VOZES DO BRASIL
O jardim perdido

Vamos criar uma situação: numa certa noite, um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio, como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na cachimónia.
Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as maçãs firmes e doces, nem as pêras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que estes se engelhem e os outros encarquilhem.
Já estou a ouvir, ali do canto, aquele crítico de que eu gosto a dizer-me com unção: ”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto.).
Nisto de escritas e, muito mais, de literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é o único, com mil bombas!
Ou seja: é como se um brasil hortelão, dispondo de frutos de alta qualidade se pusesse feito catrapuz e não ligasse importância ao belíssimo pomar.
Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a relampejar. Nomeadamente mantida pelo amigo a que aludo e que, sendo também um poeta de excepção, escreveu o poema que se segue:

VINHETA

“Viajas pela terra, vês tudo o que está dentro dela (…)"
Texto funerário de Taquert-P-Uru-Abt

Teu corpo floresce selado em páginas necessárias.
Santuário que surge e pousa e torna a ausentar-se.
Um abraço de folhas naquele que te abre à luz
de enigmas proporcionados pelo tempo. As porções

de um mesmo dia que albergam tremor e sombras
de tudo quanto o homem julga torná-lo um santo.
E um chão de folhas caídas (a cela repleta de folhas)
a traduzir a travessia do que recita a própria agonia.

Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te inundam,
o corpo ainda em sopro majestoso florindo um suave
estojo de frases do coração e a saúde de ritos erguidos
por todos os feitos vitoriosos da respiração. Onde estás?

Tuas letras nos chegam em súplicas e cuidadosas dores.
O homem é preservado graças a seu duplo. E floresce
em papiros relutantes enrolados em teu corpo. Aceita
a companhia de deuses para que dali triunfante saia

a soletrar seus martírios e dobre as folhas lidas de modo
a não retornar nunca ao que supõe ter sido um dia.
Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como estar
perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem rejubilar-se

por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os homens
se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada lacra
sua passagem de um tempo a outro: a memória
é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da ilusão,

a rubrica de dotes sacrificiais implantados no espírito.
Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por todas
as formas que exaurem a devoção. Teu corpo oculto
como um pássaro no céu a degustar os tremores do vôo.

Refiro-me à visão de uma ave em que pomos a mão
e se desfaz. Uma miragem da letra e sua soberana sombra.
A presença do homem sentindo-se divino entre deuses,
salvo não sem relutância por seu duplo com sua alma

anônima. Se te queres ali um sol desmaiado sobre o templo,
requer piedade (deusa) para que sejas feliz. A cumplicidade
de alguns poetas, o suborno a uns tantos inimigos, a voz
gravada do morto para que deslacres sua fausta memória.

Não fará mal recitar versos que atestem o conhecimento
sobre as coisas perdidas, ainda que seja um simples trono
ou mesmo uma tora de fogo a sublinhar um tempo de gozos.
Invocas a eternidade e somos levados a seus descaminhos.

Uma vez trouxeste contigo um inimigo, outra a irrigação e o pão.
És o engano e devo ser a sombra ofertada em seu nome.
O azinhavre imperioso da oração. O tecido de incenso.
O quanto tem custado nossa fé tão satisfeita. Um deus

ao inclinar-se requer juntar-se a seus fiéis. Um outro
posta-se ereto sempre para que deixe seu coração bater.
O que se mostra envolto por uma serpente seduz
pela oferenda de seu próprio mistério. Teu corpo floresce

por libações do desejo. Desenhamos as letras inferiores
para que sejam evitadas ou aviltadas? O próprio escriba
entalha o tende piedade do escriba que aja contra
a letra. Apenas teu nome safa-se de toda tempestade.

Não o repelimos ou assimilamos. Dele nos livrarmos
não podemos. Devora-nos e os ossos recriam sua forma
incessante e repete-se ao ponto de não mais sabermos
se somos carne ou espírito, dor ou símbolo, nume ou nada.

Decerto será misericordioso o calor de teu corpo
estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde causa dano
a oportunidade perdida. Ali onde continuamente o ser
perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos inúmeras

vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e assinamos
com trêmulo vigor as faixas que garantem que teu corpo
não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a odisséia
de ilusões de que floresces. Onde és o corpo sob nossos pés.

Deusa de um túmulo encravado em nosso espírito.
Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos por toda
a pedra santa. O verso é o verbo diante de si. Dentro
do livro está o homem: carregado de sombras e vertigens.


poema de Floriano Martins (editor da revista electrónica "Agulha")
introdução de Nicolau Saião

4 comentários:

Ruy Ventura disse...

O texto era para aparecer acompanhado com uma pintura de João Garção... mas, como não há bicho mais burro do que um computador, o blogger teimou e não quis lá colocá-la. Ainda tenho esperanças de poder publicá-la. A ver vamos.
Quanto ao poema de Floriano Martins, é uma pequena maravilha.

Anónimo disse...

Não está certo! Não há direito! Então o Floriano não sabe que escrever assim é "estar a mostrar habilidades"( como diria o guerrilheiro por correspondencia)?
Mas o autor deste poema não sabe que a poesia serve fundamentalmente
para epigrafar lugares comuns (amorosos, literários,políticos e de "dor de corno", etc.)como se verifica nos maviosos poemas de 70% da literatura pátria (e por isso tão respeitados e queridos e difundidos)? Hein, seu Floriano?
Para que se põe você, cara, a tratar de coisas seminais, fundamentais, fazendo sentido? Para que encara você, chapa, a poesia como uma coisa a valer e não, como 94% dos críticos lusos competentes e bem-sucedidos)lhe poderiam explicar - um jogo excitante de palavras para acatitar o pessoal, prafrentex ou pratrazex?
O que você, mano, precisava sei eu...
Vá lá que está no Brasil e não pode ser morigerado por quem de direito... Mas se o apanharem no portugalinho você, cara, vai ver!
Você não tem vergonha de ter tanto talento?
Você não vê mesmo que isso é ofender o politicamente correcto?
Pôrra, meu chapa!

Anónimo disse...

Alentejanos assim é que fazem falta, a dizer as verdades sem medo.
Aqui em Évora também fazia falta um "Estrada de Alicerce".

Ruy Ventura disse...

O "Estrada do Alicerce" não tem terra... pode ser de Portalegre como de Évora, de Sesimbra e de Palmela, de Lisboa e de Setúbal, de Viana do Castelo e de Carrazedo de Montenegro, de Badajoz e de Cáceres... é de todos quantos o lêem, sejam de que terra forem. Abraço para o amigo Mafra!