JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


A voz de Ana Paula


Por um erro semântico para mim ainda inexplicável há quem chame ao timbre de uma determinada voz o metal da voz. Ao ouvir a voz de Ana Paula – intensa, alta e veemente – percebe-se o erro, percebe-se que não há nada de metálico no esplendor do seu som. Tudo na voz de Ana Paula é redondo, cheio e doce, tudo nos lembra as ondas e a sua espuma branca desmaiada nas praias da Arrábida, tudo nos recorda o murmúrio oceânico, poderoso e antigo de onde nasceram as partituras de todas as orquestras do Mundo. A voz de Ana Paula transporta no seu volume a força da água, a veemência de um lugar líquido que é origem da vida, não apenas da vida individual mas também das civilizações que, sabemos hoje, nasceram e cresceram todas à beira dos rios e dos lagos. A voz de Ana Paula tem sete elementos: desenho, volume, movimento, cor, luz, eloquência e musicalidade. Na janela do comboio que entre Cascais e Lisboa serpenteia entre terra e água, Ana Paula fixa o olhar nas ondas que no lugar da Gibalta quase tocam o metal da composição em marcha. A terra à esquerda é o símbolo da rotina, da monotonia e da vida parada; o mar à direita é o símbolo das viagens, do inesperado, do lugar onde os dissabores, os desgostos e as amarguras podem ser objecto de consolação e purificação. No lugar entre terra e água, a voz de Ana Paula surge como um intervalo feliz que teima em elevar o seu murmúrio por cima do ruído da mesquinhez quotidiana. E não desiste de cantar uma canção que ninguém ouve (porque Ana Paula a canta para dentro) num sussurro sempre doce, sempre cheio e sempre redondo. A voz de Ana Paula é a impetuosa voz da água contra o arrastado cinzento da voz da terra.

YUSTE, AINDA

Só agora percebi por que me tocam tanto estas terras de La Vera. Com as suas densas matas de carvalhos subindo até aos cimos da serra de Gredos, com as suas aldeias encaixadas na meia-encosta das montanhas (como se fossem a pontuação necessária que a natureza não dispensa) - representam para mim uma imagem dupla e larga da serra interior-exterior a que pertenço por nascimento e criação. Confronto-me aqui com uma identidade depurada, porque mais vasta e libertada.

*

Conhecendo Cuacos de Yuste e uma nocturna Jarandilla de la Vera, desta vez não poderia afastar-me de Garganta la Olla, depois de me despedir do mosteiro jerónimo e dos seus altos carvalhos. Valeu a pena a provação iniciática dos buracos na estrada para poder contemplar a serra em todo o seu esplendor. Garganta é uma verdadeira jóia. Esta vila nada tem de magnificente, mas entra em nós como objecto discreto, sem polimento nem lapidação, que não nos deixa porque a ele passamos a pertencer.

(na imagem, a Serra de Gredos)
YUSTE

Neste fim-de-semana, se tudo correr bem, estarei no mosteiro de Yuste (Cáceres, Espanha) para o lançamento da edição multilingue da obra de Anton van Wilderode, A Árvore-das-Borboletas, que tive o prazer de traduzir para a língua portuguesa. A obra do autor flamengo transfigura o último itinerário de Carlos V, de Gant (onde abdicou) até Yuste (onde faleceu e foi sepultado). O lançamento, na tarde de sexta-feira em plena igreja monástica, terá a presença do poeta espanhol Álvaro Valverde e de Beatrijs van Craenenbroeck, escritora e presidente da Associação dos Amigos de Anton van Wilderode.
Yuste vale, no entanto, por si. Não só pela beleza artística e pela memória histórica aí viva, mas sobretudo pela intensidade vegetal do silêncio e pela força dos elementos. É, dos lugares que conheço, um dos mais belos.
Terra fértil para a poesia, tem gerado múltiplas abordagens artísticas. Entre elas, encontra-se um belíssimo poema de Antonio Colinas, que ofereço aos leitores na tradução que se segue:


NO CAMINHO SEM CAMINHO
(Yuste)

Ser como esse cedro cheio de pássaros:
perdurar e cantar.
Não parece sequer mudar
com o incenso que os monges queimam,
com a água esverdeada do tanque,
com todo este esplendor de que recebe
a sua formosa plenitude.

Nunca partirei daqui, mesmo que parta.
Serei sempre laranjeira, hera, rola,
carvalho, ou borboleta, ou pedra eterna,
ainda que, na aparência, nosso corpo
siga por esse caminho sem regresso,
siga por esse caminho sem caminho.

Ainda que parta, ainda que não regresse,
e sinta tão devagar a asfixia dos anos
fui e serei esse cedro que oscila
na borda do tanque,
e que de noite acaricia as estrelas.

Aqui, nesta ladeira, com neve ou sem neve,
está quanto penso alcançar um dia,
por mais que o tempo hoje passe
como o regato que longe murmura:
desgastando rochas, arranhando silvas,
abismado em fontes.

Nunca partirei daqui, mesmo que parta.
Serei sempre rumor, voo de pássaro
do bosque ao jardim,
da sombra até à luz.
Quero ser algo mais do que o fruto vermelho
que brilha e que amadura, e se corrompe
anunciando o verão nas cerejeiras.

Sei que jamais partirei deste jardim.
E que, mesmo partindo,
algo hei-de levar deste paraíso
para outro lado.
Para onde?
Não sei.
O júbilo que hoje sinto é tão grande
que já não creio nem sequer na morte.
Essa morte que um dia fugiu deste lugar
(acaso para o jardim dos jardins),
quando abriram o chumbo e a madeira do sarcófago,
quando arrancaram o cadáver
da tumba do Imperador.


(in Tiempo y Abismo, 2002)
CLUBE DE LEITURA
E DE ESCRITA

Continuando o trabalho desenvolvido no ano passado pela Oficina de Escrita Criativa, disponível em parte no blogue Pequenos Escritores de Santana, eis que surge um novo espaço de divulgação das produções escritas dos alunos do Ensino Básico da Escola Rodrigues Soromenho e da Escola de Santana (ambas no concelho de Sesimbra), intitulado Clube de Leitura e de Escrita (www.escritaleitura.blogspot.com). Durante este ano lectivo, a coordenação será assegurada por Sónia Correia e Maria Rosinha (em Sesimbra), por Ana Carvalho e pelo autor deste blogue (em Santana).
Os alunos e os coordenadores esperam a vossa visita, que desde já agradecem.

O CAOS (FUTURO) NA EDUCAÇÃO

Uma entrada de João Paulo Sousa no blogue Da Literatura chamou-me a atenção para uma reflexão clarividente sobre as consequências futuras da nova avaliação dos professores na qualidade do sistema educativo. O texto, publicado em duas partes no Almocreve das Petas, merece toda a atenção. Felizmente a sociedade começa a acordar.
Cabo Espichel (3)
NICOLAU SAIÃO


Chic a valer!


Conde d’Abranhos - Mas não acha você, Rabecaz, que esta evangelização das massas tem que ser conduzida com jeitinho? Apelando aos sentimentos educacionais do nosso bom povo e sendo discretos...habilidosos? Eu lá com os meus tecnologistas era assim...E, se algum deles levantava cabelo, era sem barulho que o transferia de serviço...que lhe dava uma tarefa inócua, estilo pontapé p'la escada acima... como se dizia nos tempos do compadre Salazedas.
Rabecaz - Oh Abranhos, valha-o deus! Isso são métodos de engenhocas, homem! Eu na minha ilha aprendi que com esta malta só a porrete. É o que eles entendem, além disso lá dizia o conselheiro Acácio que este povo precisa de sentir a mão de gente decidida no cachaço...senão desatam a querer descanso...e tal...e lá se nos vai a obra que tanto custou a erguer Dá-me cá um ferro! É cascar-se-lhes, p'ra bem do país que queremos continuar a ter! Faça-lhes como a Maria de Lurdes…
Dâmaso Salcede - Pois eu não concordo nem com um nem com outro! Quanto a mim isto vai ao jeito...mas com umas palavrinhas sedutoras apropriadas. Lábia e filosofia, meninos! Conversa de afagar corações, o que não significa que não se metam umas ferroadas...umas insinuaçõezinhas torpes ao gosto da maltosa! Como é que pensam que eu consigo o que quero na minha função? Ponho os ajudantes a tarimbar…suavemente. E para os trabalhos mais baixos, se fizer falta, mete-se um opinion-maker com a sua enxurrada de boa conversa a cair em cima da cabeça dos que não queiram as sopas!
Rabecaz – Eu já não acredito que as palavras salvem, como diz aquele letrista premiado. Ai a pena que eu tenho que aqui não seja a minha região! Haviam de comer poucas naquela lombeira... Nenhum desses negregados se safaria de comer no côco umas berlaitadas, como eu fiz aquela vez ao tal pescador com quem andei à porrada numa praia da capital da ilha! Comigo vai tudo raso!
Conde d’Abranhos – Você é sem dúvida um homem de sucesso, mas muito empolgado! Nestas coisas é preciso calma e tecnologia, falar-se-lhes ao sentimento de fidalguia pensadora…Um povo que andou nos mares, Rabecaz, a civilizar a pretalhada não é lá qualquer coisa, seja-se da Beira aqui do Salcede ou cá da vilória do rapaz. Temos de aproveitar os salutares sentimentos de ressabiamento do poviléu e, mansamente, encaminhá-los na direcção certa…
O que eles não podem congeminar, podia fazer-lhes mal à enxaqueca, é que no fim quem deve ficar com o bolo é cá a bela panelinha, hein?!

(Fragmento da única peça que até ao momento se conhece do grande Essa de Quelroz, aqui transcrita por um pesquisador de literaturas atónitas).
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Não há contrato nem recibos


Numa das minhas idas ao supermercado aqui do meu bairro (o Bairro Alto fidalgo e fanfarrão...) deparei com um curioso anúncio colocado numa caixa de vidro. Vejamos:
Aluga-se casa pequena com tecto abaixo do normal. Sem máquina de lavar. Semi mobilado. Dois quartos, sala, cozinha e WC. Renda 300 euros mais calção. Não há contrato nem recibos. Fica ao pé do Metro da Avenida.
Segue-se um telemóvel que começa por 961 e termina em 731 e um nome – DORIS. Completa o quadro insólito um horário para contactos das 19 às 20 horas.
Este anúncio pode ser lido como um sintoma do despudor, da impunidade e da desvergonha que grassa por aqui. Não me refiro à péssima utilização da língua portuguesa. De facto “caução” não é “calção”. “Calção” é para vestir. Mas o mais importante é a possibilidade de alguém se atrever a anunciar em público um aluguer que não fica registado em qualquer documento e cujos pagamentos não estão sujeitos ao controlo de qualquer recibo. É um triste sinal dos tempos e nem está em causa se existe mesmo essa senhora que se assina DORIS. Também não está em causa se aquele telemóvel existe mesmo. O que está em causa é a impunidade com que isto se faz à luz do dia, dentro de um supermercado no coração da cidade de Lisboa. Até parece que estamos não na Europa mas no Terceiro Mundo. Aqueles países onde tudo é irreal e qualquer pessoa pode colocar no seu automóvel um letreiro com a palavra «Táxi» a desatar logo a fazer fretes mas sem taxímetro. O problema não é ela escrever “Não há contratos nem recibos” mas sim ela poder fazer isso sem que ninguém a responsabilize pela ilegalidade que está a anunciar. E ela sabe isso muito bem.
DÍMITRA MANDÁ


Nem tu sequer

Em longínquas magníficas paisagens do negro
como pude esquecer
levaram-me até ao mais áspero branco do sol
aos contornos dispersos das ilhas de ontem
como me perdi
buscando sombras
e nem uma só árvore
nem um mar
nem tu sequer


O último mar

Não é já tempo para sonhos
nem para os trabalhos do amor
e nem sequer para as palavras.
Outrora falavas de tantas coisas falavas
e de toda a parte chegavas
no meio de aventuras de cores e de estrelas
e de paisagens marinhas
ao meu corpo chegavas.
Viagens já não existem agora;
quanto tempo passou desde o último mar.


Ausência

Vazio de luz o quarto
vazio o teu corpo
o teu rosto;
as formas silenciam por trás do negro
e lá fora o eco da chuva por sobre a noite.
Esvaziou-se de luz o quarto
o teu corpo
o teu rosto;
as minhas mãos apertam a tua ausência
e a chuva
como se perdeu também ela no meio da noite.


Dímitra Manda nasceu no Peloponeso (Grécia). Os poemas que aqui divulgados, retirados do O Momento do Amor (agora publicado na colecção UniVersos Poesia, das Edições Sempre-em-Pé, com tradução de José Carlos Marques) foram musicados por Mikis Theodorakis e cantados por Angeliki Ionatos no disco Um Mar (Mía Thálassa), de 1995.
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BEN DROR YEMINI

Nuno Guerreiro Josué transcreveu a 26 de Setembro na seu Rua da Judiaria um artigo em que todos deveríamos meditar. Foi publicado por Ben Dror Yemini no diário israelita Ma'ariv (22/9/2006) e reflecte sobre o conflito palestiniano e sobre as intervenções bélicas praticadas por israelitas e pelos vários países com religião maioritariamente muçulmana.
Para que essa leitura seja proveitosa é no entanto preciso que saibamos despir-nos de preconceitos de base, anti-semitas e pan-islamitas, que historicamente toldam a mentalidade de muitos europeus e de muitos ocidentais que não hesitam mesmo acusar os seus semelhantes de "estupidez pró-sionista" quando estes apenas tentam olhar os factos sem julgamentos prévios. Não se trata aqui de religião, mas de genocídio. Os factos falam por si.


"Há aqueles que defendem que os estados árabes e muçulmanos são imunes a críticas porque não são democráticos, mas Israel é merecedora de críticas porque tem pretensões democráticas. Argumentos destes revelam um Orientalismo paternalista no seu pior. A suposição encoberta é que os árabes e muçulmanos são as crianças atrasadas mentais do mundo. Eles podem fazê-lo. Isto não é só Orientalismo paternalista. É racismo.
Os árabes e muçulmanos não são crianças e não são atrasados mentais. Muitos árabes e muçulmanos reconhecem este fenómeno e escrevem sobre ele. Eles sabem que só o fim da auto-ilusão e o assumir de responsabilidades pode trazer a mudança. Eles sabem que enquanto o Ocidente os tratar como desiguais e irresponsáveis estará a perpetuar não só uma atitude racista, mas também a continuação das chacinas em massa.
O genocídio que Israel não está a cometer, aquele que é um libelo fraudulento, esconde o verdadeiro genocídio, o genocídio silenciado que árabes e muçulmanos estão a cometer contra si próprios. A fraude tem de acabar para que se possa olhar a realidade. Para o bem dos árabes e muçulmanos. Israel paga em imagem. Eles pagam em sangue. Se restar no mundo alguma moralidade, isto deveria ser do interesse de quem ainda tem dela alguma gota. A acontecer, seria uma pequena notícia para Israel, mas um imensa boa nova para os árabes e muçulmanos."
FRAGMENTOS DE UM RETÁBULO

Estão a partir de hoje disponíveis no Triplo V alguns poemas meus ainda não publicados em livro. São reflexões sobre diversas obras de pintura, desde anónimos dos séculos XVI e XVII até Nicolau Saião, Jorge Martins ou Diogo Pimentão, passando por Frida, Degas, Manet ou Zurbarán. Agradeço desde já a vossa visita.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


Soneto para o primeiro neto

Eu estava bem perto de ti mas não sabia
E tu nascias no Bloco da Universidade
Por isso foi tarde que rompeu a alegria
Havia obras no Metropolitano da cidade

Nasceste quando os jogos têm início
No domingo à tarde em toda a terra
Serás talvez mais um a gozar o vício
Dum jogo que é também arte de guerra

Não sabes que fui comprar uma galinha
E que fizemos com ela uma canjinha
Para que a tua mãe possa ser mais forte

Catorze dias perto de ti no Barbican
Eu a olhar essa Catedral cada manhã
Pedindo que Deus te dê saúde e sorte

O QUE MAIS CUSTA

O que mais custa em todo o processo de revisão do Estatuto da Carreira Docente não é a sua dureza, mas a falta de verdade em que muitos dos passos se baseiam.
Todos sabemos que o país não está financeiramente bem; logo, aceitaríamos os sacrifícios se os víssemos distribuídos com equidade por todas as camadas sociais e por todas as profissões, a partir de exemplos inequívocos vindos dos governantes. Mas nada disto tem sido feito. Retira-se aos mais frágeis para dar aos mais fortes, não havendo qualquer hesitação quando se trata de mentir aos portugueses ou quando se recorre à difamação de amplos sectores da administração pública.
No caso dos professores, trata-se ainda de uma estratégia pensada para torná-los bodes expiatórios do insucesso do sistema educativo, quando ao longo de décadas têm sido apenas agentes aplicadores (e pouco decisores) de políticas que sabem de antemão improdutivas ou, até, destrutivas dos alicerces da qualidade das aprendizagens. E assim se camuflam três décadas de deriva governativa que, em gradação crescente, têm conduzido a uma enorme irresponsabilização dos alunos, produzindo o desastre em que estamos mergulhados.
Há decerto maus profissionais entre os professores, como em qualquer profissão. Necessitamos de uma avaliação rigorosa do desempenho que promova os bons docentes e penalize os maus sem, no entanto, decidir à partida, de forma economicista, quantos podem atingir a excelência. Não existe, contudo, o direito de nos humilharem como se fôssemos lixo, como estratégia para a criação de uma classe docente dócil e barata, estratégia que pouco se preocupa com as consequências nefastas que tudo isto terá no real sucesso educativo dos alunos e do sistema.
GREVE

Nunca, como agora, senti tanta vontade de mudar de profissão. Se algum dia conseguir dar o salto, sentirei falta apenas dos alunos (mesmo dos mais difíceis), pois com eles tenho passado as melhores horas destes doze anos de docência.
Cada vez mais me custa aguentar os ataques de que os professores são alvo todos os dias e as mentiras que, sobre nós e sobre a nossa carreira, circulam um pouco por todo o lado. Consagrada na legislação - como desejam a ministra, os secretários de estado, o primeiro-ministro e mais alguns cidadãos mergulhados em espírito de inconfessável vingança contra um grupo profissional inteiro -, a humilhação lançada sobre os docentes é um dos principais sintomas da sociedade doente em que habitamos (como escreveu um dia Agostinho da Silva), a qual combate todos os dias aqueles (professores, artistas, escritores, pensadores livres...) que ainda conseguem estimular a liberdade entre os seres humanos e/ou denunciam os lobos vestidos de cordeiros que apenas querem destruí-la.
Por isto e por muito mais, faço greve amanhã. Não sou grande adepto desta forma de luta, mas tem mesmo que ser, mesmo que me saia do bolso! Mais do que nunca, demitir-me neste momento seria compactuar com quem nos deseja humilhar, porque só assim consegue governar em verdadeiro absolutismo.

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


O tempo das antigas emoções

Hoje folheei um livro de Marina Tavares Dias cujo título é Sporting Clube de Portugal – Uma história diferente. O facto de folhear o volume, página a página, fotografia a fotografia, leva-me a pensar como deve ter sido difícil fazer um trabalho de 320 páginas contando hoje a história de um Clube fundado em 1906. No passado, no passado de todos nós, havia poucas fotografias. Quem tirava retratos era quase sempre em ocasiões especiais. Ia-se ao retratista que tinha um estúdio decorado com motivos próprios para cada idade: crianças, adolescentes, militares, noivos, bodas de ouro. Havia menos fotografias mas havia mais emoções. Viajava-se menos mas liam-se muitos livros de viagens.
Aqui há tempo soube de uma história deliciosa passada nos anos quarenta com o escritor Dinis Machado e o seu pai, o jornalista Oliveira Machado. O pai levou o filho à Rua Jardim do Regedor para lhe mostrar a Sala de Troféus do Benfica. Pensava o dito senhor que a criança, depois de ter levado um banho de taças, troféus e medalhas, acabaria por se render ao Benfica, mas não. Questionado pelo pai, o jovem Dinis Machado afirmou com toda a força da simplicidade: «Pai, sou do Sporting porque apertei a mão ao Jesus Correia!» Era a força das emoções e o pai do jovem Dinis, apesar da sua força de pai e de ser o dono do restaurante «Farta Brutos», nada conseguiu do filho que já estava desde pequenino vacinado para ser um grande sportinguista. Hoje os miúdos têm tudo desde as play station a toda a espécie de brinquedos. Os miúdos do passado tinham a força das antigas emoções, as chamadas emoções para toda a vida. E para além da vida. Jesus Correia já morreu mas Dinis Machado continua a ser «leão».
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FERNANDO SAVATER

“[...] Os medievais falaram com razão de dois tipos de liberdade política: a libertas a coacione, que nos emancipa da tirania que impede participar igualitariamente na gestão da coisa pública, e a libertas a miseria, que salva das imposições infligidas pela falta de recursos no mundo do ‘tanto tens, tanto vales’. Em demasiadas ocasiões, é a miséria (económica ou cultural) que condiciona inevitavelmente a submissão de muitos a tiranias ‘democráticas’ impostas pelos beati possidentes. Hoje em dia, provavelmente as maiores diferenças entre os livres de facto e os livres só de nome são estabelecidas pelo acesso à informação: para ser livre é preciso ‘saber’ mais do que aqueles que não o são e controlar os meios de ‘comunicação’ para difundir tanto o conhecimento como as falsificações interesseiras que geralmente ocupam o seu lugar...”

(in A Coragem de Escolher, 2003)
LIBERDADE E DIGNIDADE

A liberdade (que a tantos provoca engulhos), emanação do livre arbítrio, mantém uma relação interdependente com a responsabilidade. Desresponsabilizar – desculpabilizando o erro, o pecado ou a monstruosidade, como é moda relativista, psicologista, multicultural e/ou pós-moderna do nosso tempo – é mutilar a liberdade do ser humano, eliminando lentamente a sua dignidade enquanto indivíduo.

Cabo Espichel (2)

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RODRIGO DE LIMA

“Portugal é como a igreja de São Torcato em Guimarães. Com fachada de forte granito, está rachada de alto a baixo. Ameaça ruína desde a fundação, mas não há sismo que a faça cair. Entretanto, lá dentro, vai-se venerando um cadáver mumificado com identidade muito duvidosa.”

(in Diário Inacabado, 1983)

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA


O grito

A beleza nunca é clara
no modo em que se aproxima
Somos com certas coisas
um mundo ainda terrível
incapaz de explicações
sem nenhuma das certezas
mesmo aquelas, ínfimas, que sustentam
uma palavra, um olhar ou um grito

Só nos resta a maneira
mais pura:
de igual para igual
tão desconhecidos


O poema

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.


(Poemas retirados de A Noite Abre Meus Olhos, recentemente editado pela Assírio & Alvim, onde o autor reuniu a sua poesia até agora publicada.)
DEPOIS DE HOSPITAL ROUBADO...

... trancas na porta. Depois de tanta cobardia perante o regime estalinista norte-coreano, a bomba nuclear era inevitável. Agora não há remédio. Quer queiramos quer não, mais tarde ou mais cedo acontecerá o mesmo com o Irão. A cobardia tem sido idêntica. Afinal são muito parecidos: qual a diferença entre o ateísmo assassino e a pseudo-religiosidade terrorista? E não venham os detergentes do costume tentar lavar a atitude destes países. Quando as bombas estoirarem, infelizmente, todos seremos vítimas.

Cabo Espichel (1).

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


O pão de São Roque


O meu fim-de-semana foi muito especial.
Na sexta-feira à noite ouvi desabafos de uma empregada de consultório a propósito da maldade das pessoas. Desde as velhas que, tendo consulta às 7 da tarde aparecem às 4 e meia, até ao caso mais grave de um grupo que se insurgiu contra o facto de a médica de cardiologia ter parado tudo quando soube que uma senhora na consulta de oftalmologia estava a começar a fazer um enfarte. As outras começaram a protestar porque não havia direito de uma pessoa passar à frente da sua vez.
No sábado à noite fui ao jantar de aniversário de um grande amigo da vida militar. Pois eu, entre a estação de comboios de Santa Apolónia e o rio Tejo, tive dificuldades em acertar com o restaurante que tem a fama e o proveito de ser um dos melhores do País e da Europa. Dois maloios, dois vacões, dois bardinos que estavam a receber víveres num restaurante mesmo ao lado disseram-me que não sabiam onde era esse tal restaurante famoso em todo o País e em toda a Europa. Fiquei revoltado sobretudo porque além de demonstrarem falta de categoria como empregados de um pequeno e vulgar restaurante não perceberam que eu, quando ando à procura de um restaurante excepcional, não vou desistir de o encontrar só porque dois bardinos, dois vacões e dois maloios fingem que não sabem.
No domingo recebi o pão de São Roque na missa da manhã na Igreja de São Roque. Percebi melhor a dimensão do santo que era sobrinho do presidente da Câmara de Montpellier e partiu da sua cidade para ajudar os pobres dando-lhes pão. Os pobres de espírito do consultório e do pequeno restaurante entre Santa Apolónia e o Tejo, esses já não há São Roque que lhes possa valer.
LI E CONCORDEI COM…


JEAN-LUC NANCY

“A maldade não odeia tanto esta ou aquela singularidade: odeia a singularidade como tal e a relação singular das singularidades. Odeia a liberdade, a igualdade e a fraternidade, odeia a partilha, odeia partilhar.
E este ódio é o da própria liberdade (é também, pois, o ódio das próprias igualdade e fraternidade; odeia-se a partilha e fica-se próximo da ruína). Não é um ódio de
si mesmo, como se a liberdade já estivesse aí e pudesse chegar a detestar-se, no entanto, é o ódio do ‘si mesmo’ singular, o que é a existência da liberdade e a liberdade da existência. O mal é o ódio da existência como tal. […] Mas neste sentido, o mal está no existente como a sua possibilidade mais própria de recusa da existência.

(in A Experiência da Liberdade, 1996, cit. por Fernando Savater no seu livro A Coragem de Escolher, 2003)
VALE DOS HOMENS


António Pedro,
meu avô


desapareceu a partir dessa janela.
a pele liquefez-se. a voz procurou
água que conseguisse desenhar
as ervas, o arco que divide o mundo.

o olhar perde-se por entre as árvores.
vaza a vista, a cor da madeira, o cabelo
que semeaste na escada.

distante a horta, o poço, o canto do lume.
o vento grava neste porto
a navalha que nos corta as veias.
subia procurando um rosto,
um dedo apenas, os frutos desta
e de outra terra.

desapareceram a partir desta janela
a pele, a voz, o olhar, a cor, a manhã.

o elevador pára. perde-se
neste porto

a alegria da viagem

(sem retorno).
AVALIAÇÃO E IMOBILISMO

Não me oponho a um maior rigor na avaliação dos professores de todos os níveis de ensino, desde que este corresponda a um olhar justo sobre os docentes. Exames nacionais no ingresso e um maior peso do currículo e do mérito na progressão são mesmo necessários.
Não posso aceitar, no entanto, um sistema que penalize os profissionais do ensino por usufruirem de um direito legal (a falta justificada), sobretudo quando os gerentes do Ministério da Educação não parecem estar interessados na criação de mecanismos legislativos que permitam a troca de aulas e a reposição das mesmas em qualquer momento do ano lectivo.
Aceito ainda menos que, nos Ensinos Básico e Secundário, se institua uma promoção idêntica à do Ensino Superior, que tantos malefícios tem causado na qualidade do mesmo, como recentemente provou um estudo internacional independente. O sistema piramidal - escolhido pela tutela de Maria de Lurdes Rodrigues porque levará a grandes poupanças financeiras - causará nas escolas apenas um grande imobilismo e, consequentemente, uma crescente falta de empenho entre os docentes, impedidos de progredirem porque os lugares cimeiros estão ocupados por colegas mais velhos (o que não significa "mais competentes").

Luís Veiga Leitão
– Uma memória feliz
em algumas histórias exemplares

De Luís Veiga Leitão guardo diversas memórias, todas felizes. Comecei por ter o gosto de incluir um poema seu no livro O Trabalho – Antologia Poética que organizei com Joaquim Pessoa e Armando Cerqueira para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas. Mais tarde encontrámo-nos em Vila Viçosa num encontro poético promovido por Orlando Neves e no qual participavam (entre outros) Mendes de Carvalho, Raul de Carvalho e Manuel Lopes. Num divertido almoço com um grupo de senhoras que gravitavam à volta dos poetas e queriam entrar no Círculo da Poesia Portuguesa, uma das senhoras dirigiu-se a Luís Veiga Leitão (que ostentava o seu nome na camisa e era de longe o poeta mais bonito do nosso grupo) perguntando com alguma ingenuidade: «O senhor fez parte do processo dos 254 e esteve preso em Caxias, não esteve?» A resposta do nosso poeta foi de um fino humor que arrasou por completo a senhora: «Não minha senhora! Eu sou muito mais antigo. Eu estive preso mas em São Julião da Barra!» A senhora em vez de sorrir com a piada que colocava Luís Veiga Leitão ao lado de Gomes Freire de Andrade no século XIX, respondeu apenas: «Desculpe!»
Uma vez pedi-lhe um depoimento sobre o poeta Daniel Filipe e ele escreveu um texto enxuto e sem emendas, um texto manuscrito entenda-se. Saiu numa edição especial do jornal Poetas e Trovadores que dirigi com Joaquim Pessoa e Travanca-Rêgo em 1982 e 1983. Ainda hoje guardo esse belo depoimento sobre Daniel Filipe – um poeta quase esquecido e que é também um brilhante cronista.
Luís Veiga Leitão distinguia os amigos com cartas escritas à mão num modelo com um pastor a tocar flauta. Uma das suas cartas foi por mim oferecida para um leilão a favor da Associação Portuguesa de Escritores e foi arrematada no Fórum Picoas pelo galerista que era proprietário da Galeria 111 no Campo Grande.
Uma última história que recordo com ternura: o desabafo que teve para comigo em Moimenta da Beira depois de uma homenagem da Câmara Municipal que colocou uma placa na casa onde o poeta nasceu: «Não se sabe. Não se sabe. A minha tia tem a ideia de que foi ali mas isso também não interessa muito.» E é verdade. O que interessa é que foi em Moimenta que nasceu o poeta Luís Veiga Leitão, um grande poeta português do século XX e de sempre. Uma das vozes mais puras e genuínas da nossa tradição lírica.
Isto, já agora, se eu não estou em erro...

JOSÉ DO CARMO FRANCISCO

NICOLAU SAIÃO


Em louvor dos Palhaços


Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de ilusionistas – mas sim por no Outono a memória parecer mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo juvenil de circo, fremente e encantado.
Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, no decorrer duma matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estórinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.
E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-violino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho podia acontecer?
E – posto que agora por fora – as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução…)?
Deixem que me lembre desses anos de vinho e rosas… Em Portalegre por todo o Rossio, em frente do antigo campo da bola, por detrás da belíssima cascata do jardim barroco infelizmente passado à estória da História, quando ainda lá havia uma esplanada de Café sob um cedro do Líbano, onde pelas tardes a rapaziada hoje madura ia deslumbrar-se nos serões de província…
Deixem que me recorde - como se, com vossa licença, tasquinhasse expeditamente um pacote de amendoins, antes de entrarem os domadores, os imitadores, os trapezistas e outros acrobatas.
JOSÉ DO CARMO FRANCISCO


As flores estão sempre frescas


As recentes antevisões e notícias da aproximação de furacões e de tempestades tropicais perto das diversas ilhas dos Açores trouxeram-me a memória de uma outra tempestade mas esta no Rio Tamisa. Foi no dia 20 de Agosto de 1989 que o navio Marchioness naufragou no rio que atravessa Londres muito perto da catedral de Southark. Nesse terrível desastre perderam a vida dois portugueses – António Vasconcelos e Domingos Vasconcelos. O primeiro tinha 26 e o segundo 28 anos de idade. Claro que nada acontece por acaso e eu descobri esta tragédia que me comoveu pela simples razão de que a minha filha mais velha viveu alguns anos no bairro de Southark. Nada me liga a essas pessoas que perderam a vida no seu ponto talvez mais esperançoso e bonito – o caminho da maturidade. Em termos mais ou menos simples são estes os quatro primeiros estádios da nossa vida. Os sete anos marcam a saída da primeira infância, os catorze a entrada na adolescência, os vinte e um a entrada na idade adulta e os vinte e oito a chegada à maturidade. Nada me liga de modo directo mas tudo afinal me sugere uma aproximação. Porque todos falamos português, porque somos todos membros da família da humanidade. Quem sabe se eles não eram açorianos; há muitos Vasconcelos nos Açores.
Resolvi fazer as férias de 2006 na cidade de Londres. Foram vinte e quatro longos dias que me custaram os olhos da cara. Em Londres é tudo caro a começar pelos cafés. O ano de 1989 não foi assim há tanto tempo. Às vezes parece que foi ontem. No passado mês de Agosto lá estive na Catedral de Southark para lhes prestar a minha discreta homenagem. E uma vez mais reparei que as flores estão sempre frescas.

NO CENTENÁRIO DE AGOSTINHO

No passado fim-de-semana realizou-se com sucesso e assinalável assistência o colóquio "Agostinho da Silva e o Espírito Universal". O evento, integrado nas comemorações do centenário do nascimento do filósofo e poeta de Barca de Alva, teve lugar na Biblioteca Municipal de Sesimbra e contou com comunicações de Paulo Borges, Luís Paixão, Joaquim Domingues, Manuel Patrício, Nicolau Saião, António Cândido Franco, Pedro Sinde, Jorge Preto, António Telmo e do coordenador deste blogue.
Em homenagem, simples, ao autor de Herta, Teresinha e Joan deixo aos leitores algumas das suas quadras, verdadeiros aforismos de intensa sabedoria.


Se estas quadrinhas não prestam
com certeza as compus eu
mas se boas foi poeta
além de mim que mas deu.

Acordo e sai um poema
alguém mo sonhou de noite
só preciso não ser nada
para que a musa se afoite.

Em mim tenho o mundo inteiro
e mais que tudo as estrelas
é procurá-las no céu
o que me impede de vê-las.

É só bem dentro de nós
que o projecto se anuncia
se retoma se reforma
e se solta à luz do dia.

Se não sabes o caminho
e a sorte nenhum prefere
toma então pelo mais duro
é esse o que Deus te quere.

Acho que Deus não escreve
e também que Deus não fala
e que nos sustenta vivos
a vida que nele cala.

Dizendo que é só amor
fazes Deus menor que Deus
cercas o ilimitado
dos limites que são teus.

Ó bela cavalaria
cavalo bem arreado
para o Ser galope largo
para o Ter freio apertado.

Se lançaste a tua rota
à constelação do ser
cuidado com o teu corpo
porta aberta para o ter.

Quanto morre o que viveu
nada se desequilibra
força emana cá e lá
Deus a si próprio transmigra.
LI E CONCORDEI COM...

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO


“[...] Substituímos a beleza pela velocidade e em vez de deixarmos ao futuro uma Acrópole de mármore ou uma Catedral em pedra deixamos um shopping de betão e asfalto. Passámos a viver num mundo cada vez mais veloz mas também cada vez mais horroroso. Horroroso e doente, que o horror é o rosto da doença e da morte. Por isso, um dia, vamos apenas ficar na mão com a caveira chupada da Terra. Quem não vê no desaparecimento das espécies e no esgotamento das matérias-primas as escoriações cadavéricas do rosto da Terra? Estamos neste momento a devorar a polpa da Terra, que a acção de comer na era da velocidade espacial é devorar. E vamos assim deixar aos nossos netos o caroço, que eles vão roer desesperados, lastimando o egoísmo brutal dos nossos políticos e economistas de hoje. Que é o betão senão o caroço sem semente da Terra, o osso esburgado e seco que vai partir os dentes dos nossos descendentes? [...]”

(in Viagem a Pascoaes, Ésquilo, 2006)