O Poeta e o filho dele

Em Agosto de 96 José Carlos Breia visitou-me na minha casa do Atalaião. Estava de férias em Borba e sempre que ali jornadeava não resistia ao apelo que do nordeste alentejano lhe chegava.
Geralmente fazia-se acompanhar dum presente para acalentar o amigo. Eu fornecia os comes-e-bebes, ele fornecia a conversa comparticipativa de poeta e de cavalheiro sem mácula.
Dessa vez trouxe-me uma preciosidade: a primeira edição, belíssima, de Canções de entre céu e terra de Francisco Bugalho, ilustrada com “gravuras em madeira, originais do artista húngaro Átila Mendly de Vétyemy” conforme reza na “Justificação da tiragem”.
O livro, organizado para as “Edições Presença” sob cujos auspícios foi dado a lume, recebera-o das mãos de Luís Moita, pai do autor de Cidade sem Tempo e companheiro dos presencistas. Ele tinha outro autografado e o remanescente quisera entregá-lo à minha guarda perene.
É dessa edição de 1940 que retiro o comovente poema que aqui se epigrafa.
O menino de que se fala é, obviamente, Cristóvam Pavia.
Tanto eu como António Luís Mouta o evocámos em 92 (“Um serão com Cristóvam Pavia”) através duma das emissões do “Mapa de Viagens”, programa que eu então realizava na rádio portalegrense.
…Do autor de Lugar Nenhum (distribuição Assírio & Alvim, org. de José Bento) dar-vos-ei em breve, aqui, alguns textos dali retirados. - Nicolau Saião


Dois Meninos
poema de Francisco Bugalho

Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.

As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…

Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.

Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…

3 comentários:

Ruy Ventura disse...

Que belo poema este do Francisco Bugalho. É comovente este diálogo entre pai e filho, diálogo que permanece nas palavras que ambos escreveram e, também, nas palavras que outros têm escrito em seu nome, nomeadamente o poeta António Luís Moita que escreveu um poderoso poema, no qual Francisco Bugalho acolhe o filho depois da morte deste.
O diálogo entre os dois permanece também quando pensamos na materialidade dos seus corpos. Francisco Bugalho e Cristovam estão sepultados lado a lado no cemitério de Castelo de Vide, em campas que impressionam pelo seu despojamento e pela sua ligação à terra que os consome.

Anónimo disse...

Já agora, puxo a brasa à sardinha de um confrade/mais que isso: está já no TriploV de Maria Estela Guedes um texto de João Garção (Zé Povão)intitulado "O castelo dos destinos cruzados" que refere o encontro em Castelo de Vide destes 3 poetas seminais.
Chamo para o texto a atenção dos que apreciam os poetas e, também,o "jeito" do Zé Povão - agora já com o verdadeiro nome e sem a mascarilha que usava no malogrado e saudoso "Quartzo, Feldspato & Mica".

indah disse...

¡Qué bello y tierno! Magnífico. Mil gracias, ruy :)