JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


A voz de Ana Paula


Por um erro semântico para mim ainda inexplicável há quem chame ao timbre de uma determinada voz o metal da voz. Ao ouvir a voz de Ana Paula – intensa, alta e veemente – percebe-se o erro, percebe-se que não há nada de metálico no esplendor do seu som. Tudo na voz de Ana Paula é redondo, cheio e doce, tudo nos lembra as ondas e a sua espuma branca desmaiada nas praias da Arrábida, tudo nos recorda o murmúrio oceânico, poderoso e antigo de onde nasceram as partituras de todas as orquestras do Mundo. A voz de Ana Paula transporta no seu volume a força da água, a veemência de um lugar líquido que é origem da vida, não apenas da vida individual mas também das civilizações que, sabemos hoje, nasceram e cresceram todas à beira dos rios e dos lagos. A voz de Ana Paula tem sete elementos: desenho, volume, movimento, cor, luz, eloquência e musicalidade. Na janela do comboio que entre Cascais e Lisboa serpenteia entre terra e água, Ana Paula fixa o olhar nas ondas que no lugar da Gibalta quase tocam o metal da composição em marcha. A terra à esquerda é o símbolo da rotina, da monotonia e da vida parada; o mar à direita é o símbolo das viagens, do inesperado, do lugar onde os dissabores, os desgostos e as amarguras podem ser objecto de consolação e purificação. No lugar entre terra e água, a voz de Ana Paula surge como um intervalo feliz que teima em elevar o seu murmúrio por cima do ruído da mesquinhez quotidiana. E não desiste de cantar uma canção que ninguém ouve (porque Ana Paula a canta para dentro) num sussurro sempre doce, sempre cheio e sempre redondo. A voz de Ana Paula é a impetuosa voz da água contra o arrastado cinzento da voz da terra.

2 comentários:

Luis Eme disse...

Todo este texto está brilhante, mas a dicotomia entre a terra e o mar, está perfeita.
Até porque para lá do horizonte, está tudo o que o infinito pode esconder ou guardar...

100smog lda. disse...

TB gostei bastante do texto escrita fluente e bastante interessante