicicletas caríssimas porque são leves como penas. Grupos de turistas multiplicam os flashes das fotografias de recordação. Entre a ausência e a memória de Maria José eu já não sou uma pessoa mas apenas um frágil e pequeno organismo sentimental.
LI E CONCORDEI COM...


MIGUEL TORGA (2)


Coimbra, 28 de Setembro de 1990 – [...] A hora é de podridão e desvergonha. E já poucos sentem sequer o cheiro pestilento do ambiente. A sociedade normalizada e climatizada ao sabor dos cabecilhas a exemplificar fidedignamente a nossa decadência. Fabricam-se todos os figurantes da farsa no mesmo molde de subserviência, ganância e hipocrisia. A execrável tirania de há pouco tinha ao menos o mérito de ser frontal, culta e respeitar o inconsciente do povo português. Esta de agora, é sorna, analfabeta, e agride e ofende diariamente o que de mais profundo e sagrado há em nós.”

AS PALAVRAS DE BENTO (2)


Isto torna o texto de Bento especialmente profético. Ao criticar a ausência de racionalidade na relação entre os seres humanos e Deus, o bispo de Roma conseguiu – sem esperar, talvez – inquietantes manifestações de irracionalidade, bastante comuns, aliás, no nosso tempo, em que as opiniões valem mais do que os factos, em que as suposições valem mais do que provas inequívocas, em que a manipulação e a ficção valem mais do que a verdade e a realidade. Nestes tempos de regressão civilizacional, isto deveria preocupar todos os homens de boa vontade. Mas não; preferimos continuar como avestruzes, enterrando a cabeça na areia.

*

Dos que atacaram Bento pelas suas palavras, tomaram especial visibilidade quantos prontamente referiram os momentos negros na História da Igreja Católica. Esqueceram (terão esquecido?) que os terroristas islâmicos, perante o texto do papa, não ameaçaram somente os católicos, mas todos os “adoradores da Cruz”, com obediência ou não a Roma. Esqueceram ainda que a hierarquia católica foi, até ao momento, a única que levou o entendimento da sua História ao ponto máximo, promovendo, depois de um exame de consciência, uma confissão pública e expressando um propósito de emenda, fundado em confiança na ajuda de Deus. A Igreja Católica é pecadora? Decerto. É constituída por seres humanos imperfeitos. Teve no seu seio homens pouco racionais. Em várias ocasiões foi “tomada de assalto” por personagens duvidosas ou por classes (a nobreza europeia, por exemplo, durante largos séculos) que, não acreditando decerto na existência de Deus, viram na sua estrutura um bom instrumento para a concretização da sua ânsia de poder ou do seu desejo de rapina.

*

Os julgadores de Bento e da Igreja merecem, por isto, uma avaliação pelos mesmos parâmetros. Vendo pecado nos outros, estarão eles isentos de manchas? Estarão dispostos a apresentarem-nas e a manifestarem sinceramente um propósito de emenda, seguindo o exemplo de João Paulo II e de Bento XVI? Terão a mesma coragem na denúncia das monstruosidades concretizadas pelas doutrinas (religiosas, políticas e/ou sociais) em que acreditam ou acreditaram? A superioridade dos cristãos sinceros não está na sua pureza, que não existe. Está, antes, na demanda da perfeição, que implica uma consciência diária dos defeitos e um propósito firme de aperfeiçoamento. Quem assim não age, por mais que se afirme cristão, nunca o será verdadeiramente – tenha o lugar que tiver na estrutura da Igreja (que, como muitos desejam esquecer, não se limita ao cume da pirâmide).

(continua)
NICOLAU SAIÃO


Por quem os sinos dobram


Os próceres locais garantem que estão perplexos e preocupados. Afivelam expressões de bons samaritanos ante mais um encerramento anunciado, que vai lançar no desemprego mais umas centenas de portalegrenses que, durante alguns anos, tomaram como excelentes as promessas trintanárias de autarcas, deputados e outros senhores que têm como missão fazer com que o desespero e a desertificação alentejana desta região não vá demasiado longe…

O inefável Ceia da Silva, deputado e dono do à-vontade que se lhe conhece; o cada vez mais surpreendente Miranda Calha que nem valerá a pena apresentar por ser suficientemente conhecido; o presidente da Câmara em exercício – sofrem a bom sofrer, pois ninguém desconhece o amor que têm a Portalegre, o carinho que sempre puseram nas suas relações com a gente da cidade e, como corolário, o respeito que têm pelo seu próprio trabalho que, como se sabe a nível nacional e até internacional, muito tem concorrido para a felicidade das pessoas desta parte da Ibéria.

Mas, coitados deles, pese às suas pendulares declarações, quando calha ou é oportuno, de que “o Alentejo tem futuro”, as contas mais uma vez estão a sair-lhes furadas: agora é a empresa Johnson Controls, que muitos tiveram (ingenuamente? esperançosamente?) como a salvadora das cada vez mais depauperadas algibeiras lagóias que, em acúmulo com outras firmas au voil d’oiseau, vai esvoaçar para Espanha.

Portalegre, mais uma vez – seguindo o habitual perceptível numa terra onde, pelo que certos observadores afirmam, cada vez mais se marginalizam os que não alinham em jogadas – aparece na televisão e nos noticiários pelos piores motivos: o do desemprego, o da deflacção civil.

Não perguntemos, como nos referia Hemingway numa frase célebre, por quem dobram os sinos. Não é preciso. Pois qualquer observador atento e sério e que não embarque em propagandas absolutamente fantasistas, como ali frutificam com terrível frequência – percebe e já entendeu que dadas as circunstancias locais e regionais existentes eles dobram, lamentavelmente e com um tom lutuoso, verdadeiramente por todos nós.

AS PALAVRAS DE BENTO


Não me surpreendeu a reacção, islâmica e ocidental, à lição de Bento XVI proferida na Alemanha. Habituados, de um lado e de outro, a uma diplomacia de falinhas mansas e de panos quentes, pós-moderna, tinham que reprovar as palavras de um teólogo que, muito mais para dentro do que para fora, não hesitou quando teve de denunciar a ausência de Deus na nossa sociedade e entre aqueles que invocam o Seu nome para praticarem actos de violência premeditada. Porque o conhecimento de Deus parte da razão e, sem ela, todo o entendimento que possamos ter do Seu caminho é errado ou pouco claro.


*

Quem se dá ao cuidado de ler integralmente as palavras do papa Ratzinger percebe que este se dirige para dentro das paredes do Ocidente e da Igreja, e só marginalmente para fora. Embora utilize o raciocínio de um autor ortodoxo, estabelecido a partir de uma leitura do Alcorão e do devir histórico do islamismo, a Bento XVI interessa o restauro da racionalidade entre os membros da confissão a que preside, tão ameaçada anda pelo relativismo de raiz nihilista e/ou positivista, que reivindica um falso multiculturalismo e uma pseudo-tolerância, que nada hierarquiza, nem mesmo os mais elementares alicerces da existência digna do Homem.


*

Infelizmente muitos e muitos não as leram – e foram os primeiros a criticá-lo, a atacá-lo, a injuriá-lo, a difamá-lo, a queimarem-no em efígie por esse mundo fora. Motivos? Cada um conhecerá os seus. Talvez ignorância, talvez preguiça, talvez preconceito, talvez maldade.
(continua)

LI E CONCORDEI COM...


MIGUEL TORGA (1)


Foia, Monchique, 4 de Agosto de 1977 – [...] Não temos civismo, não temos riquezas, falta-nos juízo. Mas deu-nos Deus um caleidoscópio corográfico único no mundo para suprir o resto. O resto que é só amargura.”
Do alto da Fóia, olhando para a Costa Vicentina.
(Bom fim-de-semana!)
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Uma geografia de afectos


Há quem diga que em Portugal não há desporto mas sim clubismo. As pessoas vivem para o seu clube, vivem com o seu clube, vivem, muitas vezes, no seu clube desde a manhã até à tarde. É no clube que tomam o café matinal e ao longo do dia vão comentando arbitragens, treinadores, estratégias e jogadores. Esta ideia de amar o desporto como espaço de privilégio para o homem se defrontar com os seus limites, ultrapassando-se nos sucessivos recordes que vai batendo, não colhe num país onde tudo se faz debaixo do calor da paixão. Pela mesma razão nos Estados Unidos da América nunca será popular o nosso futebol porque admite a hipótese de haver um empate. Ora para eles tem que haver sempre um vencedor e um vencido. Tem que haver sempre alguém que esmaga alguém. Por isso o nosso futebol não será nunca popular por aquelas paragens.
Voltando à ideia do clubismo eu tenho a ideia de que é mesmo o clubismo que ainda aguenta este frágil edifício do desporto em Portugal. Por exemplo esta semana o Sporting Clube de Portugal foi brutalmente prejudicado pela arbitragem que não viu um golo marcado com a mão nem as grandes penalidades cometidas sobre João Moutinho e sobre Liedson. Pois a minha resposta foi simples. Não barafustei, não gritei, não acusei – nem era preciso porque as imagens das televisões são muito explícitas. Então fui à secretaria inscrever o meu neto que ainda não tem dois meses. Ele é agora o sócio nº 87.588. Mais um para sentir esta geografia de afectos que vive e que luta como um leão desde 1906. Ele passa o tempo a descansar do difícil trabalho de nascer mas já faz parte desta multidão de verde e branco. Desta geografia de afectos.
COMENTÁRIOS DE VOLTA

Durante algumas horas, devido a um ajustamento deste blogue, os comentários estiveram temporariamente indisponíveis. Resolvida a situação, estão neste momento de volta.
Apontamentos estivais


KAFKA, KAVAFIS,
KANDINSKY E UMBERTO ECO


Observação e sonho. Não conheço toda a obra de Kafka, mas pela leitura dos diários vai avultando esta relação, estabelecida na escrita de um ser que tanto usa uma atenção minuciosa para captar quanto o envolve quanto deixa verter uma torrente onírica que chega a assombrar.

*

Releitura dos poemas de Kavafis, agora em edição integral portuguesa. Têm pontos luminosos realmente admiráveis. Mas (pergunto-me) andaria nos píncaros se a sua poesia não correspondesse a um certo “ar do tempo”?

*

Tarde demais? Nada se lê tarde demais. Eu só nestes dias me adentrei em Do Espiritual na Arte, de Kandinsky – com o proveito de ver confirmadas pelo passado algumas das minhas intuições. Pouparia trabalho se o tivesse lido há mais tempo? Talvez. Mas não teria agora o gosto da concordância, mas apenas o da submissão a uma opinião/descoberta alheia.

*

Deveria ser lido por todos os escritores pagantes o capítulo 39 d’ O Pêndulo de Foucault (Umberto Eco). Abre os olhos (a quem, eventualmente, os tenha ainda fechados – o que não é o meu caso...). E de olhos abertos resistiriam melhor às artes do engano que por aí andam no mundo da edição. Por que ficou Pessoa em grande parte inédito? Porque conhecia bem o logro...

ANTÓNIO JUSTO

A sugestão oportuna de um leitor amigo do "Estrada do Alicerce" (que, tanto quanto sei, não é católico, nem "praticante" nem "não-praticante") levou-me até um texto digno e clarividente de António Justo sobre a polémica em torno da lição de Bento XVI, publicado no Jornal Digital. Sugiro que o leiam com a atenção que merece.

Portalegre, Porta da Devesa.

Apontamentos estivais


FÓIA

Ir ao Algarve e não subir à Fóia é tomar a nuvem por Juno. Aí ascendi na primeira visita que fiz a essas paragens. Aí regressei neste verão, para abarcar com os olhos estoutro “reino maravilhoso”, longe de ser apenas água salgada e sol para turistas alvarinhos ou enlagartados. Conhecer o Algarve (ou pensar conhecer) só pela estreita faixa marítima é pretender abarcar um quadro só pela observação da sua moldura, com os resultados que se adivinham.

Seixal, Julho/06.
NUNO GUIMARÃES


PELA ESCRITA


1. Através dela somos divididos
e somos portadores da divisão.

2. Por ela aprendemos um país
apreendido.

3. Dela passamos para nós:
tornamo-nos, assim, subvertidos.

4. Por ela quebramos os limites
do conhecimento.

5. Má consciência nas palavras.
E nos actos.

6. Do acto à escrita, intensidade:
a escrita é o acto mais atento.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Os cães e os gatos de Tel Aviv

O insuspeito jornal diário espanhol El Mundo, pela prosa do seu jornalista António Gala revela-me num artigo intitulado Terrorismo de Estado um facto que a nossa adormecida e narcotizada imprensa não me tinha revelado. O gabinete de imprensa do governo israelita, em pleno auge da invasão do Líbano, resolveu expressar a sua preocupação pelos milhares de cães e gatos que foram abandonados pelos donos por causa desta guerra. Poderia ser humor negro mas não é. Um conjunto de publicações do Grupo Ahava chega ao despudor de apelar à colaboração e à simpatia de veterinários de todo o Mundo. Hoje tal como em 1982 quando invadiram os bairros de Shatila e de Sabra matando indiscriminadamente mulheres e crianças, crianças e mulheres, o governo israelita prossegue cegamente a sua série de crimes de guerra. Foi há 24 anos mas parece que foi ontem porque a agressão não parou. Israel é o único país do Mundo que tem aumentado regularmente a sua superfície desde que em 1948 foi criado sob os auspícios da ONU. A Jordânia, a Síria, o Líbano, o Egipto têm perdido terras e ribeiras, montanhas e planícies para o vizinho Israel. Esse mesmo Israel que insiste pelo cumprimento escrupuloso da resolução nº 1559 da ONU mas ignorou olimpicamente até agora 46 resoluções da mesma ONU. Como diz o meu amigo e jornalista Rodrigues Vaz «eles podem ganhar a guerra mas estão cada vez mais longe de ganhar a paz.» E este jornalista que nasceu em Moimenta da Beira até tem origem judaica. Mas não se deixa narcotizar seja pelo gabinete de imprensa do governo israelita seja por outro qualquer gabinete de imprensa.

HENRIQUE MONTEIRO

“[...]
O negacionismo não é novo na História, e sempre esteve ao serviço de uma ideologia. Os mesmos que negavam a barbaridade dos regimes comunistas, logo que a realidade histórica impôs a verdade, viraram as baterias contra a superpotência sobrevivente: ‘Afinal, são todos iguais’ – dizem. O comunismo desprezava os seus cidadãos, assassinava-os... mas o mesmo fazem os EUA.
Esta grande mentira torna-se central para apaziguar consciências dos que, no passado, encobriram, omitiram ou apoiaram as barbáries.
Só assim se compreende como ainda há gente disposta a crer e a jurar que o 11 de Setembro tenha sido obra dos americanos... contra eles próprios. O caso seria risível se, progressivamente, através de sítios na Internet, de textos anónimos e de alguns ligados, por exemplo, a militantes comunistas e de outras formações de esquerda, esta teoria não fosse cada vez mais propagada. E se, para cúmulo, a própria televisão do Estado – quase sem protestos – não a tivesse erigido como uma das possíveis sobre o 11 de Setembro ao passar um filme sobre pretensa conspiração.
Se a opinião pública e a comunicação social não reagem a esta inacreditável manipulação poderemos tornar-nos reféns de mais uma falsificação histórica – uma das mais conseguidas artes, aliás, do estalinismo.”


(Expresso, 16/9/2006)

NICOLAU SAIÃO

Os verbos irregulares

Science-Fiction


- Pois bem, meu senhores - disse o mais velho, que parecia ter ascendente sobre os outros - Façamos então o ponto de situação...o ponto em que estamos de momento. Pode começar você, Lestat...
- De momento, meu caro Vlad - disse repuxando a boca bem desenhada o jovem louro e atlético - temos gente nossa bem motivada em todas as cidades do globo. O discurso que lhes é comum insiste num ponto: o nosso direito a dispormos dos nossos ritmos místicos, da nossa… "ideologia" se assim me posso exprimir. É a tecla em que temos batido sem desfalecimentos. A questão de sermos uma comunidade vilipendiada, perseguida... discriminada... ofendida. Creio que me faço entender!
- Bem visto! - ronronou Vlad Tepes com um luzir nos olhos ardentes - E a nível de jornais, de gente que faz a diferença...como páram as modas? Você, Sagramor, pode elucidar-nos?
- É p'ra já, meus amigos - preambulou o negro de estatura elevada e de musculoso recorte na sua voz cantante e fascinadora - Para já, os homens de negócios que estão à frente desse sector já se juntaram em grande parte a nós. Intuiram que têm de ser compreensivos, modernos, que tem de haver tolerância com o nosso…colectivo. E na classe política e intelectual também existe um equilíbrio paralelo...Alguns dos homens de topo e mesmo outros medianos já entenderam a razão dos nossos… direitos. E são partidários do diálogo: já se começaram a desobstruir reuniões… O próprio Jorge, o próprio Soa…
- Não me venha com esses nomes! – cortou do lado a mulher de estatura coleante, sensual, de cabelos e olhos negros retintos, agitando a mão de unhas longas e pintadas de vermelho - Esses estão para onde lhes dá a brisa, Sagramor!
- Não seja exagerada, Carmilla... - disse Vlad Tepes censurando-a com algum vigor - Esse tipo de operadores sociais pode ser bem útil à nossa causa. Os fala-baratos também têm lugar na nossa demanda, não se esqueça. Tornam as massas maleáveis, compreendeu? E quanto ao seu sector? Isso é que interessa, o resto...é fantasia!
- Bom - disse Carmilla von Karnstein - O elemento feminino vai-se portando como se espera... Um pouco de moda, um pouco de tratamento televisivo, um bocado de romantismo e de doçura para adequar as meninges...Percebem?
O jovem Lestat riu com gosto, pondo à mostra os dentes brancos e fortes como os de um lobo viril.
- Certo, cara Carmilla, certo. Boa jogada! As senhoras também terão um grande papel nesta opereta... A paz, a brandura de coração...O idealismo… Também o usei com esmero lá nos lindos Estados do meu sul natal. Parece que foi há três dias…e já lá vai uma eternidade!
- Porque bem vêem, meus amigos - disse Vlad Tepes com discernimento - O importante é levar isto, por enquanto, com mansidão e equilíbrio. O que se ganha com violências bruscas junto do grosso da opinião pública? Isso devemos deixar, quando fizer falta, para as unidades de combate...Elas sabem como agir. Quanto a nós é irmos pela diplomacia. De contrário ainda nos aparece aí de novo esse metediço, esse violento do Van Helsing e as suas exagerações. Não acham?
E na sala mergulhada em amena penumbra criada por pesados reposteiros de veludo escarlate, em volta da magnífica mesa de carvalho escuro, as cabeças dos confrades acenaram afirmativamente, como se fossem uma só.

(desenho de NS)
Apontamentos estivais

UM INDIVÍDUO


Um indivíduo – com razoável protecção política e visibilidade num concelho do norte alentejano – conseguiu, pelo que disseram os jornais, andar 30 anos a leccionar sem qualquer curso, chegando ao cargo de director de uma escola. Descobriu-se agora. Longe de ser um caso isolado, é um bom indicador do ambiente geral desta região e, também, do país – onde só se condenam os ladrões que são apanhados e os vigaristas que não chegam a chicos-espertos, onde se verga a espinha ao poder por leviandade ou por medo, seja ele político, judicial, económico ou social.

Aljezur, Monte do Priorado
EDUARDO GUERRA CARNEIRO

três poemas


MERCEARIA

Nos lugares se encontram os vizinhos,
para buscar açúcar ou sabão.
Discutem preços e levam raminhos,
de salsa, coentros e agrião.
Cirróticos ainda buscam lenitivo
num chazinho do Gerez,
de hipericão. O rol da mercearia
não é definitivo – importante é a receita
do doutor. O primeiro assomo
de invernia para alguns é um ar. Choram
depois viúvas, encostadas às tábuas
do balcão. Tocam os sinos
no convento em frente:
meninas cegas em lento caminhar.


GATO


Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto,
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.


RUY BELO

É no Café Nacional, em Vila do Conde,
e eu converso com Ruy Belo, nos anos
sessenta. Não é tempo dele avançar
em longas bebidas e os próprios Beatles
não gravaram ainda o álbum do Sargento Pimenta.
O Poeta bebe apenas na chícara o quente
cimbalino, enquanto espera a Teresa,
em casa dos pais, na doçaria ao lado.
É no Café Nacional, em Vila do Conde,
em domingo de bola na telefonia
do balcão. Ele fala-me das palavras
sábias do poema mas eu não sintonizo
e, ouvidos moucos, desligo, desconfiado
que são apenas palavras de beato.


(poemas retirados do livro Contra a Corrente, editado em 1988 pela & etc.)

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


O dedo mindinho da mão esquerda

De vez em quando acontecem pequenas coisas que, percebemos depois, não são coisas pequenas. Pode este pacato cidadão passar um dia cheio de dores no dedo mindinho da mão esquerda. A origem desta dor intensa deve ser o aumento da gota, uma doença que no meu tempo de criança era uma doença dos ricos. Eu nunca fui nem serei rico mas acabo por ter uma doença de ricos. De repente lembrei-me do meu avô José Almeida Penas que era carpinteiro e tinha o dedo mindinho da mão esquerda completamente ancilosado. De vez em quando o meu avô dizia ao doutor Bertolino (o único médico numa zona de mais de vinte quilómetros) que ia cortar o dedo com uma enxó. Claro que não passava de uma ameaça nunca concretizada. O dia está cheio de sol, a vida corre, há uma brisa fresca no meio do esplendor do sol mas o dedo mindinho da mão esquerda espalha incomodidade por todo o corpo. É um sentimento estranho. De repente sinto-me mais perto do meu avô, estranhamente perto, eu que tenho 55 anos de idade e que ouvi o meu avô dizer muitas vezes que cortava o dedo com uma enxó. O doutor Bertolino sorria, a minha avó resmungava, eu não percebia nada mas agora começo a perceber. Não é o bilhete de identidade que nos dá a entender que estamos velhos. São estes pequenos sinais do corpo, estas pequenas intuições da alma. São estas dores que se espalham, intensas e profundas, numa espécie de máquina sentimental a projectar memórias. É tudo isto que nos explica de modo implícito e não explícito que o nosso tempo está a passar cada vez mais veloz e nós cada vez mais sem tempo para o acompanhar na sua velocidade. E o dedo mindinho da mão esquerda continua a doer.
Apontamentos estivais

NOVOS BÁRBAROS

Quantos anos bateram à porta do Império Romano aqueles que, depois, o desagregariam? Assim sinto o cerco do fundamentalismo islâmico e da demagogia estalinista sul-americana ao mundo ocidental ou ocidentalizado. Roma sucumbiu devido às sementes que foram acolhidas e, até, desejadas pelos seus cidadãos. A sociedade em que vivemos está ameaçada pelo relativismo que não assume uma proposta moral e ética credível e promove uma pseudo-tolerância que não passa de cedência perante monstruosidades que violam a dignidade humana.

Apontamentos estivais


CULPADOS E INOCENTES

Quando o poder cai, de algum modo, nas mãos do fanatismo, a paz esboroa-se, o sangue e o medo alastram como uma mancha de óleo. E o medo, quando não paralisa, reage sempre pelo ataque, para que apareça transfigurado em força e resistência.
Terá existido exagero na reacção de Israel aos ataques dos terroristas do Hezbollah? Poderia (e poderá) mostrar fraqueza perante as provocações e os crimes daqueles que não desejam uma disputa religiosa ou vagamente territorial, mas, tão só, a pulverização de um país?
O maior drama é sempre o dos inocentes, que acabam por morrer dos dois lados, sem terem coisa alguma a haver directamente da guerra. O sangue deveras inocente (e não pseudo-inocente) tem sempre um alto valor, seja de um israelita ou de um libanês, de um americano ou de um iraquiano, de um palestiniano ou de um britânico. Um conflito militar ou de outra índole, mesmo quando justo, nunca dispensa – infelizmente – a injustiça da violência exercida sobre seres pacíficos individualmente considerados. Desde que o homem é homem e recorre à pequena ou grande guerra para resolver as suas querelas.
Se a morte de um inocente é sempre injusta, há contudo graus diferentes de culpabilidade no agente activo desse acontecimento funesto. Não podemos avaliar da mesma forma o assassínio deliberado de seres humanos inofensivos (como o praticado pelos mais variados grupos terroristas, sob a capa de ideologias “religiosas” ou “revolucionárias”) e a morte não-planeada de homens e mulheres que estão no sítio errado à hora errada, quantas vezes como consequência da estratégia de um dos beligerantes, que não hesita sacrificar o seu povo para atingir bons resultados propagandísticos. Até no direito aplicado aos indivíduos existe uma grande distinção entre o homicídio voluntário, o homicídio involuntário e o homicídio em legítima defesa.
JOSÉ CUTILEIRO

“[...] discussões de ‘choque de civilizações’, de ‘diálogo de religiões’, das ‘causas sociais’ que levem gente nova a tornar-se terrorista, pouco uso têm [...]. O combate não é entre fés, é entre ideologias; o terrorismo islâmico não quer salvar almas, quer conquistar poder. Osama Bin Laden não nos ameaça por ser um muçulmano sunita devoto, ameaça-nos por ser um ideólogo, um propagandista e um estratego que nos quer ditar regras de vida insuportáveis. Nos propósitos e nos métodos, ele e a sua gente têm mais parecenças com Lenine e o Comintern do que com os chefes de movimentos religiosos que grassaram, aqui e além, durante o século XX. O paralelo com o marxismo-leninismo é sugestivo: evocação fantasiosa de um passado dourado, versão errada mas empolgante do sentido da história, promessa falsa de paraíso futuro (sendo os proletários de todo o mundo, supostas vítimas do capitalismo, substituídos pela nação árabe, suposta vítima do Ocidente). Tal como Lenine, Osama convence muita gente; o engano causará muito sofrimento e levará muito tempo a desfazer. A Europa tem de aumentar o seu poder, saber bem o que quer e reforçar a sua aliança com os Estados Unidos.”

(in Expresso, 9/9/2006)

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


O motorista da carreira 56

Não há muitos fiéis na missa das oito da manhã na Catedral de São Paulo em Londres. É domingo e para muitos é madrugada. Uma senhora entrega-nos o desdobrável com as leituras do dia e convida-nos a ir para a capela mór onde estamos francamente melhor instalados. Ingleses poucos, alguns turistas, o ofertório decorre com rapidez e só a homilia se alonga um pouco. No fim da liturgia o sacristão avança com a sua vara à frente do sacerdote e estaca na zona limite da capela mór. Então o presbítero cumprimenta um a um os fiéis, desejando a todos um bom dia. Como eu precisava de ter um bom dia... A minha filha estava a dar à luz um rapaz nos Hospitais da Universidade e eu à espera de uma chamada telefónica que não chegava. Sorridente o motorista do autocarro 56 «faz tempo» junto à igreja de São Bartolomeu e pergunta-nos de onde somos. Pergunta também se gostamos de magia. Claro que sim, foi a resposta. E faz para nós uma magia com uma navalha que dum lado é preta e doutro é branca. Mal ele sabe que eu sou de uma terra de navalheiros, Santa Catarina. E enquanto os novos assassinos de Beirute matavam mulheres e crianças tal como os velhos carniceiros tinham feito em 1982 em Shatila e Sabra eu, egoísta, e sem ser capaz de me preocupar com mais nada, só pensava no bebé que estava a nascer, o meu primeiro neto. Isto mesmo depois de saber que em Beirute tem havido muitos abortos espontâneos em mulheres apavoradas com as bombas que destroem pontes e casas, estações de serviço e estradas, quintas e armazéns de víveres. E crianças para que não cheguem a homens e mulheres para que não tenham filhos. O motorista do autocarro 56 continuava a sorrir.



Aljezur, igreja de Nossa Senhora de Alva.
Fernando Echevarría


ORAÇÃO PARA ANTES DO ESTUDO


Dai-nos, Senhor, um coração humilde.
A inteligência de aceitar agora
que só a si o estudo se ilumine
e nele se esqueça o estudante. A cópia
do que estudarmos em nós viva, a fim de
que apenas o estudado seja porta.
E luz aberta por onde entrem livres
aqueles cuja alegria e obra
de compenetração que, sem limites,
se entrega. Fica com o seu dentro fora.
Ilumina, Senhor, a inteligência de ir-se
esquecendo cada qual no que se mostra.”

(in Epifanias, recentemente editado pela Afrontamento)

Apontamentos estivais


ELOGIOS A SALAZAR


Não me contive e vi-me obrigado a responder – a meter as cabras no curral, como se diz na minha terra – a um indivíduo que, na papelaria da minha rua, elogiava Salazar.
Mas, no íntimo, compreendi-o (sem aceitar o seu arrazoado): nada melhor para exaltar os ditadores, mesmo os mais sinistros, do que políticos venais e demagógicos, como aqueles que agora nos governam.

Portalegre, igreja da Misericórdia.

Apontamentos estivais


GÜNTER GRASS


Anda meio-mundo muito indignado com o passado nazi de Günter Grass, agora revelado por ele próprio. Sendo reprovável a sua participação nas forças hitlerianas, ela não diminui nem um pouco a qualidade literária da sua obra. Pena é que alguns dos acusadores não sigam o exemplo do escritor alemão e revelem, mesmo tarde e a más horas, a sua ligação operacional ou ideológica a doutrinas políticas ou regimes tão letais (ou mais) quanto o nacional-socialismo. Não o fazem, talvez, porque ainda comungam das suas “ideias antigas” e não desejam "pôr o rabo de fora".

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


A explicação das coisas

Há quarenta anos quando terminei o curso geral do comércio e me comecei a interessar pela Comunicação Social era costume, entre as pessoas da arte, ouvir dizer esta frase: «A TV mostra, a rádio conta, o jornal explica». Nesse tempo os jornais desportivos eram trissemanários, tinham o formato broadsheet e, como saíam só três vezes, tinham mais tempo para serem feitos. Por isso eram melhores. Agora há três diários desportivos e, como cada um tem 44 páginas, temos a bonita soma de 132 páginas diárias. A solução é, na aparência simples, mas os resultados são desastrosos. Não havendo tema para preencher 132 páginas inventa-se assunto. E inventa-se da pior maneira. Recorrendo à baixa intriga. Se um guarda-redes é preterido pelo seleccionador nacional vão fazer perguntas ao outro guarda-redes e não ao seleccionador. Nasce uma guerra de palavras. Se o presidente de um clube afirma que o novo presidente da Liga de Clubes foi eleito para travar o processo Apito dourado que corre no Tribunal de Gondomar, então em vez de chamarem a atenção para o erro crasso do presidente do clube que mistura alhos com bugalhos com intenções de desviar o foco dos problemas do seu clube para um assunto que corre os seus trâmites num Tribunal e não na Liga de Clubes, aparecem artigos a estranhar que o dito presidente da Liga não responda ao presidente do clube. Tudo isto acontece no dia em que o nome de Maria Margarida Ribeiro dos Reis desaparece do cabeçalho do jornal A BOLA. Com ela desaparece um certo tempo português quando os jornais existiam para serem a explicação das coisas e não a actual carne para canhão que enche todos os dias 132 páginas de vazio e de sem sentido.


(Lido aos microfones da RDP Açores em 25-8-2006 às 12 horas)
DE REGRESSO

Setembro chega - e eis-nos de regresso. Ao trabalho, aos miúdos, aos graúdos, ao tempo profano e repetido. Durante um mês o tempo foi sagrado, de interrupção, de reinterpretação do mundo, de festa e de religação.
Eis-nos de regresso. Sejam, de novo e sempre, bem-vindos!