AS PALAVRAS DE BENTO (4)Se as palavras de Bento XVI coincidem com as palavras de muitos cidadãos de boa vontade, inclusivé muçulmanos, como podemos então compreender tanta polémica? Se lermos cuidadosamente a afirmação do imperador bizantino Manuel II, perceberemos o que está por detrás de tudo. Quando o Paleólogo se dirige ao seu interlocutor persa convidando-o a mostrar “
o que Maomé trouxe de novo” e acrescentando que “
só encontrar[á] coisas más e desumanas, como o seu mandamento de difundir pela espada a fé que pregava”, não se refere propriamente à fé islâmica, mas implicitamente à manipulação política do nome de Deus (que o utiliza como estandarte guerreiro), consciente de que “
Deus não ama o sangue”, mas a misericórdia e a mansidão. Racionalmente, Manuel não refere “
Alá” ou “
Islão”, mas Maomé que, de facto, usou a guerra para alargar os territórios que dominava, abrindo caminho para a inclusão no livro sagrado dos muçulmanos de uma norma apelando à “
guerra santa” como instrumento não de conversão religiosa, mas de domínio político e geo-estratégico. Só assim se explica a relativa tolerância inicial dos conquistadores em relação aos conquistados. Não lhes interessava tanto a difusão da mensagem de Alá, mas sobretudo o domínio do território pelas armas, embora o pretexto apresentado fosse o da “
guerra santa”. Ameaçado pelos otomanos, o imperador de Constantinopla sabia onde residia a raiz do problema que, pouco tempo depois, aniquilaria o seu império. Não estava na religião, mas no entendimento irracional e/ou na manipulação política da mensagem de Alá, iniciados por Maomé, segundo contam as crónicas muçulmanas e os livros de História. Se a violência exercida em nome de Deus é ilegítima, como referiu e bem David Munir, então somos obrigados a reconhecer que o profeta do Islão terá sido, ele próprio, infiel à palavra que proclamava. Bento XVI não vai tão longe, mas afirma algo que deveria ser consensual: para que exista um diálogo inter-religioso frutuoso, é preciso que todas as confissões abdiquem do princípio da “
guerra santa”.
*
Já em 1991 o então cardeal Joseph Ratzinger, numa obra intitulada
A Igreja e a Nova Europa, diagnosticara – num pensamento lúcido, contra a corrente – as causas da “
compreensão” do “
ideal” terrorista, nascida em certos sectores políticos ocidentais de uma “
simpatia filosófica” pelo carácter “
revolucionário” dos praticantes de uma violência indiscriminada e deliberada. Nas mesmas páginas aponta que o trabalho legítimo de edificação de um mundo pacífico não pode levar a novas formas de violência que construam não a paz desejada, mas novas formas de guerra ainda mais violentas, física e psicologicamente. É que certos aspectos do “
pacifismo” são muito perigosos, por serem condescendentes e quase sempre tolerantes em relação a muitas formas de totalitarismo, constituindo quantas vezes uma frieza em relação ao sofrimento de tantos seres humanos.
*
Que tem tudo isto a ver com o tempo em que vivemos? Muito, infelizmente. Vivemos, como é sabido, sob a ameaça de um terrorismo expansionista que, invocando o nome de Deus em vão, tem em vista dois objectivos, expressos em vários documentos fidedignos: 1) recolocar sob domínio islâmico todos os territórios que alguma vez na História foram conquistados por muçulmanos (isto inclui a Península Ibérica, a Grécia e todos os Balcãs); 2) destruir, pela violência indiscriminada e pelo medo, o modo de viver ocidental, sobretudo a democracia e os direitos do Homem.
*
Só venceremos a monstruosidade do terrorismo e impediremos a concretização dos seus objectivos se rejeitarmos a cobardia se os denunciarmos sem receios nem calculismos, utilizando os instrumentos da racionalidade, sendo capazes de estabelecer uma hierarquia de valores e uma proposta ética que rejeite o relativismo pós-moderno que tudo aceita. Como refere Joseph Ratzinger no seu ensaio: “
Os aspectos positivos da modernidade devem ser reconhecidos sem reservas: estamos todos muito gratos pelas possibilidades grandiosas que esta abriu ao homem e pelo progresso em humanidade que nos permitiu. [...]. [...] apesar de toda a alegria experimentada face às possibilidades abertas à humanidade, vemos também as ameaças que emergem dessas possibilidades e devemos perguntar-nos como podemos ultrapassá-las. Só o conseguiremos se a razão e a fé se unirem de uma nova maneira [....]. Só assim passaremos a ser capazes de um verdadeiro diálogo entre as culturas e as religiões – um diálogo de que temos necessidade urgente. No mundo ocidental, predomina largamente a opinião de que só a razão positivista e as formas de filosofia que dela derivam são universais. Mas as culturas profundamente religiosas do mundo vêem nessa exclusão do divino da universalidade da razão um ataque às suas mais profundas convicções. / Uma razão que é surda ao divino e que relega a religião para o nível das subculturas é incapaz de participar no diálogo das culturas. [...] / O Ocidente é desde há muito ameaçado pela sua aversão às questões que sustentam a sua racionalidade e, por isso, só pode sofrer grandes danos. [...] ‘Não agir segundo a razão, não agir com o ‘logos’, é contrário à natureza de Deus
’, declarou Manuel II ao seu interlocutor persa, a partir do seu entendimento cristão de Deus. É para esse grande ‘logos
’, para essa imensidade da razão, que convidamos os nossos interlocutores no diálogo das culturas. [...]” Esta posição viu-se confirmada e esclarecida nas palavras que, no passado dia 25 de Setembro, dirigiu aos embaixadores dos países islâmicos, tanto na passagem em que cita Karol Wojtila – “
[…] o respeito e o diálogo requerem a reciprocidade em todos os domínios, sobretudo naquilo que respeita às liberdades fundamentias e mais particularmente a liberdade religiosa” – quanto no momento em que afirmou ser “
imperativo que cristãos e muçulmanos se comprometam em conjunto para enfrentar os numerosos desafios que se apresentam à humanidade, nomeadamente naquilo que respeita à defesa e promoção da dignidade do ser humano e dos direitos que daí derivam. Quando crescem ameaças contra o homem e contra a paz, ao reconhecerem o carácter central da pessoa e trabalhando com perseverança para que a vida seja sempre respeitada, cristãos e muçulmanos manifestam a sua obediência ao Criador”.
*
Tudo isto me recorda alguns escritores europeus que, contra a corrente dominante, têm diagnosticado na sua obra o caminho da sociedade ocidental em direcção às margens do abismo. Conto, entre eles, a jornalista Oriana Fallaci e filósofos cimeiros, como Fernando Gil e Fernando Savater. Este último, no seu livro
Os Mandamentos no Século XXI, apresenta ideias que, embora com nuances distintas, me parecem complementares das defendidas pelo papa Bento XVI. Com elas termino este conjunto de apontamentos: “
Quando vivemos numa sociedade multicultural, temos de assumir que existe o direito a ter-se religião, a terem-se crenças, e isso comporta o facto de se terem que suportar também alfinetadas por parte da realidade. [...] / Mas isto é, por outro lado, acompanhado de uma leviandade que é perceptível por toda a parte e que se exprime através da máxima que diz: ‘todas as opiniões são respeitáveis’. O que é um disparate. Nem todas as opiniões são respeitáveis. Se assim tivesse sido, a humanidade não teria podido dar um único passo em frente. Não se podem respeitar as ideias totalitárias, xenófobas, racistas, exclusivas, que violem os direitos humanos elementares. [...] / Que respeito merecem as ideias por detrás das quais se acoitam os terroristas de diferentes sinais? [...] / [...] Não podemos respeitar os desrespeitadores.”