o sopro, o ventre, a imagem

(Daniel Costa)



- Guardei, minha mãe, na tua voz o último voo devorado pelo mar. Seccionado o coração, tentei elevar perante o vento o segredo da fala e da memória, a circulação da carne sobre as ondas – sem ver sequer que não podia atingir com tão frágil instrumento o calor dos líquenes e da tua mão. Sobre a montanha falava a linguagem dos pássaros (ou dos anjos). Vestido de negro, guardava sob o cabelo a velocidade e o horizonte. Ficava-me longe a nascente. A terra devorada por esta habitação. Por todas as moradas que o sopro fazia(m) recuar. Nada ficou desse tempo. Não mais respondi à mensagem nascida a poente. Fotografei nesse segundo o prado e a tristeza. O vendaval sem voz durante a tarde. Que viagem sobrou da ilusão? Cortei o fio derradeiro para subir, sem medo, os nove degraus do firmamento. Saí dessa caverna para te deixar a minha voz, o meu vento e o meu segredo. Deixei na escuridão a luz e a alma para com elas alumiar o corpo inteiro que vou desfazendo nos teus olhos para melhor reconstruir o universo.
Guarda, minha mãe, na tua voz esse voo nascido sobre o mar. Assim continuarei decifrando a corrente que levou desta ilha à tua ilha a flor da noite sobre a noite. A nave retorna em silêncio ao útero que um dia devorei. O asfalto rebenta à nossa porta fazendo crescer no coração a planta desta casa onde vivo. Fotografei contigo ruínas e vestígios desse teatro do mundo, quase a despenhar-se no oceano. Recolhemos os dois pedaços de tijolo e de argamassa, telhas há muito tempo sem água, pedaços de madeira em que o fogo pintara a inscrição do medo. Lembras-te, mãe? De súbito ficámos ambos escutando o sopro e o sangue – dissolvendo a floresta encoberta pelas ondas. Nesse dia guardei na tua voz o fogo e o alimento. Soube então que, mais tarde ou mais cedo, teria que esculpir nesse ventre a minha imagem, salvando para sempre do relâmpago o meu corpo, a minha fome – essa memória.



(Na imagem: uma pintura de Daniel Costa. Quem desejar conhecer outras obras deste jovem artista, infelizmente já falecido, poderá visitar o sítio das Edições Vendaval, incluido na lista de links.)

1 comentário:

Anónimo disse...

Vi hoje o blogue aconselhada por um amigo. Surpresa e encanto. Há posts que nos comovem, outros que chegam a divertir-nos. Voltarei frequentemente, boa sorte.