Antologia “Fanal”


DINIS MACHADO


The high window

Há pombos esquecidos nas estátuas
desta cidade antiga, naufragada.
Mastros de sombras escrevem o teu nome
e em cada letra reconheço a madrugada.

Mulheres e homens, enlaçados de cansaço,
dormem um sono fundo, com raízes.
Das margens deste sono se levantam
as pedras das palavras que não dizes.

Foge o mar dos meus dedos entre a noite
e a noite é uma canção que te procura.
Nos meus olhos ardem estrelas encharcadas
que rodeiam de azul a tua alma.

Cada esquina é um cais à tua espera.
Faróis e candeeiros chamam por ti.
Como um sonho deslizo e permaneço
na rua da janela onde te vi.

Finalmente os pombos são largados,
partindo desta estátua que tu és.
Parto nas tuas asas. Deixo aqui
este poema que te beija os pés.


(nº 11, 23/3/2001; na imagem, uma foto de Dinis Machado, por Augusto Cabrita)
A FALTA DE VISÃO DO GOVERNO

A crónica que José Gil hoje assina na Visão tem o dom de tornar claro o olhar que muitos portugueses já lançam sobre o governo de José Sócrates - e são cada vez mais... mesmo entre aqueles que votaram no PS nas últimas legislativas. Merece ser lida com muita atenção. Aqui fica um extracto:

"Este Governo não tem uma visão para Portugal. Terá uma ideia da 'modernização', ideia tecnocrática e funcional. Uma visão implica saber articular as diversas políticas sectoriais segundo uma linha coerente e consistente com o objectivo de criar novas condições de subjectivação do homem português. [...]
[...] que ideia têm os nossos governantes dos portugueses que querem fazer nascer com a modernização do País? Nisso, parece que não se pensou; e que nada se pensa para além da 'auto-estima', esse chavão vazio, produto de uma mentalidade voluntarista e tecnocrática. Que jovens portugueses sairão das nossas escolas modeladas por professores deprimidos, abatidos, desinvestidos? Que cidadão futuro se procura suscitar com a reforma da Justiça e da Saúde, para que novas práticas de cidadania?
A falta de visão deste Governo é mais um factor decisivo que limita o alcance das reformas. A drástica política economicista impede de pensar na alma, esse arcaísmo que passará em breve para a secção dos supranumerários. Não chega dizer que há vida para além do orçamento, é preciso convencermo-nos que a vida deve ditar e atravessar o orçamento. Ou o nosso objectivo limitar-se-á a 'sair da cauda da Europa' a todo o custo, para marchar na linha da frente, mas com a alma de zombies do neocapitalismo global?"

Do outro lado deste panorama temos um partido liderado por Marques Mendes, que não regateia elogios ao soba madeirense nem se coibe de apresentar a "democracia" e o "desenvolvimento" da Madeira como um exemplo para o país. Por estas e por outras me vou tornando, cada vez mais, um sem-abrigo político.

DESPORTO E LITERATURA
em Castelo de Vide

No próximo dia 1 de Julho, sábado, pelas 18h30, decorrerá na Biblioteca Laranjo Coelho, em Castelo de Vide, uma sessão subordinada ao tema "Desporto e Literatura", que contará com a presença do poeta José do Carmo Francisco, organizador da antologia O Desporto na Poesia Portuguesa, e de Ruy Ventura.
No decorrer da mesma será apresentado o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação, recentemente editado pela Mastigadores do Mundo, o qual parte da dissertação de mestrado em Literatura Portuguesa Contemporânea de Ruy Ventura, defendida em Outubro de 2001 na Universidade Nova de Lisboa.
Será uma honra contar com a vossa presença!

Retábulo (3)


a moldura


sangue – ou apenas tinta
sobre os olhos, na transparência
do vidro? há cortes
na alma de quem pinta
e de quem vê, feridas
que ninguém sutura
nas profundezas da alma.
na moldura, a falsa morte
tenta dissolver
a morte verdadeira.
morremos ambos no silêncio
da tarde. morremos
ambos.
– só assim conseguimos
esperar.


[Frida Kahlo]
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

As canadianas voadoras
de Fábio Paim

Ao fim duma maratona de 36 jogos que começou no dia 26 de Agosto de 2005, o Sporting tornou-se campeão nacional de juniores deixando o Boavista a seis pontos. Logo que terminou o jogo um espectador muito especial deste decisivo Sporting-Boavista saltou para o relvado e juntou-se ao júbilo dos companheiros. Era Fábio Paim com as suas canadianas voadoras.
Desde as Escolas, os Infantis, os Iniciados, os Juvenis e até aos Juniores, ele sabe como as defesas adversárias fazem com que as suas pernas sejam vítimas ora de tesouras e ora de tenazes. Uma vez rasgaram-lhe os calções; agora rasgaram-lhe um joelho. Daí as canadianas que voavam pelo ar ao lado das garrafas do massagista, ao lado das camisolas, ao lado dos calções. Tudo servia para festejar um campeonato nacional de juniores num ano especial em que se junta aos de iniciados e de juvenis. Impedido de jogar devido a uma lesão, Fábio Paim festejou este campeonato com as canadianas. Numa tarde de coisas insólitas, as canadianas voadoras de Fábio Paim foram o outro lado da festa. Primeiro a multidão que deixou a transbordar a estrada da Academia Sporting à nacional nº 4. Depois o ambiente electrizante que só a paciência dos guardas da GNR de Alcochete conseguiu que não transbordasse em incidente. Por fim o grupo de crianças que tomou conta do relvado nº 1 brincando com uma pequena bola enquanto os campeões na piscina em vão procuravam o treinador Luís Martins. As canadianas voadoras de Fábio Paim foram o mais insólito dos registos dessa tarde. Atiradas ao ar, elas eram um troféu. Troféu, bandeira, emblema e memória dum campeonato a atravessar dois anos civis, muitas lágrimas e muito sangue pisado.

Antologia “Fanal”


JOÃO CANDEIAS


sobre a planície

assim com o sempre virgem
primeiro olhar, me chamaste
com tua voz cálida de planura
como um pedido de auxílio
para o minuto que, seguinte,
não saberás nunca onde acaba
acatar então esse travelling sobre o trigal
porque aqui estou também descobrindo
o lento movimento do calor
do ventre da terra, o tremor
das linhas de fuga.
linhas de fuga que nos mantêm firmes
à rigidez do solo.
bebe agora o fino e raro rio que percorre
o teu sempre virgem primeiro olhar
e sacia o teu corpo e o meu
de quem reclamas o futuro.
pela madrugada uma jovem multidão
invade as casas vazias
salta sobre as metástases
dos muros velhos
conta os instantes
que não saberás nunca onde acabam
e habita a dor da pedra que cobre de angústia
a noite e o silêncio

(nº 11, 23/3/2001)


Nicolau Saião

É assim que se faz a Estória

Existe numa cidade alentejana um estoriador de gabarito: o Prof. José de Pitta Raposo.
Uma lenda maliciosa tem tentado estabelecer que este homem de estudo não existe.
Estamos em condições de infirmar essa arbitrária congeminação. Pitta Raposo é bem real. E os seus livros provam-no à saciedade.
Descendente de uma das mais excelsas famílias lusas, os Azeredos Curitiba, Pitta Raposo deu à estampa diversos tomos de alto valor cerebral.
Começando por uma pequena homenagem ao seu trisavô (Anatólio Raposo, cozinheiro inspirado e patriota) incursionou depois pelo memorialismo com Memórias de Antão Raposo, meu primo em terceiro grau, o qual lhe valeu elogios do renomado crítico espanhol Juan Capullo Follante e do também historiógrafo local A. Tadeu Rabecaz.
Além de outros mais, cheios de originalidade e robustez (a saírem) e tendo sempre como protagonistas personalidades da sua multifacetada família.
O poeta e titular Alfonso Bilharoz de Moncada, grande amigo de Raposo, dedicou-lhe este poema assumidamente laudatório - o que não lhe retira valor descritivo e lírico como se poderá comprovar pela sua leitura.


Perfil

É arteiro como um cigano
elegante e donairoso
- um magnífico fulano
o grande Pitta Raposo!

Melífluo e insinuante
dá de si boa impressão
e embora seja um tunante
é um belo cidadão!

Sabe aguentar a parada
para levar tudo a eito
- entra em qualquer titarada
desde que lhe dê proveito.

Um fidalgote fogoso
mexido até dizer basta
- o grande Pitta Raposo
o que ele gosta da pasta…

Com a mão esquerda arrebanha
com a direita arrebata.
O que faz falta é ter manha,
o que é preciso é ter lata!

É real homem de bem
nada há que lhe não valha:
pois seguro prestígio tem
entre outros da mesma igualha

Mesmo sem obra imponente
que o venha a cobrir de louros
vai deixar um nome ingente
aos lusitanos vindouros

e a Estória registará
o seu nome valoroso
mesmo sendo a escrita má.
- E viva o Pitta Raposo!

(ilustração de Nicolau Saião)

Retábulo (2)


a escuridão

há lâmpadas no corpo
quando as imagens nascem de outra terra.
a luz atravessa a carne.
nasce nas veias
para separar do mundo
o que pertence ao mundo.
há olhos vivos
(no cordeiro que adormece?),
sangue no rosto, nos dedos, nos pés.
– se a escuridão não existisse
como escutaríamos a voz
que rompe os tecidos?

[Francisco de Zurbarán]
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

O saco do pão na porta

Poderia dissertar sobre o facto de ter descoberto que a heroína do povo alentejano, Catarina Eufémia, nasceu no mesmo dia em que eu nasci – 13 de Fevereiro. São curiosidades tal como saber que Agostinho da Silva, o poeta e filósofo, também nasceu a 13 de Fevereiro. 13 de Fevereiro tal como o Artur Jorge, futebolista, treinador e autor de um livro de poemas intitulado Vértice da Água. Mas não.
Hoje gostaria de salientar um caso por mim vivenciado nos últimos tempos: perto da minha casa, mais precisamente na Rua do Teixeira, existe um restaurante que se chama Adega do Teixeira onde todos os dias alguém deixa um saco de pão pela manhã. Já tenho reparado que ao lado do restaurante há uma residencial muito frequentada por estrangeiros que olham para o saco de pão com evidente estranheza. Mas encolhem os ombros e seguem em frente com as suas mochilas e a sua sede de descoberta de uma cidade com muita luz e com sete colinas.
Para mim o significado mais profundo desta história é que ainda não está tudo perdido, ainda é possível estar um saco de pão pendurado numa porta de um restaurante durante uma manhã inteira até que o gerente do estabelecimento abre a porta e recolhe o saco de pão. Vivemos um tempo difícil em que tudo ou quase tudo pode ser roubado mas o pão ainda goza de um certo prestígio pois, todos o sabemos, a história do pão é a história da Humanidade. No meu tempo de criança quem deixava cair um pedaço de pão recolhia-o com um beijo. O pão era uma projecção da vida e beijar o pão era beijar a vida. Hoje ainda se mantém esse olhar de ternura e é por isso que ninguém rouba nem estraga o saco de pão colocado de manhã na porta da Adega do Teixeira.


JOVEM E PROMISSOR

Pedro Garção é um jovem cientista português cuja actividade merece a nossa atenção. Apenas com 25 anos de idade (nasceu em Portalegre no dia 24 de Abril de 1981), o seu trabalho no campo da Biologia Celular começa já a ser reconhecido internacionalmente.
Licenciado em Biologia pela Universidade de Coimbra com alta classificação, prepara a sua tese de doutoramento, cujo tema será a “desregulação da neurotransmissão na doença de Alzheimer”. O trabalho será feito no Centro de Neurociências e Biologia Celular de Coimbra (CNC), com grau conferido pela Faculdade de Medicina.
Provando o reconhecimento que o seu trabalho já merece, publicou recentemente nos Estados Unidos da América um artigo intitulado "A comparative study of microglia activation induced by amyloid-beta and prion peptides. The role in neurodegeneration", vindo a lume no Journal of Neuroscience Research (84: 182-193), assinado por si, por Catarina R. Oliveira e por Paula Agostinho, sua orientadora de doutoramento.

Retábulo (1)


a pedra


há linhas de fogo
atravessando a tela.
serão somente brilho
ou luz que secciona
a noite e as formas –
mas a tinta arde,
mantendo nos olhos
a essência da pedra
que a névoa protege
do vento e da cegueira.

[Claude Monet]

FESTIVAL DE POESIA

Provando que os professores ainda fazem alguma coisa pelos seus alunos e que não são necessários "planos" bem pagos (a quem os concebe) para promover a leitura e o amor à literatura, realizou-se há poucos dias o quinto Festival de Poesia da Escola Básica 2, 3 de Santana (Sesimbra), organizado pelo Departamento de Línguas, com especial trabalho das professoras Teresa Lopes e Conceição Coimbra e com a colaboração de vários docentes da instituição.
Cativou-me participar no júri do concurso de leitura de poemas. Sem outros interesses pelo meio, os alunos provaram - com especial sensibilidade - que ainda podemos ter esperança no futuro, apesar do lixo televisivo e doutra ordem que nos vai atulhando.


NICOLAU SAIÃO
um poema com endereço

Entroncamento

De Portalegre? Sei onde fica...
Fui lá um dia co'a tia Anica!
Tinha lá primos
e uma cunhada.
Conheço bem.
Vale a jornada!

Tem coisas belas
simples, singelas
de nobre terra:
a volta à Serra,
a fonte nova
e uma grande árvore
cheia de brio
quer esteja quente
ou faça frio
lá no Rossio.

Tinha a Corredoura
tem o Bonfim
( e alguns fulanos
assim-assim...)

E tem o Corro
e a grande Sé
que é imponente
p'ra toda a gente
quer tenha ou não
(queira-o ou não)
a sua fé.
E tem comércio
bem aviado
mais a indústria
de fiação
com bom mercado
p'ra dar o pão
afiambrado!...

Vale bem a pena
passar-se lá:
tem gente grada
bondosa, amena
(calva ou barbada)
como não há!

***

Olhe o combóio que vem chegando!
Então adeus. Muito prazer
em conversar. Céus, que faz vento
neste lugar!

Sim. Portalegre... Sei onde fica!
Fui lá um dia... Co'a Tia Anica.

Tinha a Corredoura
tem o Bonfim
(e alguns malandros
assim-assim...).


in “Residência fixa
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

Ser do Sporting
é uma desgraça;
não ser do Benfica
é uma desgraça maior

A propósito do meu texto «Há vinte anos foi Manuel Fernandes o excluído» Cagica Rapaz tentou argumentar contra mas «espalhou-se ao comprido». Quando escreveu «Arsénio ganhou a Bola de Prata e ninguém o chamou à selecção» estava a esquecer que Arsénio tem duas internacionalizações ambas em jogos contra a Espanha. Tentou destruir uma verdade com um argumento falso. Fica a rectificação.
Mas o sentido do meu texto vai muito para além do assunto «Quaresma 2006-Manuel Fernandes 1986». O meu texto explica e recorda como em 1966 e em 1986 as pessoas do Sporting foram prejudicadas por pessoas do Benfica tal como anos depois Pedro Barbosa foi sujeito a uma humilhação em pleno Estádio José Alvalade quando jogou apenas 40 segundos num Portugal-Eslováquia. O seleccionador era Humberto Coelho. Quando Rui Costa (Benfica) foi expulso em 2000 a nossa imprensa crucificou o árbitro francês mas quando João Pinto (Sporting) foi expulso em 2002 a imprensa já não crucificou o árbitro sul-americano mas sim o jogador. Agora Cristiano Ronaldo, formado no Sporting desde os 11 anos, foi censurado por responder aos insultos do povo benfiquista no jogo do Manchester United mas o público não foi questionado pelos insultos.
E até nas memórias nós estamos sempre a perder. Hoje (12 de Junho) Miguel Sousa Tavares em A BOLA afirma com desfaçatez, com maldade e com ignorância que «Angola nunca foi berço de jogadores que tenham passado à história». Tentou ignorar o maior de todos (Fernando Peyroteo) e alguns dos maiores: José Águas, Jacinto João, Espírito Santo, Dinis, Zé Maria e Jordão. Comentar futebol não é para quem quer; é para quem sabe.

O irreal quotidiano


Um pedido ao senhor presidente
por Nicolau Saião


Fiquei parvo! Pensei a dada altura que estava a ouvir mal ou a perceber mal ou que estava com os copos. Apesar de eu não beber nada – excepto lá de vez em quando um tinto do Reguengo, um branco de Borba, um rum da Jamaica, um anis de Badajoz, um xerez de La Serena, uma aguardente de Tavira, um conhaque de Sevilha…
Mas creio que já me perceberam: pensei que estava a ficar um pouco xoné ou então que por uma brusca mutação me transformara naquela personagem do Bradbury que tem o coração à direita e o fígado à esquerda por ser um habitante do outro lado do espelho.
Senão vejamos: vi e ouvi com estes e estas que a terra há-de comer o senhor doutor Cavaco Silva, que está como se saberá presidente da República, afirmar em plena reportagem televisiva que ele almejaria que os cidadãos nacionais, ou seja portugueses, não se resignassem (sic). Suponho, se é que estou a interpretar bem o estadista em apreço, que o que ele queria dizer na sua é que os referidos lusitanos não devem contentar-se com o pedacinho de relva que lhe tem cabido na repartição da terra quotidiana (falo simbolicamente, claro) deste nosso Portugal.
Dir-me-ão: frase equilibrada, serena e justa – pois toda a gente sabe que isto é absolutamente de aconselhar. Já muitos homens públicos, nomeadamente alguns políticos quando parecem estar mais pachorrentos, têm exprimido tão sagazes propósitos. Mas tal ser dito pelo mais alentado magistrado da Nação - isso é que fez tremer de excitação um romântico como eu…
Mas o melhor ainda estava para vir em matéria de libertário incitamento!
Logo a seguir o mesmo senhor, em que a parte mais progressiva da pátria tem posto as suas complacências e até os que em geral estão do outro lado da barricada – vulgo críticos marotos – encaram com aprazimento porque parecem não ter outro remédio, incitou a rapaziada cá da pátria a não ser subserviente perante o Estado, esse Estado de que ele é o maior e talvez melhor representante!
Bem sei que tal oração de sapiência a proferiu o senhor presidente no Dia de Portugal, numa altura em que os cidadãos necessitam empolgar-se por causa dos importantes acontecimentos desportivos que estão a acontecer lá para as bandas do Reich. E que sendo quase Verão precisávamos de algo que nos espevitasse – uma espécie de sursum corda – para entrarmos nas férias descansados.
No entanto e para a ementa ficar completa, eu pedia ao chefe de Estado uma coisinha simples, que certamente não me fará a desilusão de não me conceder: enderece uma advertencia, aí coisa de dois minutos, a uma razoável percentagem dos membros das forças vivas que aqui actuam, nomeadamente a uma considerável porção dos que agora mandam no partido em que Vossencia já mandou: quando algum cidadão não se resignar, quiçá rebingando com espírito cívico e barafustando educadamente, eles que não comecem logo com manobras de intimidação, com apartes acintosos, com atitudes de escaqueiramento para com o fulano doutrinado por vossa Senhoria. Como se dizia no tempo em que éramos gaiatos, que não nos tomem logo de ponta.
Olhe, por exemplo no Alentejo – onde numa certa cidade que eu cá sei quem dá a entender que não deseja resignar-se (mediante o trabalho prático de criticar justa e acerbamente os ex-colegas de partido de Vossencia ou até de fazer coisas cujo sucesso não podem sufocar), vê logo erguerem-se contra si os cacetes e os punhais (continuo a falar simbolicamente) que tentam que ele nunca mais siga qualquer eventual conselho presidencial.
Porque sabe, senhor presidente, as coisas é no mundo da realidade que comprovam a sua eficácia. Não se pode rebingar (é uma expressão alentejana muito sugestiva) nem protestar contra silhuetas virtuais. Não podemos negarmo-nos a ficar resignados contra simples imagens num espelho. Isso tem destinatários bem materiais. Quem não se resigna fá-lo sempre em função de qualquer coisa palpável.
E é evidente que o Senhor sabe isso muito bem – e por tal facto nos aconselhou judiciosamente, para que possam duma vez por todas ser ultrapassados os atrasos, os desvigamentos, as maneiras de ser que tolhem este país e de que têm sido maiores beneficiários os tais que aponto à sua advertência e que devem ter ficado com as orelhas a arder com o que Vossencia disse.
Uma vez que, e honra lhe seja, a sua postura intranquilizadora, quase libertária, não foi a meu aviso apenas uma atitude de hipocrisia para inglês ver, como infelizmente muitos praticam com o maior dos despudores. É verdade que ainda há bocado houve um malandreco amigo, um desses que não se resignam mesmo nunca (mas também eu cantei-lhe das boas!) que me disse sem brusquidão mas com um acinte de que não gostei: “Ó meu lorpa! Então tu não percebes que o Cavaco, como é mais esperto que os outros e já concluiu que este Estado não resolve nada, agora quer atirar o ordálio da trabalheira para cima do lombo da maralha? Naquele estilo que a gente já lhe conhece dos tempos em que ajudou a malta a pensar que eram tudo favas contadas e já tínhamos o paraíso à porta? Boa vai ela, meu palonço…“.
Não creio que o meu velho amigalhaço desta vez tenha razão!
MIGUEL E OS PROFESSORES

Miguel tem idade para ser um adulto responsável. Gosta contudo de se pôr em bicos de pés na sua quinta para dizer mal de tudo e de todos, especialmente dos professores. O que ele gosta de sová-los! Em efígie, claro... A coragem não dá para mais. Num dia murros, noutro pontapés, noutro carolos, noutro joelhadas - nalguns chega a lançar-lhes escarretas à cara, que laboriosamente constrói dentro da boca.
Ninguém percebia, até ontem, os motivos da aversão. Até que houve um senhor com bons dotes de observação e memória de arquivo que contou:
"Ai não sabem? Uma filha do Miguel foi colega de liceu da minha filha mais velha. A catraia era o diabo em figura de gente, muito problemática... O progenitor era frequentemente chamada à escola, mas nunca o Miguel se dignou aparecer por lá (saiba-se lá porquê), apesar da insistência da directora de turma e da direcção da escola."
Agora se compreende por que tanto detesta os professores. Lembram-lhe a sua incompetência enquanto encarregado de educação.
Se o encontrasse na rua, dir-lhe-ia: "Caro Miguel, vossa insolência tenha cuidado: quem tem telhados de vidros não pode atirar pedradas..."
Quem será este Miguel? Há quem diga que reúne os piores defeitos do pai com os piores defeitos da mãe...
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Poema do código do Multibanco


Escolheste para o código do Multibanco
Por acaso o ano em que nasceu a tua mãe
Um tempo e um Mundo a preto e branco
A guerra acabou e há casas sem ninguém

Por acaso será só uma maneira de dizer
Pois assim quando fazes os pagamentos
Por detrás do teu bonito nome de mulher
Esse código afirma a força dos momentos

Quando nasceste era tempo de guerra-fria
O mundo estava mais feio, mais separado
A tua mãe estava entre uma dor e a alegria
De tu nasceres mas sem um pai a teu lado

Sempre que tu pagas o telefone e a água
E usas um código que é uma homenagem
Eu fico com os meus olhos numa mágoa
Da tua mãe vem um exemplo de coragem
DIAS DO FUTEBOL

Aproximamo-nos a passos largos do pior da América Latina, continente que agrega países amordaçados por políticos incompetentes e, tantas vezes, traficantes de influências e corruptos, cuja população procura no futebol (e no Carnaval, etc.) as suas únicas alegrias colectivas.
Para nos compararmos com eles falta-nos no entanto a parte positiva, feita de confiança no futuro, que consolida a alegria e a esperança. Como afirma Torga, somos um povo demasiado velho e estas explosões afirmativas só aos jovens são permitidas.

NICOLAU SAIÃO

Começar bem o dia

Depois de uma noite bem dormida, sem pensamentos melancólicos sobre a lusitanidade e outros pesadelos afins, levantei-me “pronto para todas as viagens” como dizia Ungaretti.
Arranjei-me, fiz café, dei despacho a um niquinho de brandy e ia na segunda torrada bem fornecida de manteiga espanhola (pois, a “Flor del Alba”, uma marca que parece um título de Alarcon) quando senti o carteiro meter correio na caixa (oficial e cabal) que, ornamentada com o exuberante desenho duma corneta, tenho ao pé da porta do lar.
Fui logo buscá-lo, pois sou curioso como um cabrito ou um agente secreto (nacional).
Entre as tretas comerciais do costume, que seguiram logo para a “cesta secção”, estava um envelope identificado com o patronímico dum amigo.
Dentro, carreado por umas palavras adequadas e bem artilhadas, vinha um postal com uma paisagem de Estaque de Cézanne. Não esta que vai aqui e de que muito gosto, mas outra também admirável de entrosamento, que o raio do velho parece estar cada vez mais novo.
Como se tivesse sido pintada mesmo agora.
Só para ver os quadros do solitário de Aix já valera a pena ter vivido. Ele, que em nada influenciou a bonecada que eu mesmo faço – as feições dos progenitores não se discutem, aceitam-se como a raiz do próprio mundo – pois essa tarefa ficou para o Beckman, Soutine, Lee Krasner, Cy Twombly…, deu-me contudo uma força que continua a oxigenar-me a figura de dentro e de fora: o sentido dos limites, a certeza de que podemos ir até onde pensámos ir, pois tudo se contém no tempo que habitamos.
E gostaria de finalizar com a citação, absolutamente virtual mas pundonorosa, dum anúncio que aqui há anos fez escola e que talvez ainda esteja na memória de alguns: “Um Cézanne pela manhã ajuda-o a melhorar, descontrair e a divertir-se” …
Pois não!



CÉZANNE


Rabujento e disforme, tinha a alma
segundo alguém escreveu, dum vendedor de fruta.

Ainda bem, Cézanne

Foi há relativamente pouco tempo
que eu percebi que podia se quisesse
viver num quadro teu.

Velho, muito velho, o mundo grego
ficou mais limpo e exacto que uma batata descascada.

Amavas, sei-o bem, as bruscas planícies
a lonjura serena da montanha Sainte-Victoire
e a cor mais pitoresca, eternamente violada
dum corpo de banhista.

Fazias com que os médicos tivessem ar de anões

Nos teus quadros não havia simplicidade
havia exactidão
singularidade
havia tudo o que fazia falta.

Por isso me lembro muitas vezes de ti
principalmente quando acabei de jantar

maçãs, peras, laranjas e paisagens imóveis.


(NS in “Os olhares perdidos”, Universitária Editora)
GOMES LEAL


JORNALISMO E LITERATURA

“Uma pretensiosa e depravadora lepra lavra na sociedade: uma enorme corrupção de gosto e de ideal nas letras. O jornalista, a parte mais saliente e deficiente da literatura portuguesa, toma sobre a desgraçada ignorância geral um ascendente que seria cómico, se não fosse para lamentar, e invade, como uma grande corrente sem dique, a opinião pública, reduzindo a Economia, a Arte, a Política, a Filosofia, a questões de vizinhas despeitadas.”

(do prefácio a “Claridades do Sul”, 1875)

Fernando Grade

Sobre
«Pedro Barbosa, Jesus Correia,

Vítor Damas e outros retratos»

É com o maior gosto que escrevo acerca do trabalho poético de José do Carmo Francisco (JCF). Para além das muitas afinidades que temos como camaradas das Letras e, não obstante os cerca de oito anos a mais que apresento em relação ao autor de Universário» – não posso deixar de referir que ambos fomos contemporâneos nos conceituados jornais desportivos A Bola e Record, onde tivemos a honra de ser colunistas em secções individualizadas.
Este livro de agora (Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos - Padrões Culturais Editora) vem na linha intencional, verbi gratia, de Jogos Olímpicos e de Os guarda-redes morrem ao domingo.
O recorte estilístico e existencial de JCF orienta-se em função de um conceito bem concreto, não concretista, de poesia, e essa gramática pessoal nutre-se de uma aturada dissecação da realidade, como quem privilegia um mote, pega nele, observa-o sob vários ângulos, enfim, trabalha-o sempre até às últimas consequências, ao ponto em que o limão ficará sem sumo e, desta feita, o Autor passa à próxima temática estilizada.
Mormente em relação aos três excepcionais futebolistas aludidos que constituem o cerne apelativo do volume, do qual constam, outrossim, «outros retratos», o modus faciendi mantém-se naturalmente inabalável, a memória é voraz, transporta para a tona de água lembranças e vivências de diversificado teor, situações vividas e sofridas no sangue por JCF, ou mesmo galvanizadas, como é o caso de o júbilo pelas vitórias, na medida em que o autor se assume, sem peias como clubista empenhado, melhor dizendo, sportinguista dos quatro costados, daí sem papas na língua.
Desses três jogadores de renome, um deles, o Jesus Correia (o popular «Necas», agora o saudoso «Necas» de Paço de Arcos e do País todo), foi, também, um extraordinário campeão do mundo, na modalidade em Portugal sempre apareceu como um potência de topo, o hóquei em patins.
Pedro Barbosa, Jesus Correia, Vítor Damas e outros retratos humaniza os gestos do quotidiano desportivo, sempre com um humor terno, mas não paternal; não se trata de um discurso orientado de cima para baixo: constitui uma linguagem realista, onde os seus problemas-base não pertencem ao foro da chamada subjectividade intrínseca – conotativo/denotativo, significante/significado – mas, ao invés, trilha campos desenvoltos que se cruzam com uma apetência e azimute entroncáveis numa postura que tem a sua matriz no que se convencionou apelidar de «realismo».
É uma rota que, no seu passado e currículo transgeracional, conta com o nome sedutor e emblemático de Cesário Verde e, antes, com o incómodo e contundente Guilherme de Azevedo. E, sendo assim: - Bom dia Zé Xico!

Estoril – Primavera de 2006
FERNANDO SAVATER


PROGRAMAR UM FILHO


“Pessoas que não formam um casal, uma mulher só, duas mulheres ou dois homens, e assim por diante, podem decidir programar um filho, que deixam de antemão sem pai ou sem mãe. Estamos frente a uma ideia que considera que os pais são fenómenos culturais dos quais se pode prescindir. No que se refere a tais situações [...] afirmo a existência do direito a ter pai e mãe, o direito a possuir uma filiação.
Os avatares históricos podem privar-nos do pai ou da mãe, podem fazer com que tenhamos pais adoptivos. O que não se pode fazer é programar órfãos. Não há o direito de se preparar o nascimento de um ser que vai ser privado de pai ou de mãe, como se estes fossem simples aditamentos supérfluos.”

(in Os Dez Mandamentos no Século XXI, 2004)
DIA DO CÃO

Concordo com a proposta de criação do "Dia Nacional do Cão".
Será certamente bom para os portugueses.
Como muitos de nós já somos tratados abaixo de cão, pode ser que na mesma iniciativa legislativa os deputados decidam tratar os cidadãos como "bobis" e, assim, passemos a ter uma vida decente.
Antologia “Fanal”
Poetas Novos de Portugal


JOANA NEVES


dois poemas


Por vezes arrastamos a nossa sombra;
Por vezes trazêmo-la:
E num instante podemos segurá-la, ao meio-dia, em Greenwich.

Mas no instante a sombra desaparece;
Oculta-nos tanto quanto a ocultamos a ela.
Qual de nós é o negativo, e o outro a fotografia?

A sombra pode ser um auto-retrato escurecido pela poeira do chão.
Ou o tracejado constante da nossa bonita figura.
Ou então a primeira revelação.


*


“As palavras e as coisas”
Mais exactamente
E os actos e os silêncios e as ausências e os suspiros
E os movimentos e os tempos e as cadências e os sons
No mesmo filme.
No ecrã chato e uniforme, a singularidade é o único nivelamento.

Alguém chorou.
O seu choro disse o que as palavras não dizem.

Há um outro lugar para as palavras.
A frase não relata o facto, ela é o facto.


(nº 9, 26/01/2001)


JOANA NEVES, nascida em Lisboa, é licenciada e mestre em Filosofia pela Universidade de Nanterre (França). Crítica de arte, tem textos dispersos por catálogos de exposições e publicações periódicas, como por exemplo o suplemento Mil Folhas do Público.


JOSÉ DO CARMO FRANCISCO
(no 55º aniversário de Manuel Fernandes)


Há vinte anos
foi Manuel Fernandes o excluído

Há vinte anos (1986) era o campeonato do mundo de futebol no México. E Manuel Fernandes foi excluído da selecção portuguesa de futebol depois de ter sido o vencedor do troféu «Bola de Prata» que distingue o melhor marcador do campeonato nacional. E não foi excluído da equipa; foi ignorado pela convocatória do seleccionador nacional. Que por acaso era um ex-jogador benfiquista. Que por acaso em 1966, vinte anos antes, no campeonato do mundo em Inglaterra, jogou sempre, mesmo lesionado, protegido por um seleccionador benfiquista. Tão benfiquista que se chamava Manuel da Luz.
Na altura não houve grande alarido porque Manuel Fernandes era jogador do Sporting Clube de Portugal e, enfim, o seleccionador era soberano nas suas decisões mesmo se excluía o melhor marcador do campeonato português. E o melhor marcador não se discute porque os golos não são metafísicos; são verdade. Não há neles matéria subjectiva. Em 1986 só meia dúzia de pessoas se referiu ao assunto e como era um jogador do Sporting não valia a pena.
Agora é um vê se te avias – desde o inefável presidente do seu actual clube até aos jornalistas que escrevem com a camisola, aos comentadores que estão na moda e sem esquecer as próprias anedotas que se publicam nos três jornais desportivos diários. Todos se revoltam contra a exclusão do Quaresma.
O que se disse de Manuel Fernandes em 1986 parece que não serve para Quaresma em 2006. Se o seleccionador é soberano então não vale a pena discutir as suas escolhas. Mas o problema é que há sempre dois pesos e duas medidas. E ser do Sporting tem muitas desvantagens. Já em 1966 tinha acontecido o mesmo com Lourenço e Figueiredo, preteridos em favor de José Torres que jogava com injecções de anti-inflamatórios.
CONTRA A DIFAMAÇÃO

Os professores portugueses têm sido alvo nos últimos tempos de uma autêntica campanha de difamação que, em situação normal, deveria ser resolvida nos tribunais. Acontece que ela parte principalmente dos responsáveis pelo Ministério da Educação, coadjuvados por muitos opinadores profissionais.
Um grupo de cidadãos resolveu endereçar ao Presidente da República uma petição apelando à sua intervenção contra esta avalanche de injúrias.
É uma questão de justiça assiná-la aqui!

FERNANDO ECHEVARRÍA
dois poemas
(in Epifanias, Afrontamento, 2006)


Articulava-se no verbo. E vinha
desenvolver seu movimento claro,
precisamente na superfície lisa
onde inscrevia o eco só de espaço.
Os músculos escritos instruíam
simulações, vazios simulacros
que, contudo, rumava por um dia,
muito mais do que concreto, abstracto.
Mas, o mais admirável era ainda
a luminosidade de os seus passos
ir assentar naquela terra viva,
que vive em si. E esquece o tempo nado
da lucidez acústica da escrita
para impor outro que refunda o espaço.


*


Certo silêncio sedimenta. Quase
se lhe confunde a extensão de olvido.
De ambos, às vezes, surde a frase
com tão intensa exactidão de brilho
que sabemos que vem. Mas ninguém sabe
de que se fez o antes de ter vindo.
O que é claro, contudo, é que vem dar-se
quando, o negrume exterior extinto,
o tempo fica a sustentar a frase.
E a frase punge o seu esplendor mais vivo.


"[...] Echevarría é um poeta sem concessões nem modismos, comprometido com as palavras e as ideias, algumas das quais só existem plenamente quando alcançam uma expressão poética exigente. / [...] Uma poesia que é mais concreta que as coisas concretas, porque delas retira a sua essência [...]." - PEDRO MEXIA in 6ª/DN, 14/4/06

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

O falso franciscano
Luandino Vieira

O prémio «Camões» de 2005 até estava bem entregue mas o premiado, este ano o escritor Luandino Vieira, borrou a pintura. Desde logo não comentou a atribuição do prémio para a Comunicação Social. Isto em primeiro lugar. Em segundo lugar recusou-se a cumprimentar o seu editor que se deslocou expressamente de Lisboa a Vila Nova da Cerveira para o abraçar. Mas o pior estava para vir. Recusou o prémio com o argumento de que é franciscano. Ora bolas! Um verdadeiro franciscano, se é mesmo franciscano, nunca perde uma oportunidade para o provar. Fazendo o bem. Este homem que é natural de Vila Nova de Ourém mas é de facto angolano por adopção, finge esquecer que há em Angola milhares de crianças que precisam de ajuda: comida, livros, medicamentos, roupas, tudo. Bastaria Luandino Vieira receber o prémio Camões e dar de imediato uma indicação sua para o valor do prémio ser entregue à UNICEF. Tão simples como isto. Este sim seria um gesto de franciscano mas de um franciscano de verdade. Reclamar ser franciscano é uma coisa; ser franciscano é outra coisa. Bem diferente e bem melhor.
Esta situação vem uma vez mais chamar a atenção para a grande diferença que existe entre os escritores e as pessoas dos escritores. Para quem, como eu, já circula há muitos anos nesta área da comunicação a que em 1978, quando eu comecei, se chamava nos jornais simplesmente «artes e espectáculos», esta dualidade não é uma surpresa. Há pessoas que enquanto autores são muito agradáveis de ler mas enquanto pessoas são simplesmente insuportáveis. Como este falso franciscano, Luandino Vieira de seu nome, natural de Vila Nova de Ourém e angolano por adopção.
Fernando Savater

NÃO PODEMOS RESPEITAR
OS DESRESPEITADORES

"Quando vivemos numa sociedade multicultural, temos de assumir que existe o direito a ter-se religião, a terem-se crenças, e isso comporta o facto de se terem que suportar também alfinetadas por parte da realidade. [...]
Mas isto é, por outro lado, acompanhado de uma leviandade que é perceptível por toda a parte e que se exprime através de uma máxima que diz: 'todas as opiniões são respeitáveis'. O que é um disparate. São as pessoas, e não as crenças, que são respeitáveis. Se assim tivesse sido, a humanidade não teria podido dar um único passo em frente. Não se podem respeitar as ideias totalitárias, xenófobas, racistas, exclusivas, que violem os direitos humanos elementares. Não podemos utilizar o ataque, a crítica, a própria sátira contra uma ideia, para provocar qualquer coisa que humilhe ou ofenda os outros. Mas quando se trata de ideias, temos de saber parar quando entram em cena as que são perigosas.
Que respeito merecem as ideias por detrás das quais se acoitam os terroristas de diferentes sinais? Como deixar de repudiar o assassinato, as bombas impunes que os nacionalismos exclusivistas reivindicam? Como aceitar que, a pretexto da identidade cultural, se pratique a mutilação do clítoris sobre milhões de raparigas?
Os defensores de métodos semelhantes são tão perigosos como os sacerdotes que rejeitam as outras religiões, os seus seguidores e aqueles que não acreditam em nenhum Deus em particular. Não podemos respeitar os desrespeitadores."

(in Os Dez Mandamentos no Século XXI, 2004)