NOS 70 ANOS DA MORTE DE
FERNANDO PESSOA
Faz hoje setenta anos que morreu Fernando António Nogueira Pessoa, num quarto do Hospital de São Luís dos Franceses com vista sobre o Tejo. Nesse lugar pequeno permanece ainda hoje uma gravura com a efígie do poeta e com a reprodução do manuscrito de um poema seu. Como homenagem ao autor d’ O Guardador de Rebanhos e ao homem que um dia aconselhou um garoto seu vizinho a não se “deixar vencer por medíocres”, “Estrada do Alicerce” publica hoje três poemas da sua imensa obra (dois dos quais os últimos que escreveu), traduzidos da língua inglesa por Luísa Freire.
O POEMA
Um poema dorme em meu pensamento,
Capaz de expressar minha alma inteira.
Vago eu o sinto, como som ou vento,
Mas já talhado em forma derradeira.
Nem estância ou verso ou palavra tem.
Tal como o sonho ele não tem lugar.
Um mero senti-lo, que difuso vem,
Como névoa feliz cercando o pensar.
Neste mistério noite e dia assim
Eu o sonho, o leio e o soletro,
E na berma das palavras sempre em mim
Parece pairar vago e completo.
Sei bem que ele nunca será escrito.
Também sei que não sei o que ele é.
Mas só de sonhá-lo, feliz já fico,
E ventura é ventura, falsa até.
(in O Rabequista Mágico)
*****
Ele ‘screveu óptimos versos
Estando sempre embriagado.
Pior podia ter sido.
Podia escrever piores versos
Mentalmente em melhor estado.
Isto assim está tudo errado.
Nós nunca estamos cientes
De quem é forte ou é fraco
Ou assim-assim somente.
Pertencendo à humanidade, vivemos e desejamos
Mas sempre nos preocupamos.
Nunca nos vem a razão
Excepto se nos chegar,
De súbito e para sempre, aquela real visão
Do que nos puder salvar;
E isso é algo jogado
Entre o que é ou tenta ser,
Ou algo que não lembramos
Ou algo que é já perdido,
Ou algo que ‘speramos ver,
Ou só nada, sem sentido.
[18/07/1935]
*****
O sol feliz está a brilhar,
O campo é verde e contente,
Mas tenho o peito a ansiar
Por algo que está ausente.
Anseia por ti somente,
Anseia por beijos teus.
Não importa se és fiel
A isto.
O que importa és tu somente.
Sei que o mar está cintilante
Debaixo do sol de verão.
Sei que as ondas são brilhantes,
Cada uma e todas são.
Mas ‘stou de ti afastado,
Oh, dos teus beijos ausente!
E isso é o que há de verdade
Nisto.
O que importa és tu somente.
[22/11/1935]
ESTA VIDA DE PROFESSOR (2)
Não fiz greve no dia 18 de Novembro. Fiquei contudo indignado com a manobra de diversão do Ministério da Educação, que pôs em causa a boa imagem dos professores – no momento em que estes expressavam livremente as suas inquietações profissionais. Perante a greve, o Secretário de Estado Valter Lemos poderia ter vindo a público contradizer os motivos que levaram milhares de docentes para a rua e que provocaram o fecho de quase cinquenta por cento das escolas. Seria legítimo e aceitável. Mas não. Preferiu cuspir sobre os professores, divulgando um estudo (?) que terá descoberto um “grande” absentismo entre eles.
Para ser sério, o documento deveria ter vindo na companhia dos índices de absentismo de toda a Função Pública e dos responsáveis por cargos políticos. Só assim poderíamos comparar para formarmos uma opinião sólida. Saberíamos então se os professores faltam mais do que os médicos, do que os juízes, do que os empregados das finanças, do que os deputados, do que os polícias... e porquê.
Admitamos, no entanto, que tal estudo abrangente não interessaria ao senhor Secretário de Estado (hipótese que se afigura provável, tanto mais que só os professores faziam greve...). Ainda assim, o documento em causa revela uma honestidade ínfima. Para que se vislumbrasse, o responsável do Ministério teria que explicar aos portugueses os motivos que levam os professores a faltar. Sem estes elementos, há quem possa acreditar na existência de manobras impróprias de uma democracia – mais comuns em regimes cuja acção política se baseia não no debate cívico, mas no assassinato de carácter de cidadãos individuais ou de grupos profissionais, religiosos e políticos.
Se não, vejamos. Salvo nalguns casos especiais, aos professores “aplica-se a legislação geral em vigor na Função Pública em matéria de férias, faltas e licenças”, conforme afirma o artigo 86º do Estatuto da Carreira Docente. Ora, essa legislação é clara no que respeita à ausência ao serviço do funcionário. Só há duas situações possíveis: falta justificada e falta injustificada.
Desde que justifiquem legalmente a sua ausência, quando faltam os professores usufruem de um direito que a Lei lhes confere. Convém lembrar aos leitores – já que Valter Lemos não quis fazê-lo – que as razões da falta podem ser diversas (previstas no artigo 21º do Regime Jurídico das Férias, Faltas e Licenças dos Funcionários e Agentes da Administração Pública): casamento, maternidade ou paternidade, nascimento de descendente, consultas pré-natais e amamentação, adopção de menor, falecimento de familiar, doença, doença prolongada, acidente em serviço ou doença profissional, reabilitação profissional, tratamento ambulatório, assistência a familiares, isolamento profiláctico, estatuto de trabalhador-estudante, equiparação a bolseiro, doação de sangue, cumprimento de obrigações legais, prestação de provas de concurso, desconto nas férias, etc.. (Se não justificarem as suas faltas, sofrerão várias penalizações: perda de remunerações correspondentes aos dias de ausência, desconto nos dias de férias do ano civil seguinte, desconto para efeitos de antiguidade, de progressão e de concurso, não esquecendo o desconto no tempo necessário para a aposentação.)
Perante tudo isto, das duas, uma. Ou Valter Lemos quis esbater os motivos da greve através de um grave ataque à imagem pública dos professores, ou, então, preparou alguma mudança legislativa, retirando direitos aos docentes. Já estou a ver o cenário... Ao contrário dos outros servidores do Estado e trabalhadores(com eles não se preocupou), os professores deixarão de ter lua-de-mel, não ficarão em casa quando os filhos nascerem, serão proibidos de ficarem doentes, serão obrigados a encontrarem amas-de-leite para os seus bebés, não poderão cuidar de familiares, não irão ao funeral destes, não poderão tirar novos cursos, não poderão dar sangue, serão impedidos de testemunhar em tribunal, não poderão receber formação, estarão impedidos de tratarem de assuntos pessoais inadiáveis...
Pena é que Valter Lemos não pense em dar aos professores do Básico e do Secundário o mesmo direito que os docentes do Ensino Superior têm: o de negociarem com os alunos novas datas para aulas, quando têm que faltar. Tenho a certeza: o absentismo reduzir-se-ia. Porque a grande maioria dos professores gosta da profissão que tem – e só falta às suas aulas quando não pode deixar de fazê-lo.
Não fiz greve no dia 18 de Novembro. Fiquei contudo indignado com a manobra de diversão do Ministério da Educação, que pôs em causa a boa imagem dos professores – no momento em que estes expressavam livremente as suas inquietações profissionais. Perante a greve, o Secretário de Estado Valter Lemos poderia ter vindo a público contradizer os motivos que levaram milhares de docentes para a rua e que provocaram o fecho de quase cinquenta por cento das escolas. Seria legítimo e aceitável. Mas não. Preferiu cuspir sobre os professores, divulgando um estudo (?) que terá descoberto um “grande” absentismo entre eles.
Para ser sério, o documento deveria ter vindo na companhia dos índices de absentismo de toda a Função Pública e dos responsáveis por cargos políticos. Só assim poderíamos comparar para formarmos uma opinião sólida. Saberíamos então se os professores faltam mais do que os médicos, do que os juízes, do que os empregados das finanças, do que os deputados, do que os polícias... e porquê.
Admitamos, no entanto, que tal estudo abrangente não interessaria ao senhor Secretário de Estado (hipótese que se afigura provável, tanto mais que só os professores faziam greve...). Ainda assim, o documento em causa revela uma honestidade ínfima. Para que se vislumbrasse, o responsável do Ministério teria que explicar aos portugueses os motivos que levam os professores a faltar. Sem estes elementos, há quem possa acreditar na existência de manobras impróprias de uma democracia – mais comuns em regimes cuja acção política se baseia não no debate cívico, mas no assassinato de carácter de cidadãos individuais ou de grupos profissionais, religiosos e políticos.
Se não, vejamos. Salvo nalguns casos especiais, aos professores “aplica-se a legislação geral em vigor na Função Pública em matéria de férias, faltas e licenças”, conforme afirma o artigo 86º do Estatuto da Carreira Docente. Ora, essa legislação é clara no que respeita à ausência ao serviço do funcionário. Só há duas situações possíveis: falta justificada e falta injustificada.
Desde que justifiquem legalmente a sua ausência, quando faltam os professores usufruem de um direito que a Lei lhes confere. Convém lembrar aos leitores – já que Valter Lemos não quis fazê-lo – que as razões da falta podem ser diversas (previstas no artigo 21º do Regime Jurídico das Férias, Faltas e Licenças dos Funcionários e Agentes da Administração Pública): casamento, maternidade ou paternidade, nascimento de descendente, consultas pré-natais e amamentação, adopção de menor, falecimento de familiar, doença, doença prolongada, acidente em serviço ou doença profissional, reabilitação profissional, tratamento ambulatório, assistência a familiares, isolamento profiláctico, estatuto de trabalhador-estudante, equiparação a bolseiro, doação de sangue, cumprimento de obrigações legais, prestação de provas de concurso, desconto nas férias, etc.. (Se não justificarem as suas faltas, sofrerão várias penalizações: perda de remunerações correspondentes aos dias de ausência, desconto nos dias de férias do ano civil seguinte, desconto para efeitos de antiguidade, de progressão e de concurso, não esquecendo o desconto no tempo necessário para a aposentação.)
Perante tudo isto, das duas, uma. Ou Valter Lemos quis esbater os motivos da greve através de um grave ataque à imagem pública dos professores, ou, então, preparou alguma mudança legislativa, retirando direitos aos docentes. Já estou a ver o cenário... Ao contrário dos outros servidores do Estado e trabalhadores(com eles não se preocupou), os professores deixarão de ter lua-de-mel, não ficarão em casa quando os filhos nascerem, serão proibidos de ficarem doentes, serão obrigados a encontrarem amas-de-leite para os seus bebés, não poderão cuidar de familiares, não irão ao funeral destes, não poderão tirar novos cursos, não poderão dar sangue, serão impedidos de testemunhar em tribunal, não poderão receber formação, estarão impedidos de tratarem de assuntos pessoais inadiáveis...
Pena é que Valter Lemos não pense em dar aos professores do Básico e do Secundário o mesmo direito que os docentes do Ensino Superior têm: o de negociarem com os alunos novas datas para aulas, quando têm que faltar. Tenho a certeza: o absentismo reduzir-se-ia. Porque a grande maioria dos professores gosta da profissão que tem – e só falta às suas aulas quando não pode deixar de fazê-lo.
Nicolau Saião
(ilustração de Aldo Alcota - Chile)
“A saudade é a homenagem que a alma do presente presta à alma do passado”
Edmund Burke
A saudade, segundo os peritos e os manuais académicos da especialidade, é um sentimento genuinamente português, embora também exista - é claro - na alma de qualquer cidadão estrangeiro.
Presente nos versos de Bernardim, de Camões, de Garrett, de Teixeira de Pascoaes, também se patenteia em trechos de Camilo, de Eça, de Rodrigues Miguéis, de Vergílio Ferreira, de Branquinho da Fonseca e em tantos mais prosadores, sem esquecer dramaturgos ou cineastas os mais diversos.
A saudade...É um sentimento terno, profundo, onde se mescla a melancolia e o enlevo pelos tempos idos – uma espécie de mistura de nostalgia com deslumbramento e recordação.
Foi isso que senti, dias atrás, ao atender um par de telefonemas, um deles já bem dentro da noite bendita e dois mails a descompor-me. Os quais, apesar de anónimos e naturalmente intempestivos, tiveram o condão de me despertar o doce sentimento da saudade de tempos passados quando, nos meados de noventa e com esta característica interventiva que Deus me deu, exercia a crítica frontal a gentes desvairadas numa das rádios locais e num semanário do Alentejo, provocando idênticas manifestações...salafrárias.
Confesso que fiquei comovido e algo nostálgico. A saudade que eu já tinha de receber, em frases sugestivas na sua coloração específica, estas comunicações estimulantes! Alegremente, entendo-as como a comprovação de que os textos que dou a lume por aqui e por ali estão a calar fundo na (in)consciência de certa gente mais ou menos letrada (uma vez que sabe ler o que se escreve...).
No fundo, o desvelo desta “rapaziada” pode constituir boa bitola para qualquer cronista aquilatar da repercussão dos escritos em que, como se diz em português de lei, faz questão de “chamar os bois pelo nome”.
Bem hajam, rapaziada, pois assim fica-se sabendo que o que dizemos e escrevemos não tomba em orelhas moucas!
E assim sendo, digo com enlevo a esses meus anónimos “admiradores”: não pensem que perdem o vosso tempo. Pelo contrário! A vossa comunicaçãozinha, apesar de algo sórdida e quiçá um pouco abjecta, não cai em saco rôto: de facto, tem o valor de positivamente me dizer que devo continuar a despertar-vos “ternura” e atenção mediante as minhas pobres laudas. Que procurarei aperfeiçoar.
A saudade que eu já tinha destes carinhos!
(ilustração de Aldo Alcota - Chile)
SAUDADES
“A saudade é a homenagem que a alma do presente presta à alma do passado”
Edmund Burke
A saudade, segundo os peritos e os manuais académicos da especialidade, é um sentimento genuinamente português, embora também exista - é claro - na alma de qualquer cidadão estrangeiro.
Presente nos versos de Bernardim, de Camões, de Garrett, de Teixeira de Pascoaes, também se patenteia em trechos de Camilo, de Eça, de Rodrigues Miguéis, de Vergílio Ferreira, de Branquinho da Fonseca e em tantos mais prosadores, sem esquecer dramaturgos ou cineastas os mais diversos.
A saudade...É um sentimento terno, profundo, onde se mescla a melancolia e o enlevo pelos tempos idos – uma espécie de mistura de nostalgia com deslumbramento e recordação.
Foi isso que senti, dias atrás, ao atender um par de telefonemas, um deles já bem dentro da noite bendita e dois mails a descompor-me. Os quais, apesar de anónimos e naturalmente intempestivos, tiveram o condão de me despertar o doce sentimento da saudade de tempos passados quando, nos meados de noventa e com esta característica interventiva que Deus me deu, exercia a crítica frontal a gentes desvairadas numa das rádios locais e num semanário do Alentejo, provocando idênticas manifestações...salafrárias.
Confesso que fiquei comovido e algo nostálgico. A saudade que eu já tinha de receber, em frases sugestivas na sua coloração específica, estas comunicações estimulantes! Alegremente, entendo-as como a comprovação de que os textos que dou a lume por aqui e por ali estão a calar fundo na (in)consciência de certa gente mais ou menos letrada (uma vez que sabe ler o que se escreve...).
No fundo, o desvelo desta “rapaziada” pode constituir boa bitola para qualquer cronista aquilatar da repercussão dos escritos em que, como se diz em português de lei, faz questão de “chamar os bois pelo nome”.
Bem hajam, rapaziada, pois assim fica-se sabendo que o que dizemos e escrevemos não tomba em orelhas moucas!
E assim sendo, digo com enlevo a esses meus anónimos “admiradores”: não pensem que perdem o vosso tempo. Pelo contrário! A vossa comunicaçãozinha, apesar de algo sórdida e quiçá um pouco abjecta, não cai em saco rôto: de facto, tem o valor de positivamente me dizer que devo continuar a despertar-vos “ternura” e atenção mediante as minhas pobres laudas. Que procurarei aperfeiçoar.
A saudade que eu já tinha destes carinhos!
o sopro, o ventre, a imagem
(Daniel Costa)
- Guardei, minha mãe, na tua voz o último voo devorado pelo mar. Seccionado o coração, tentei elevar perante o vento o segredo da fala e da memória, a circulação da carne sobre as ondas – sem ver sequer que não podia atingir com tão frágil instrumento o calor dos líquenes e da tua mão. Sobre a montanha falava a linguagem dos pássaros (ou dos anjos). Vestido de negro, guardava sob o cabelo a velocidade e o horizonte. Ficava-me longe a nascente. A terra devorada por esta habitação. Por todas as moradas que o sopro fazia(m) recuar. Nada ficou desse tempo. Não mais respondi à mensagem nascida a poente. Fotografei nesse segundo o prado e a tristeza. O vendaval sem voz durante a tarde. Que viagem sobrou da ilusão? Cortei o fio derradeiro para subir, sem medo, os nove degraus do firmamento. Saí dessa caverna para te deixar a minha voz, o meu vento e o meu segredo. Deixei na escuridão a luz e a alma para com elas alumiar o corpo inteiro que vou desfazendo nos teus olhos para melhor reconstruir o universo.
Guarda, minha mãe, na tua voz esse voo nascido sobre o mar. Assim continuarei decifrando a corrente que levou desta ilha à tua ilha a flor da noite sobre a noite. A nave retorna em silêncio ao útero que um dia devorei. O asfalto rebenta à nossa porta fazendo crescer no coração a planta desta casa onde vivo. Fotografei contigo ruínas e vestígios desse teatro do mundo, quase a despenhar-se no oceano. Recolhemos os dois pedaços de tijolo e de argamassa, telhas há muito tempo sem água, pedaços de madeira em que o fogo pintara a inscrição do medo. Lembras-te, mãe? De súbito ficámos ambos escutando o sopro e o sangue – dissolvendo a floresta encoberta pelas ondas. Nesse dia guardei na tua voz o fogo e o alimento. Soube então que, mais tarde ou mais cedo, teria que esculpir nesse ventre a minha imagem, salvando para sempre do relâmpago o meu corpo, a minha fome – essa memória.
(Na imagem: uma pintura de Daniel Costa. Quem desejar conhecer outras obras deste jovem artista, infelizmente já falecido, poderá visitar o sítio das Edições Vendaval, incluido na lista de links.)
a carne, o campo, a solidão
(Francisco Bugalho e Cristovam Pavia)
- Não pude, meu filho, receber no peito a carne e a madeira. Nesta terra reservei de antemão o espaço necessário para aumentares comigo o fogo em que fui depositando a minha sede. Perdeste a chave, eu sei. Mas fertilizaste com a tua mão o rosto dessa escultura virada a nascente. Na montanha, a água do tanque ficou límpida. Nela entalhaste o oiro e a agonia. O medo desfez a porta. Colocou sobre os músculos o lintel dessa torre, como se fora um tronco de carvalho. O líquido assentou no coração. Só então pudeste beber desse cálice esculpido pelo mar e pela sombra.
- Recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. Procurei nesta terra um veio de água para lavar e alimentar o coração. O campo enegrecia. Fui escutando, quando não conseguia vigiar, essa ponte sobre o mundo. Que lugar me pertencia? Sem olhos, o verbo toldava o movimento. A água corria. Entre os lençóis postos de novo. Colei retratos de gente. Desenhei mapas, paisagens e rostos. Anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo. Contudo, o campo enegrecia. Transportei a humanidade inteira no peso dos ossos e da carne. Atravessei a corrente transportando sobre os ombros a viagem e o desespero. Em silêncio, tentei regressar. A semente ardia entre os dedos queimando lentamente a pele e as unhas. Espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne para com ela fertilizar o vale e a ribeira. Sobre o arco registei o cântico dos mortos. Procurei uma paisagem para alimentar o coração. Diante da imagem tive de novo o corpo reunido. O sangue desenhou no mármore o canto da devesa. Entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.
POETAS NOVOS DE PORTUGAL
SANDRA COSTA
1.
Arestas de agitação profunda
como um esquecimento.
2.
O que me dói no chão [e nas palavras]
é o latejar de uma fuga que não existe.
3.
Nenhuma flor [ou o fulgor do medo].
4.
O silêncio crepita
e a solidão do mundo é maior.
(in Nenhuma Flor)
*****
Repercutem os nomes abatidos
a luz atravessada do avesso
as películas que ficam do absoluto dos poemas
o ofício da vigília dentro do sono mais profundo
- designações trémulas do sagrado
ou um par de asas a corromper o silêncio –
(idem)
*****
O que torna
o poema
imperceptível
é
este ar
de Outono
que tem
- vela-se o tempo
como uma sombra –
(idem)
Sandra Costa (S. Mamede do Coronado, Trofa, 1971) é professora de História nos Ensinos Básico e Secundário. Publicou: Sob a Luz do Mar (Campo das Letras, 2002), Nada se Sabe das Profundezas (In-Libris, 2003) e Nenhuma Flor (In-Libris, 2004). É co-responsável pelo blogue Tempo Dual.
SANDRA COSTA
1.
Arestas de agitação profunda
como um esquecimento.
2.
O que me dói no chão [e nas palavras]
é o latejar de uma fuga que não existe.
3.
Nenhuma flor [ou o fulgor do medo].
4.
O silêncio crepita
e a solidão do mundo é maior.
(in Nenhuma Flor)
*****
Repercutem os nomes abatidos
a luz atravessada do avesso
as películas que ficam do absoluto dos poemas
o ofício da vigília dentro do sono mais profundo
- designações trémulas do sagrado
ou um par de asas a corromper o silêncio –
(idem)
*****
O que torna
o poema
imperceptível
é
este ar
de Outono
que tem
- vela-se o tempo
como uma sombra –
(idem)
Sandra Costa (S. Mamede do Coronado, Trofa, 1971) é professora de História nos Ensinos Básico e Secundário. Publicou: Sob a Luz do Mar (Campo das Letras, 2002), Nada se Sabe das Profundezas (In-Libris, 2003) e Nenhuma Flor (In-Libris, 2004). É co-responsável pelo blogue Tempo Dual.
LANÇAMENTO DA "CALLIPOLE"
É já no próximo domingo, dia 27, o lançamento do número 13 da revista Callipole, editada em Vila Viçosa. A apresentação decorrerá no Cine-Teatro Florbela Espanca da vila alentejana, pelas 17 horas, no âmbito do Primeiro Encontro Ibérico de Revistas Culturais (que terá sessões ao longo de todo o fim-de-semana).
Proximamente darei conta do conteúdo da revista. Mas posso destacar desde já a publicação de poemas de Tiago Gomes, Sandra Costa e Renato Suttana, de um ensaio de Nicolau Saião sobre a poesia de José do Carmo Francisco e de um bloco temático de homenagem aos poetas J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (com textos de Amadeu Baptista, Carlos Garcia de Castro, Fernando Guerreiro, João Rui de Sousa, Levi Condinho, Nuno Rebocho, etc..).
Se puder estar presente, não hesite!
É já no próximo domingo, dia 27, o lançamento do número 13 da revista Callipole, editada em Vila Viçosa. A apresentação decorrerá no Cine-Teatro Florbela Espanca da vila alentejana, pelas 17 horas, no âmbito do Primeiro Encontro Ibérico de Revistas Culturais (que terá sessões ao longo de todo o fim-de-semana).
Proximamente darei conta do conteúdo da revista. Mas posso destacar desde já a publicação de poemas de Tiago Gomes, Sandra Costa e Renato Suttana, de um ensaio de Nicolau Saião sobre a poesia de José do Carmo Francisco e de um bloco temático de homenagem aos poetas J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (com textos de Amadeu Baptista, Carlos Garcia de Castro, Fernando Guerreiro, João Rui de Sousa, Levi Condinho, Nuno Rebocho, etc..).
Se puder estar presente, não hesite!
POETAS NOVOS DE PORTUGAL
JORGE REIS-SÁ
Melancolia
O tojo caindo o sol do fim da tarde. A caruma dos pinheiros
traz as crianças para a infância, os velhos jogam à malha no
caminho de Candeeira e as mulheres conversam junto aos
tremoços, chamando-os, desde o coberto, para a merenda.
A avó abre o postigo para ralhar aos moços, leva-os para
a cozinha onde lavam as mãos do pó que a alegria trouxe.
Iluminam-se na broa de mais um domingo encomendado à felicidade.
(in Biologia do Homem)
Esternocleidomastóideo
Tenho a juventude como uma pedra – não
há força que reste do meu corpo para a
levantar. E existe o ar, toda a atmosfera
como um sopro quente brotando da boca.
A atmosfera pressiona a pedra contra o
peito, massacra os pulmões e o coração, as
costelas, os músculos, todos os inverosímeis
nomes que lhes dão. Digo que não me deixa
respirar, o ar, o sopro de vida com que me
fizeste existir. Pai – pedra, ar, força translúcida
invisível que me comprime a juventude.
Pai – morte ao pai e à atmosfera que me
deu ar e que agora sufoca os inomináveis
músculos que resguardam o coração.
(idem)
Em Monfebres com Rui Lage
Em Monfebres existe Deus, está sentado à sombra das casas.
A cara dos homens espera os anjos descerem do pastoreio
e refugiarem-se nos ninhos. Em Monfebres os riachos sulcam
os montes e elaboram os vales. De noite, os grilos acompanham
o canto das águas pendurados nas patas, seguros nas vinhas
que lhes fazem na toca a sombra diária. As cabras alegram-se
da abundância de encostas, os casos das cabras esmagam
as pedras e o calor. E não há morte. No monte das febres
morreu-se a última vez há muitos anos,
encostado às vinhas, saboreando o verão no fim de tarde
pesado e quente, esperando que Deus sinalizasse a salvação.
(idem)
Jorge Reis-Sá (Vila Nova de Famalicão, 1977) é formado em Biologia. Exerce a profissão de editor, sendo responsável pelas Quasi Edições e director da revista Apeadeiro. Publicou A Memória das Pulgas da Areia (Quasi, 1999), Quase e outros poemas De Querença (Quasi, 2000), A Palavra no Cimo das Águas (Campo das Letras, 2000) e Biologia do Homem (Quasi, 2004). Organizou a antologia Anos 90 e Agora (Quasi, 3ª edição, 2004).
JORGE REIS-SÁ
Melancolia
O tojo caindo o sol do fim da tarde. A caruma dos pinheiros
traz as crianças para a infância, os velhos jogam à malha no
caminho de Candeeira e as mulheres conversam junto aos
tremoços, chamando-os, desde o coberto, para a merenda.
A avó abre o postigo para ralhar aos moços, leva-os para
a cozinha onde lavam as mãos do pó que a alegria trouxe.
Iluminam-se na broa de mais um domingo encomendado à felicidade.
(in Biologia do Homem)
Esternocleidomastóideo
Tenho a juventude como uma pedra – não
há força que reste do meu corpo para a
levantar. E existe o ar, toda a atmosfera
como um sopro quente brotando da boca.
A atmosfera pressiona a pedra contra o
peito, massacra os pulmões e o coração, as
costelas, os músculos, todos os inverosímeis
nomes que lhes dão. Digo que não me deixa
respirar, o ar, o sopro de vida com que me
fizeste existir. Pai – pedra, ar, força translúcida
invisível que me comprime a juventude.
Pai – morte ao pai e à atmosfera que me
deu ar e que agora sufoca os inomináveis
músculos que resguardam o coração.
(idem)
Em Monfebres com Rui Lage
Em Monfebres existe Deus, está sentado à sombra das casas.
A cara dos homens espera os anjos descerem do pastoreio
e refugiarem-se nos ninhos. Em Monfebres os riachos sulcam
os montes e elaboram os vales. De noite, os grilos acompanham
o canto das águas pendurados nas patas, seguros nas vinhas
que lhes fazem na toca a sombra diária. As cabras alegram-se
da abundância de encostas, os casos das cabras esmagam
as pedras e o calor. E não há morte. No monte das febres
morreu-se a última vez há muitos anos,
encostado às vinhas, saboreando o verão no fim de tarde
pesado e quente, esperando que Deus sinalizasse a salvação.
(idem)
Jorge Reis-Sá (Vila Nova de Famalicão, 1977) é formado em Biologia. Exerce a profissão de editor, sendo responsável pelas Quasi Edições e director da revista Apeadeiro. Publicou A Memória das Pulgas da Areia (Quasi, 1999), Quase e outros poemas De Querença (Quasi, 2000), A Palavra no Cimo das Águas (Campo das Letras, 2000) e Biologia do Homem (Quasi, 2004). Organizou a antologia Anos 90 e Agora (Quasi, 3ª edição, 2004).
ESTA VIDA DE PROFESSOR (1)
Tem sido diferente este ano lectivo. Continuo a ter as 22 horas de aulas do costume, mas para além delas passo agora na escola mais 13 horas noutras actividades. É fácil fazer a conta: tudo somado, dá 35. Cumpro assim o artigo 76º do Estatuto da Carreira Docente: 1) “O pessoal docente em exercício de funções é obrigado à prestação de 35 horas semanais de serviço.”; 2) “O horário semanal dos docentes integra uma componente lectiva e uma componente não lectiva e desenvolve-se em cinco dias de trabalho”.
Na componente lectiva não há novidades: oriento aulas de Língua Portuguesa em quatro turmas do 2º Ciclo do Ensino Básico, duas do 5º ano (com as quais passo oito horas semanais) e duas de 6º ano (com cinco horas cada). Passo ainda mais quatro horas com uma área curricular não-disciplinar, o Estudo Acompanhado, que dou a meias com duas colegas. Tudo somado, são 22 horas.
A mudança operou-se na chamada “componente não-lectiva”, isto é, naquele tempo que, antes, estava destinado à preparação das aulas, à elaboração de fichas informativas, de trabalho e de avaliação, à correcção dos trabalhos dos alunos e dos testes de avaliação. Treze horas não era uma fartura – mas ia dando para as necessidades, sem que o Estado me explorasse. Neste ano lectivo (o primeiro em que passei à ansiada categoria de “efectivo”) as coisas não se passam assim. Nessas 13 horas, tenho que estar disponível na sala de professores para substituir algum colega que falte (aquilo que o Ministério chama, com hipocrisia, “acompanhamento dos alunos”, para não pagar horas extraordinárias, conforme manda o artigo 83º do Estatuto). Para além disto, tenho várias horas em que sou obrigado a estar na Biblioteca Escolar para dar apoio aos alunos que dele precisem. Como não sou pessoa para estar sem fazer nada de útil, acabei por propor ao Conselho Executivo da minha escola a criação de um Clube de Escrita que já vai dando os seus frutos numa página da internet que criei com os alunos. Tenho ainda nessas 13 horas vários Conselhos de Turma (reuniões em que os professores discutem os problemas dos alunos e afinam estratégias para resolvê-los) e, por vezes, reuniões de Departamento. Tudo somado, aulas mais substituições mais horas de biblioteca mais clube mais reuniões permaneço na escola 35 horas por semana (quando não são mais...).
Perguntam neste momento: e quando é que este homem prepara aulas, elabora fichas, corrige testes e trabalhos? Respondo: à tarde ou à noite, depois de chegar a casa. Como, entretanto, já trabalhei na escola as 35 horas que o Ministério da Educação me paga, isto significa que todo o trabalho caseiro é feito de graça. Ando a dar esmolas ao Estado (eu e os outros professores). E ninguém me agradece, a começar pela senhora ministra que, nestas contas, representa a República Portuguesa. Mas, como ninguém me pediu esmola nem dei consentimento nesta dádiva, vejo-me obrigado a concluir que eu e os meus colegas estamos a ser roubados (assim mesmo!). Tenho que concordar com a célebre frase dum escritor francês: “Se o Estado fosse um ser humano, há muito estaria na cadeia...”
Não me importaria nada de passar na escola as 35 horas de trabalho que são o meu horário - se nela tivesse condições e tempo para fazer todo o meu trabalho de professor. Mas não. Não só não tenho tempo para realizar todas as minhas tarefas (as 13 horas de componente não-lectiva estão ocupadas, como se expôs), como não tenho condições materiais para desenvolvê-las. Concretizo. Na escola em que sou docente há apenas dois (!) computadores para cerca de 70 professores, nenhum deles com impressora e muitas vezes ocupados pelos directores de turma que aí têm que desenvolver o seu trabalho. Na escola em que lecciono (creio que em inúmeras outras a situação será idêntica) não existem gabinetes de trabalho; existe uma saleta de reuniões frequentemente ocupada com reuniões, existe uma sala de professores que não oferece condições de trabalho e uma biblioteca onde os alunos trabalham, não deixando espaço para os professores.
Quem gostaria de ser professor nestas condições? Seria bom ouvir a resposta de alguns figurões com pés de barro que por aí vão achincalhando a boa imagem dos professores portugueses.
Tem sido diferente este ano lectivo. Continuo a ter as 22 horas de aulas do costume, mas para além delas passo agora na escola mais 13 horas noutras actividades. É fácil fazer a conta: tudo somado, dá 35. Cumpro assim o artigo 76º do Estatuto da Carreira Docente: 1) “O pessoal docente em exercício de funções é obrigado à prestação de 35 horas semanais de serviço.”; 2) “O horário semanal dos docentes integra uma componente lectiva e uma componente não lectiva e desenvolve-se em cinco dias de trabalho”.
Na componente lectiva não há novidades: oriento aulas de Língua Portuguesa em quatro turmas do 2º Ciclo do Ensino Básico, duas do 5º ano (com as quais passo oito horas semanais) e duas de 6º ano (com cinco horas cada). Passo ainda mais quatro horas com uma área curricular não-disciplinar, o Estudo Acompanhado, que dou a meias com duas colegas. Tudo somado, são 22 horas.
A mudança operou-se na chamada “componente não-lectiva”, isto é, naquele tempo que, antes, estava destinado à preparação das aulas, à elaboração de fichas informativas, de trabalho e de avaliação, à correcção dos trabalhos dos alunos e dos testes de avaliação. Treze horas não era uma fartura – mas ia dando para as necessidades, sem que o Estado me explorasse. Neste ano lectivo (o primeiro em que passei à ansiada categoria de “efectivo”) as coisas não se passam assim. Nessas 13 horas, tenho que estar disponível na sala de professores para substituir algum colega que falte (aquilo que o Ministério chama, com hipocrisia, “acompanhamento dos alunos”, para não pagar horas extraordinárias, conforme manda o artigo 83º do Estatuto). Para além disto, tenho várias horas em que sou obrigado a estar na Biblioteca Escolar para dar apoio aos alunos que dele precisem. Como não sou pessoa para estar sem fazer nada de útil, acabei por propor ao Conselho Executivo da minha escola a criação de um Clube de Escrita que já vai dando os seus frutos numa página da internet que criei com os alunos. Tenho ainda nessas 13 horas vários Conselhos de Turma (reuniões em que os professores discutem os problemas dos alunos e afinam estratégias para resolvê-los) e, por vezes, reuniões de Departamento. Tudo somado, aulas mais substituições mais horas de biblioteca mais clube mais reuniões permaneço na escola 35 horas por semana (quando não são mais...).
Perguntam neste momento: e quando é que este homem prepara aulas, elabora fichas, corrige testes e trabalhos? Respondo: à tarde ou à noite, depois de chegar a casa. Como, entretanto, já trabalhei na escola as 35 horas que o Ministério da Educação me paga, isto significa que todo o trabalho caseiro é feito de graça. Ando a dar esmolas ao Estado (eu e os outros professores). E ninguém me agradece, a começar pela senhora ministra que, nestas contas, representa a República Portuguesa. Mas, como ninguém me pediu esmola nem dei consentimento nesta dádiva, vejo-me obrigado a concluir que eu e os meus colegas estamos a ser roubados (assim mesmo!). Tenho que concordar com a célebre frase dum escritor francês: “Se o Estado fosse um ser humano, há muito estaria na cadeia...”
Não me importaria nada de passar na escola as 35 horas de trabalho que são o meu horário - se nela tivesse condições e tempo para fazer todo o meu trabalho de professor. Mas não. Não só não tenho tempo para realizar todas as minhas tarefas (as 13 horas de componente não-lectiva estão ocupadas, como se expôs), como não tenho condições materiais para desenvolvê-las. Concretizo. Na escola em que sou docente há apenas dois (!) computadores para cerca de 70 professores, nenhum deles com impressora e muitas vezes ocupados pelos directores de turma que aí têm que desenvolver o seu trabalho. Na escola em que lecciono (creio que em inúmeras outras a situação será idêntica) não existem gabinetes de trabalho; existe uma saleta de reuniões frequentemente ocupada com reuniões, existe uma sala de professores que não oferece condições de trabalho e uma biblioteca onde os alunos trabalham, não deixando espaço para os professores.
Quem gostaria de ser professor nestas condições? Seria bom ouvir a resposta de alguns figurões com pés de barro que por aí vão achincalhando a boa imagem dos professores portugueses.
VOZES DO BRASIL
O jardim perdido
Vamos criar uma situação: numa certa noite, um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio, como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na cachimónia.
Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as maçãs firmes e doces, nem as pêras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que estes se engelhem e os outros encarquilhem.
Já estou a ouvir, ali do canto, aquele crítico de que eu gosto a dizer-me com unção: ”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto.).
Nisto de escritas e, muito mais, de literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é o único, com mil bombas!
Ou seja: é como se um brasil hortelão, dispondo de frutos de alta qualidade se pusesse feito catrapuz e não ligasse importância ao belíssimo pomar.
Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a relampejar. Nomeadamente mantida pelo amigo a que aludo e que, sendo também um poeta de excepção, escreveu o poema que se segue:
VINHETA
Vamos criar uma situação: numa certa noite, um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio, como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na cachimónia.
Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as maçãs firmes e doces, nem as pêras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que estes se engelhem e os outros encarquilhem.
Já estou a ouvir, ali do canto, aquele crítico de que eu gosto a dizer-me com unção: ”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto.).
Nisto de escritas e, muito mais, de literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é o único, com mil bombas!
Ou seja: é como se um brasil hortelão, dispondo de frutos de alta qualidade se pusesse feito catrapuz e não ligasse importância ao belíssimo pomar.
Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a relampejar. Nomeadamente mantida pelo amigo a que aludo e que, sendo também um poeta de excepção, escreveu o poema que se segue:
VINHETA
“Viajas pela terra, vês tudo o que está dentro dela (…)"
Texto funerário de Taquert-P-Uru-Abt
Teu corpo floresce selado em páginas necessárias.
Santuário que surge e pousa e torna a ausentar-se.
Um abraço de folhas naquele que te abre à luz
de enigmas proporcionados pelo tempo. As porções
de um mesmo dia que albergam tremor e sombras
de tudo quanto o homem julga torná-lo um santo.
E um chão de folhas caídas (a cela repleta de folhas)
a traduzir a travessia do que recita a própria agonia.
Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te inundam,
o corpo ainda em sopro majestoso florindo um suave
estojo de frases do coração e a saúde de ritos erguidos
por todos os feitos vitoriosos da respiração. Onde estás?
Tuas letras nos chegam em súplicas e cuidadosas dores.
O homem é preservado graças a seu duplo. E floresce
em papiros relutantes enrolados em teu corpo. Aceita
a companhia de deuses para que dali triunfante saia
a soletrar seus martírios e dobre as folhas lidas de modo
a não retornar nunca ao que supõe ter sido um dia.
Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como estar
perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem rejubilar-se
por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os homens
se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada lacra
sua passagem de um tempo a outro: a memória
é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da ilusão,
a rubrica de dotes sacrificiais implantados no espírito.
Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por todas
as formas que exaurem a devoção. Teu corpo oculto
como um pássaro no céu a degustar os tremores do vôo.
Refiro-me à visão de uma ave em que pomos a mão
e se desfaz. Uma miragem da letra e sua soberana sombra.
A presença do homem sentindo-se divino entre deuses,
salvo não sem relutância por seu duplo com sua alma
anônima. Se te queres ali um sol desmaiado sobre o templo,
requer piedade (deusa) para que sejas feliz. A cumplicidade
de alguns poetas, o suborno a uns tantos inimigos, a voz
gravada do morto para que deslacres sua fausta memória.
Não fará mal recitar versos que atestem o conhecimento
sobre as coisas perdidas, ainda que seja um simples trono
ou mesmo uma tora de fogo a sublinhar um tempo de gozos.
Invocas a eternidade e somos levados a seus descaminhos.
Uma vez trouxeste contigo um inimigo, outra a irrigação e o pão.
És o engano e devo ser a sombra ofertada em seu nome.
O azinhavre imperioso da oração. O tecido de incenso.
O quanto tem custado nossa fé tão satisfeita. Um deus
ao inclinar-se requer juntar-se a seus fiéis. Um outro
posta-se ereto sempre para que deixe seu coração bater.
O que se mostra envolto por uma serpente seduz
pela oferenda de seu próprio mistério. Teu corpo floresce
por libações do desejo. Desenhamos as letras inferiores
para que sejam evitadas ou aviltadas? O próprio escriba
entalha o tende piedade do escriba que aja contra
a letra. Apenas teu nome safa-se de toda tempestade.
Não o repelimos ou assimilamos. Dele nos livrarmos
não podemos. Devora-nos e os ossos recriam sua forma
incessante e repete-se ao ponto de não mais sabermos
se somos carne ou espírito, dor ou símbolo, nume ou nada.
Decerto será misericordioso o calor de teu corpo
estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde causa dano
a oportunidade perdida. Ali onde continuamente o ser
perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos inúmeras
vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e assinamos
com trêmulo vigor as faixas que garantem que teu corpo
não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a odisséia
de ilusões de que floresces. Onde és o corpo sob nossos pés.
Deusa de um túmulo encravado em nosso espírito.
Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos por toda
a pedra santa. O verso é o verbo diante de si. Dentro
do livro está o homem: carregado de sombras e vertigens.
poema de Floriano Martins (editor da revista electrónica "Agulha")
introdução de Nicolau Saião
CITAÇÕES PARA O FIM-DE-SEMANA
"(...) não tema nem o silêncio nem a apreciação em um país onde toda a gente, fora de todo o propósito, trepa à cátedra e doutrina sobre o que absolutamente desconhece, e onde os mestres profissionais, num vasconço que mais realça a intenção pedantesca - da qual julgam tirar efeitos fulminantes -, só armam trovoadas de palanfrório, trovoadas secas, perfeitamente inofensivas..."
MANUEL TEIXEIRA-GOMES in Inventário de Junho
"(...) os verdadeiros livros devem ser filhos, não da plena da luz e da tagarelice, mas da obscuridade e do silêncio."
MARCEL PROUST in O Tempo Reencontrado
"O desdém dos outros, como a desgraça, são às vezes magníficos para se triunfar. Enrijam, enervam."
RAÚL BRANDÃO in Sonhos
"(...) não tema nem o silêncio nem a apreciação em um país onde toda a gente, fora de todo o propósito, trepa à cátedra e doutrina sobre o que absolutamente desconhece, e onde os mestres profissionais, num vasconço que mais realça a intenção pedantesca - da qual julgam tirar efeitos fulminantes -, só armam trovoadas de palanfrório, trovoadas secas, perfeitamente inofensivas..."
MANUEL TEIXEIRA-GOMES in Inventário de Junho
"(...) os verdadeiros livros devem ser filhos, não da plena da luz e da tagarelice, mas da obscuridade e do silêncio."
MARCEL PROUST in O Tempo Reencontrado
"O desdém dos outros, como a desgraça, são às vezes magníficos para se triunfar. Enrijam, enervam."
RAÚL BRANDÃO in Sonhos
O Poeta e o filho dele
Em Agosto de 96 José Carlos Breia visitou-me na minha casa do Atalaião. Estava de férias em Borba e sempre que ali jornadeava não resistia ao apelo que do nordeste alentejano lhe chegava.
Geralmente fazia-se acompanhar dum presente para acalentar o amigo. Eu fornecia os comes-e-bebes, ele fornecia a conversa comparticipativa de poeta e de cavalheiro sem mácula.
Dessa vez trouxe-me uma preciosidade: a primeira edição, belíssima, de Canções de entre céu e terra de Francisco Bugalho, ilustrada com “gravuras em madeira, originais do artista húngaro Átila Mendly de Vétyemy” conforme reza na “Justificação da tiragem”.
O livro, organizado para as “Edições Presença” sob cujos auspícios foi dado a lume, recebera-o das mãos de Luís Moita, pai do autor de Cidade sem Tempo e companheiro dos presencistas. Ele tinha outro autografado e o remanescente quisera entregá-lo à minha guarda perene.
É dessa edição de 1940 que retiro o comovente poema que aqui se epigrafa.
O menino de que se fala é, obviamente, Cristóvam Pavia.
Tanto eu como António Luís Mouta o evocámos em 92 (“Um serão com Cristóvam Pavia”) através duma das emissões do “Mapa de Viagens”, programa que eu então realizava na rádio portalegrense.
…Do autor de Lugar Nenhum (distribuição Assírio & Alvim, org. de José Bento) dar-vos-ei em breve, aqui, alguns textos dali retirados. - Nicolau Saião
Dois Meninos
poema de Francisco Bugalho
Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.
Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.
As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…
Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.
Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.
E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…
Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.
Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.
As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…
Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.
Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.
E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…
Vozes do Brasil
RIBEIRO COUTO
Estrela-do-Mar em Sesimbra
Morta na areia, dura estrela fria,
Que abandonada luz em ti viveu?
Estrela, sim, mas quem te chamaria
Estrela, se à mercê da mão como eu
Sentisse a tua condição sombria?
De que noite abismal, de que remota
Paragem ao molusco o céu chegou,
Qual o seu nascimento e a sua rota,
Se do fundo do mar se afeiçoou
Ao que anda além da superfície ignota?
Caída, não. Não vem de estrela alguma
Esta que nos oceanos já dormiu
E amortalhou-se com areia e espuma.
Da terra vem. Do chão do mar surgiu
E ainda é mar que da concha lhe ressuma.
Quebrá-la agora bem que eu poderia.
Mas para quê? Nada compreenderei.
Nada compreenderei, estrela fria,
Senão que morta estás e que não sei
Se duraste um milénio ou só um dia.
(in Entre Mar e Rio, 1952)
Germain Droogenbroodt
Fonte dos oito canos *
Oito bocas cravadas
no ocre da parede. Alimentadas
como por milagre
por um prodigioso caudal de água
onde o peregrino
a cabeça inclinada
devoto, as mãos estreita
e reza:
pura e cristalina água
leva de mim
mais do que esta sede.
* Fonte em Ronda, Andaluzia (Espanha),
onde Rainer Maria Rilke escreveu a sua “Trilogia espanhola”
Prece
Pudesse ser minha mente
tão pura
como este momento
de luz e canto de melro
despreocupada
do porquê –
sem outra resposta
salvo o que em sua diversidade
de pétalas e cores ofereça:
a rosa.
Vozes
Aos ventos que as levam
reviram e devolvem
entregam suas perguntas
A serra reflete a resposta
com sinais rúnicos
de incidente luz.
Tradução de Ivo Korytowski e Virgínia de Oliveira
Extraído de “Palavreiros – 4º Festival Mundial de Poesia”
Fonte dos oito canos *
Oito bocas cravadas
no ocre da parede. Alimentadas
como por milagre
por um prodigioso caudal de água
onde o peregrino
a cabeça inclinada
devoto, as mãos estreita
e reza:
pura e cristalina água
leva de mim
mais do que esta sede.
* Fonte em Ronda, Andaluzia (Espanha),
onde Rainer Maria Rilke escreveu a sua “Trilogia espanhola”
Prece
Pudesse ser minha mente
tão pura
como este momento
de luz e canto de melro
despreocupada
do porquê –
sem outra resposta
salvo o que em sua diversidade
de pétalas e cores ofereça:
a rosa.
Vozes
Aos ventos que as levam
reviram e devolvem
entregam suas perguntas
A serra reflete a resposta
com sinais rúnicos
de incidente luz.
Tradução de Ivo Korytowski e Virgínia de Oliveira
Extraído de “Palavreiros – 4º Festival Mundial de Poesia”
De novo o medo
Vive-se neste momento em Portugal, tal como em certas alturas do chamado PREC, de novo um clima de sedição. Claro, insofismável, digamos que proposto com todo o descaramento por asseclas do poder que só está tranquilo quando manda discricionariamente e quando estabelece a apreensão na cabeça do Zé Povinho.
Certas entidades já nem mesmo disfarçam os seus intuitos visando desestabilizar o regime e criar as condições propícias a um golpe de Estado institucional, ou seja: não feito através das armas e do envio para a prisão dos adeptos do “establishment” – a Europa talvez não estivesse pelos ajustes – mas mediante o método mais soft, mas infinitamente mais cínico e perverso, da aquisição de “uma maioria, um governo, um presidente” como referia o slogan muito glosado dos nostálgicos do direitismo mais alvar e servir-se disso, depois, para o conhecido “quero, posso e mando”.
Em determinadas localidades, já nem mesmo se tapam, como sói dizer-se: declaram com santa ingenuidade que o seu alvo é, através dos bons ofícios do putativo próximo presidente da República, colocar no redil da marginalização pessoas que não os apoiem nem os sufraguem, numa atitude claramente anti-democrática que se espelha na jaculatória propagandística do algarvio de Boliqueime, que declarou com toda a desfaçatez que não falaria, não dialogaria, não debateria a não ser segundo as suas regras de candidato a autocrata para, pasme-se, dar dignidade à campanha. Ou seja: infere-se que a maior dignidade seria conseguida se não houvesse debates de todo em todo, como nos bons tempos do doutor Salazar. Percebe-se perfeitamente que para certos fulanos a democracia de partidos é um estorvo e a democracia “tout court” uma espécie de azia que sairá com os sais de frutos de uma presidência musculada e desejavelmente anti-constitucional.
Em certos lugares, como na cidade onde moro, a receita é simples: marginalizam-se os dissidentes (nos diversos campos onde actuem, culturais, educacionais…) – muitas vezes deixando que siga curso a difamação e a calúnia – cala-se-lhes a boca através da discriminação e das veladas ameaças. Mais tarde e quando já tiverem tudo nas mãos impolutas seguir-se-ão, se necessário, outras acções mais decididas e viris. E, se tal se mostrar preciso, far-se-á o que for de fazer para meter juízo nas cabeças “implumes” dessa gente. Não é para isso que servem os sistemas jurídicos desqualificados, as forças militarizadas sem ética e os esbirros declarados?
Não pensem os ingénuos que por vivermos na “civilizada Europa” estamos defendidos destas coisas sibilinas e inquietantes: basta olhar-se para a Itália e meditar-se no que Berlusconni tem feito à pátria de Miguel Ângelo. Só no Terceiro Mundo é que estas coisas acontecem? Ora, ora…
Há sectores que jogam na consabida falta de memória das populações, no seu desejo de facturar mesmo que a produção escassa não o aconselhe, no egoísmo dos que, depois de delapidarem as gordas esmolas de Bruxelas, querem também delapidar os poucos cobres que se salvaram da voragem consumista posta a correr precisamente pelo grande economista que agora se apresenta como salvador da pátria.
Para falarmos claro: esses sectores que só esperam um decisivo passo em falso do pouco excitante primeiro-ministro actual para, num passe de mágica, nos saltarem à garganta, como nos filmes do Stephen King…
Post scriptum – Horas depois de escrito este artigo, Cavaco e Silva foi entrevistado pela TVI no âmbito da roda de sessões com os candidatos levada a efeito por aquela estação emissora.
Confrontado apenas com uma Constança Cunha e Sá até um pouco veneradora, Cavaco não se aguentou, ficando reduzido àquilo que verdadeiramente é em igualdade de terrenos: um intelecto vulgar, metendo os pés pelas mãos e preso de contradições que o seu espírito não consegue, realmente, deslindar.
Por esta amostra se percebe a estratégia de procurar ficar calado o maior período de tempo possível, assumindo o ar hierático de estadista genial. É a sua melhor defesa e a mais eficaz imagem de marca de quem nada de verdadeiramente fundamental tem para comunicar. Quando se defrontar com uma velha raposa da política e dos debates a sério, como Mário Soares, deve ser giro o estenderete…
Vive-se neste momento em Portugal, tal como em certas alturas do chamado PREC, de novo um clima de sedição. Claro, insofismável, digamos que proposto com todo o descaramento por asseclas do poder que só está tranquilo quando manda discricionariamente e quando estabelece a apreensão na cabeça do Zé Povinho.
Certas entidades já nem mesmo disfarçam os seus intuitos visando desestabilizar o regime e criar as condições propícias a um golpe de Estado institucional, ou seja: não feito através das armas e do envio para a prisão dos adeptos do “establishment” – a Europa talvez não estivesse pelos ajustes – mas mediante o método mais soft, mas infinitamente mais cínico e perverso, da aquisição de “uma maioria, um governo, um presidente” como referia o slogan muito glosado dos nostálgicos do direitismo mais alvar e servir-se disso, depois, para o conhecido “quero, posso e mando”.
Em determinadas localidades, já nem mesmo se tapam, como sói dizer-se: declaram com santa ingenuidade que o seu alvo é, através dos bons ofícios do putativo próximo presidente da República, colocar no redil da marginalização pessoas que não os apoiem nem os sufraguem, numa atitude claramente anti-democrática que se espelha na jaculatória propagandística do algarvio de Boliqueime, que declarou com toda a desfaçatez que não falaria, não dialogaria, não debateria a não ser segundo as suas regras de candidato a autocrata para, pasme-se, dar dignidade à campanha. Ou seja: infere-se que a maior dignidade seria conseguida se não houvesse debates de todo em todo, como nos bons tempos do doutor Salazar. Percebe-se perfeitamente que para certos fulanos a democracia de partidos é um estorvo e a democracia “tout court” uma espécie de azia que sairá com os sais de frutos de uma presidência musculada e desejavelmente anti-constitucional.
Em certos lugares, como na cidade onde moro, a receita é simples: marginalizam-se os dissidentes (nos diversos campos onde actuem, culturais, educacionais…) – muitas vezes deixando que siga curso a difamação e a calúnia – cala-se-lhes a boca através da discriminação e das veladas ameaças. Mais tarde e quando já tiverem tudo nas mãos impolutas seguir-se-ão, se necessário, outras acções mais decididas e viris. E, se tal se mostrar preciso, far-se-á o que for de fazer para meter juízo nas cabeças “implumes” dessa gente. Não é para isso que servem os sistemas jurídicos desqualificados, as forças militarizadas sem ética e os esbirros declarados?
Não pensem os ingénuos que por vivermos na “civilizada Europa” estamos defendidos destas coisas sibilinas e inquietantes: basta olhar-se para a Itália e meditar-se no que Berlusconni tem feito à pátria de Miguel Ângelo. Só no Terceiro Mundo é que estas coisas acontecem? Ora, ora…
Há sectores que jogam na consabida falta de memória das populações, no seu desejo de facturar mesmo que a produção escassa não o aconselhe, no egoísmo dos que, depois de delapidarem as gordas esmolas de Bruxelas, querem também delapidar os poucos cobres que se salvaram da voragem consumista posta a correr precisamente pelo grande economista que agora se apresenta como salvador da pátria.
Para falarmos claro: esses sectores que só esperam um decisivo passo em falso do pouco excitante primeiro-ministro actual para, num passe de mágica, nos saltarem à garganta, como nos filmes do Stephen King…
Post scriptum – Horas depois de escrito este artigo, Cavaco e Silva foi entrevistado pela TVI no âmbito da roda de sessões com os candidatos levada a efeito por aquela estação emissora.
Confrontado apenas com uma Constança Cunha e Sá até um pouco veneradora, Cavaco não se aguentou, ficando reduzido àquilo que verdadeiramente é em igualdade de terrenos: um intelecto vulgar, metendo os pés pelas mãos e preso de contradições que o seu espírito não consegue, realmente, deslindar.
Por esta amostra se percebe a estratégia de procurar ficar calado o maior período de tempo possível, assumindo o ar hierático de estadista genial. É a sua melhor defesa e a mais eficaz imagem de marca de quem nada de verdadeiramente fundamental tem para comunicar. Quando se defrontar com uma velha raposa da política e dos debates a sério, como Mário Soares, deve ser giro o estenderete…
Nicolau Saião / ilustração de Enrique Lechuga
CRISTÓVAM PAVIA
REQUIEM
(ao menino morto, eu próprio)
A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.
Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas...)
Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície...
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo.
Já me confundo contigo.
POEMA
(de uma fotografia de meu Pai comigo,
pequeno de meses, ao colo)
Vamos através do incêndio
Mas não temas, meu filho.
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.
Vamos através do incêndio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.
E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P’ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo,
E o meu suor, arde.
E, devagar,
Vamos através do incêndio.
Dorme, meu filho.
Da antologia do Prémio Almeida Garrett – 1954, editada em 1957.
REQUIEM
(ao menino morto, eu próprio)
A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.
Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas...)
Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície...
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo.
Já me confundo contigo.
POEMA
(de uma fotografia de meu Pai comigo,
pequeno de meses, ao colo)
Vamos através do incêndio
Mas não temas, meu filho.
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.
Vamos através do incêndio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.
E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P’ra te dar frescura.
Arde o meu sangue calmo,
E o meu suor, arde.
E, devagar,
Vamos através do incêndio.
Dorme, meu filho.
Da antologia do Prémio Almeida Garrett – 1954, editada em 1957.
GENEROSIDADE
Sempre que posso, perco-me pelos alfarrabistas de Lisboa ao encontro de raridades que me toquem pela sua importância, mais do que pelo seu valor monetário. Tenho para mim que alguns livros antigos ou em segunda mão procuram os seus próprios donos. Não somos nós que vamos na sua demanda, são eles que esperam por nós – aguardando a nossa visita e a nossa atenção apaixonada.
Tenho tido, nos últimos tempos, momentos felizes na minha paixão bibliófila. Em poucas semanas consegui adquirir – ainda por cima a preços incríveis! – várias preciosidades. Não é para fazer inveja que levo ao vosso conhecimento os nomes dos meus novos amigos (confesso-vos, os livros são para mim amigos): Húmus, de Raúl Brandão (2ª edição); Estudos Críticos, de Castelo Branco Chaves; Os Positivistas, de Álvaro Ribeiro; Sangria, de Fernando Grade (autografado); Entre Mar e Rio, de Ribeiro Couto; Goya, de Ramón Gómez de la Serna; Agosto Azul, Cartas Sem Moral Nenhuma e Inventário de Junho, de Manuel Teixeira-Gomes; São Paulo, de Teixeira de Pascoaes; O Mal do Tempo, de Berdiaev; várias traduções de Agostinho da Silva e a sua biografia de Leopardi; Os Idólatras, de Maria Judite de Carvalho; etc..
Deixo para o final duas obras valiosas: uma antologia do Prémio Almeida Garrett, de 1954, e Cio, o primeiro livro do poeta portalegrense Carlos Garcia de Castro, editado em 1955. Sobre a primeira escreverei nesta crónica. Sobre a segunda debruçar-me-ei em próxima ocasião, pois merece um texto individual, por motivos que nessa altura descortinareis.
Atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto em 1954, só três anos mais tarde a antologia do Prémio Almeida Garrett viu a luz do dia. Este concurso e este livro têm uma história que merece ser contada, dado que envolve nomes fundamentais da Literatura Portuguesa do século XX. Começa pelo júri, com nomes que dispensam apresentações: Afonso Duarte, João Gaspar Simões, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio. Foram 103 as obras concorrentes. Entre elas coube o galardão a uma obra de Miguel Torga.
Neste nome reside a mais intensa dimensão desta colectânea. Não integra um único poema do autor de Poemas Ibéricos, uma vez que a obra teve edição autónoma. Não foi paga, como seria de esperar, pelo Ateneu Comercial do Porto, que promovera o prémio. Foi paga pelo primeiro premiado que, tendo conhecimento da alta qualidade de algumas das obras que haviam sido preteridas em favor do seu livro, decidiu abdicar do valor monetário que lhe era devido para proporcionar aos seus colegas de letras (jovens ainda e inéditos em livro) as alegrias da publicação. (É caso para perguntar: quantos poetas “medalhados” do nosso tempo teriam hoje coragem para manifestarem uma generosidade idêntica?)
A história terminaria aqui se os autores antologiados no livro que veio para a minha biblioteca fossem hoje ilustres desconhecidos. Acontece que, entre a vintena de poetas aí incluídos, constam alguns poetas hoje indispensáveis no edifício da Poesia Portuguesa Contemporânea. Entre eles, destacam-se Fernando Echevarría, Cristovam Pavia, António Gedeão e, além deles, Fernando Vieira,José Carlos Ary dos Santos (que autografa o livro) e alguns outros, com obra estimável.
Estes autores não tinham, em 1954, qualquer livro publicado. Tivesse Miguel Torga guardado o dinheiro no bolso, qual teria sido o destino da obra destes escritores, cuja poesia hoje reconhecemos?
PS – Em Março de 2004 garantiram-me que a obra poética de Cristovam Pavia seria reeditada, o que não acontece desde inícios dos anos ’80. Mas, até hoje, nada surgiu. Para quando será? Parece-me urgente!
Às vezes chegam cartas…
…outras vezes chegam convites das mais diversas origens. Uns que nos maçam, outros nem tanto. Coisas…
Mas no meio da ventania postal, em certos dias vêm até nós flores e pérolas, rastos de beleza que nos tornam o momento algo que nos eleva e nos consola. E o dia fica melhor.
Desta vez foi da Galeria São Mamede (o mesmo nome da serra que vejo quotidianamente ali ao cimo, por detrás do aprazível lugar do Reguengo) ali no Porto, que me chegou a notícia de que dia 12 (exacto, depois de amanhã) abrirá a partir das sete da tarde uma Exposição de Julio/Saúl Dias para celebrar o primeiro centenário do grande pintor e poeta.
E esta expressão não está aqui por formalismo…literato. Nem, evidentemente, podia estar - uma vez que sem favor (basta olhar, basta ler) se trata dum dos melhores e mais serenamente talentosos artistas da nossa contemporaneidade. Do nosso tempo vivo.
Júlio esteve - tal como enquanto Poeta – antes do tempo oportuno no lugar onde as coisas aconteciam para valer. Por vezes discretamente e por isso é que ali em cima falei em serenidade. E por isso é que tantos talentarrões distraídos se esquecem da sua poesia, da sua pintura, para epigrafarem vozes que vão enrouquecendo cada vez mais, pese ao quase heróico tentame com que os exaltam para que permaneçam no vão-de-escada das estantes nacionais.
Mas, como dizia Pierre de Boisdeffre, “a morte não tem poder contra uma obra”.
Primeiro centenário. Outros virão…
Nicolau Saião
(Ruy Ventura subscreve e envia daqui um grande abraço ao Engº Reis Pereira, grande defensor da obra de seu pai, Julio-Saúl Dias, e de seu tio, José Régio.)
NOVO ESPECTÁCULO DA MANDRÁGORA
O grupo de teatro Mandrágora, que também edita a revista Bicicleta, está de novo na liça cénica. Digamos assim - porque na liça geral estão eles sempre, já através de incursões em Espanha para tomarem parte em encontros com outros congéneres do teatro e da edição desenquadrada q.b., já para acções desta coisa estranha e encantada que é ser-se actor.
Se puder, vá lá ver a funçanata, decerto não perderá o seu tempo! - NS
POETAS NOVOS DE PORTUGAL
JOAQUIM CARDOSO DIAS
Preparação de um rapto
em silêncio estes animais
entram com a noite nos meus passos
e nem sequer me dói o teu nome
atormentado pelas mais altas torres
devagar fecho os olhos neste segredo
e o vento ressoa como um relógio vazio
na casa onde estou só
no peito onde estou contigo
Depois de terem levado as cadeiras
nunca ouvi os peixes pelo lado de dentro
não os leves mortos
deixa-os buscar comida para que a cidade tenha sono
esta noite
Another shade tem minutes
este foi o tempo em que o dia se perdeu na primeira rua
e se esqueceu de frio e se transformou
em sombra de água de costas para as gotas
a densidade de uma luz soprada
onde um animal cheira outro animal olhando-lhe
a boca há um nome por dizer
cheirando-lhe agora o sexo em mim
de repente
as mãos são tão pequenas
Joaquim Cardoso Dias nasceu em 1973 na cidade de Castelo Branco. Licenciado em Sociologia, é professor no Ensino Secundário. Está representado em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Editou em 2002, na Gótica, o livro de poemas O Preço das Casas, de onde foram retirados os textos que aqui divulgamos.
JOAQUIM CARDOSO DIAS
Preparação de um rapto
em silêncio estes animais
entram com a noite nos meus passos
e nem sequer me dói o teu nome
atormentado pelas mais altas torres
devagar fecho os olhos neste segredo
e o vento ressoa como um relógio vazio
na casa onde estou só
no peito onde estou contigo
Depois de terem levado as cadeiras
nunca ouvi os peixes pelo lado de dentro
não os leves mortos
deixa-os buscar comida para que a cidade tenha sono
esta noite
Another shade tem minutes
este foi o tempo em que o dia se perdeu na primeira rua
e se esqueceu de frio e se transformou
em sombra de água de costas para as gotas
a densidade de uma luz soprada
onde um animal cheira outro animal olhando-lhe
a boca há um nome por dizer
cheirando-lhe agora o sexo em mim
de repente
as mãos são tão pequenas
Joaquim Cardoso Dias nasceu em 1973 na cidade de Castelo Branco. Licenciado em Sociologia, é professor no Ensino Secundário. Está representado em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Editou em 2002, na Gótica, o livro de poemas O Preço das Casas, de onde foram retirados os textos que aqui divulgamos.
MARIA ONDINA BRAGA (1932-2003)
DOIS PANOS DA CAMISA
Na dinastia Sung, século XI, já uma mulher aparece entre os melhores poetas da época: Li Quingzhao que cultivou o verso ci com extrema perícia e teve a sorte de encontrar no marido, além de um devoto amante, um camarada espiritual. Mas, se tal aconteceu com Li Quingzhao, quantas outras ausentes das páginas densas da literatura clássica chinesa?
E todavia uma sociedade baseada na erudição, a da China. Fidalgos, não de sangue, como no Ocidente, mas de saber. Intelectuais que, concluído o terceiro grau do exame literário, ganhavam direito a lugares públicos de destaque. Uma sociedade, enfim, baseada na erudição e na hierarquia masculina. Segundo Confúcio, a mulher, ainda que dotada, sempre havia de fazer o contrário do que o homem fazia, ou seja, enquanto ele construía, ela deitava abaixo [...].
Mesmo assim, ei-las a escrever, as chinesas desse tempo: líricas, loas, trocadilhos: Chao T’sai-Chi, Chão Li-Hua, de quem não se conhecem quaisquer dados biográficos:
Com a maré do rio a crescer
Avança a hora da separação.
As cordas dos salgueiros largam, ledas,
O barco onde embarquei meu coração.
Logo que na Dinastia Mongol o drama entra na ordem do dia – textos classificados de sub-literatura e geralmente editados sob anonimato – as suas mais fiéis seguidoras, as mulheres: Chang Kuo-Pin, por exemplo, ilustrada dama da corte do século XIII e autora de uma peça de teatro muito popular, em quatro actos, Os Dois Panos da Camisa. Escritos tidos por medíocres, é verdade, porque a cultura ao alcance delas medíocre também.
“A cultura de uma mulher não se compara à do marido que, por assim dizer, se prolonga pela vida fora. (...) A mulher é como se fosse cedo arrastada por uma torrente (os deveres domésticos), sem qualquer esperança de voltar atrás, e de pouco lhe servem os conhecimentos que porventura haja adquirido” – comentário de Lang Ting Yuan no século XVIII. Precisamente quando um “estrangeirado”, Luís António Verney, escreve na Carta XVI: “Pelo que toca à capacidade, é loucura pensar-se que as mulheres tenham menos que os homens”.
Vemos, contudo, na Dinastia Tang, Liu Hsiang compilar em volume algumas biografias femininas, intitulando-as de Mulheres Eminentes. O primeiro trabalho desse género, na China, se bem que já duzentos anos antes se escrevesse sobre vidas de cortesãs famosas pelos seus dotes físicos e artísticos. [...]
Natural, ao tempo, um escritor celebrar as prendas de uma mulher pública e calar as da consorte. Os membros femininos da família, a sua sina, um submisso silêncio.
[...]
Li Quingzhao, portanto, uma rara excepção: poeta e epigrafista insigne, Zhao, o marido, admirando a esposa e admitindo mesmo que a poesia dela possuía uma riqueza que faltava à sua. Isto mal-grado o juízo desfavorável dos críticos quanto ao fervor da linguagem de Li: “licenciosa para uma mulher”.
Murcha a flor do lótus, tapetes de jade
A anunciarem do verão o fim.
Dispo devagar a túnica de seda
E entro sozinha no barco de mim.
Viesse um arauto lá do alto das nuvens
Com uma missiva terna e eloquente...
Os gansos selvagens partindo à noitinha,
E a Lua a arder no meu quarto a poente.
(do livro A Filha do Juramento, editado em 1995 pelas Edições Autores de Braga, comemorando os 30 anos de vida literária da Autora.)
Vozes do Brasil
RENATO SUTTANA
O PORQUINHO-DA-ÍNDIA
O porquinho-da-índia
no poço da jibóia
é um abandonado da sorte.
Sem pai
nem mãe
nem um lugar onde se meter,
não tem para onde correr. –
Enfarrusca-se
num canto.
(Procura abrigo
na toca do inimigo.)
Solta um agudo
gemido
quando a jibóia
(que graça!)
o abraça:
um gemido
que é um ganido
ou parecido.
O porquinho-da-índia
no poço da jibóia
é um abandonado da sorte.
(do livro "Bichos")
RENATO SUTTANA
O PORQUINHO-DA-ÍNDIA
O porquinho-da-índia
no poço da jibóia
é um abandonado da sorte.
Sem pai
nem mãe
nem um lugar onde se meter,
não tem para onde correr. –
Enfarrusca-se
num canto.
(Procura abrigo
na toca do inimigo.)
Solta um agudo
gemido
quando a jibóia
(que graça!)
o abraça:
um gemido
que é um ganido
ou parecido.
O porquinho-da-índia
no poço da jibóia
é um abandonado da sorte.
(do livro "Bichos")
RECONHECIMENTO
(Bissau)
a carne queima a sombra e a memória.
deixa sobre os olhos um traço negro.
a água não consegue lavar a cinza deste corpo.
sem membros, o tronco enegrece sobre a terra.
deixa nas árvores o último grito -
lançado na hora do abate.
que corpo resguardava esta carne?
trago às palavras um nome, um gesto, uma fronteira.
sem vida, o meu olhar descobre nas vísceras
vestígios de saudade
que a tarde não conseguiu matar.
sangue apenas?
coágulos dissolvem o centro da cidade.
o metal atravessa as estrelas,
reconhece na carne os odores da última viagem.
que noite vivo?
a memória enegrece, mas persiste.
escavo o esquecimento.
a fotografia permanece
- calcinando o fogo.
(para Joaquim Baptista Ventura, meu pai)
(Bissau)
a carne queima a sombra e a memória.
deixa sobre os olhos um traço negro.
a água não consegue lavar a cinza deste corpo.
sem membros, o tronco enegrece sobre a terra.
deixa nas árvores o último grito -
lançado na hora do abate.
que corpo resguardava esta carne?
trago às palavras um nome, um gesto, uma fronteira.
sem vida, o meu olhar descobre nas vísceras
vestígios de saudade
que a tarde não conseguiu matar.
sangue apenas?
coágulos dissolvem o centro da cidade.
o metal atravessa as estrelas,
reconhece na carne os odores da última viagem.
que noite vivo?
a memória enegrece, mas persiste.
escavo o esquecimento.
a fotografia permanece
- calcinando o fogo.
(para Joaquim Baptista Ventura, meu pai)
UM LIVRO ESSENCIAL
(Acentos, de Fernando Gil)
É difícil não sentir nojo quando assistimos às posições de certa esquerda. Há ataques a países que têm assumido firmeza no combate ao terrorismo e, ao mesmo tempo, um silêncio cúmplice quando se trata de condenar a destruição da paz mundial levada a cabo por chefes islamistas. Existe má-fé quando se avaliam os maiores crimes da História, quando se condena (e bem) o nazismo, mas se desculpam os massacres do comunismo. Branqueiam-se entretanto novas formas de terrorismo urbano, praticadas por arruaceiros que, mais do que marginalizados, se auto-excluem da convivência social.
A juntar a esta situação, temos o “multiculturalismo”, assumido por uma Europa que não consegue resolver sentimentos de culpa se não abdicando dos pilares da sua civilização, aceitando práticas que os contradizem, mesmo que sejam inaceitáveis. Tudo sob vestes “pós-modernas”, escondendo um nihilismo perigoso, que desfaz uma cultura matricial e estabelece o nada, tentando preencher o vazio com uma amálgama indigesta.
Neste tempo de pré-suicídio europeu, surge em Portugal um livro essencial para compreendermos melhor o tempo em que vivemos. Acentos, do filósofo Fernando Gil, editado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, reúne um conjunto de estudos e de entrevistas que andavam dispersos. Em quase três dezenas de textos, esta obra coloca à nossa disposição reflexões fundamentais sobre temas tão diversos quanto a filosofia da crença e do conhecimento, o urbanismo e a vivência social citadina, a educação básica e universitária, a literatura de Luís de Camões e de Vitorino Nemésio, o estatuto das ciências sociais no mundo actual, a falência ideológica da esquerda e as causas íntimas do terrorismo.
De entre as quase quinhentas páginas do volume, revestem particular importância para o nosso tempo as que compõem os capítulos “Os Saberes e a Cidade” (pp. 183 a 251) e “Medos” (pp. 361 a 491).
Permito-me destacar “A Escola e a Sociedade Civil: a responsabilidade pública e os seus limites” (pp. 203 a 218) – que deveria ser leitura obrigatória para todos os agentes envolvidos no processo educativo, nomeadamente os decisores e burocratas do Ministério da Educação, os professores e os familiares dos nossos alunos – na medida em que denuncia com fundamentos fortíssimos a “derrota do universalismo” da educação e da instrução, que pode conduzir a “uma certidão de óbito do sistema de ensino”, na medida em que se consagra uma erosão do conhecimento, a pretexto de um falso respeito pela “diversidade”.
Destaque merece ainda toda a reflexão em torno do terrorismo. Nela relevo a análise dos seus fundamentos, deturpados em geral pelo falso “pacifismo” politicamente correcto, que não esconde a sua tolerância em relação ao islamismo radical, porque vê nele capacidades para recriar um novo “Pacto de Varsóvia” anti-americano. Nesta matéria, é muito importante o conselho de Fernando Gil: “(...) saberemos encontrar as boas respostas se decidirmos resistir colectivamente, por todos os meios ao nosso alcance, nisso investindo a nossa imaginação, a nossa inteligência e saber, e o nosso tempo, distinguindo o que é importante do que o não é (...), fazendo as alianças que é preciso e possível fazer em cada momento – por exemplo, no plano internacional, com países árabes não integristas ainda que autoritários. Partilhando o esforço dos Estados que se batem contra o terrorismo e nos defendem, mesmo quando dirigidos por políticos com a estupidez escrita na cara. E empenhando-nos inteiramente na refundação da democracia. Só assim nos reforçaremos. E só a partir de posições de força nos será dado encarar o futuro com menos apreensão.” (p. 410)
Que assim seja... a bem da Europa e da sua cultura humanista.
(Acentos, de Fernando Gil)
É difícil não sentir nojo quando assistimos às posições de certa esquerda. Há ataques a países que têm assumido firmeza no combate ao terrorismo e, ao mesmo tempo, um silêncio cúmplice quando se trata de condenar a destruição da paz mundial levada a cabo por chefes islamistas. Existe má-fé quando se avaliam os maiores crimes da História, quando se condena (e bem) o nazismo, mas se desculpam os massacres do comunismo. Branqueiam-se entretanto novas formas de terrorismo urbano, praticadas por arruaceiros que, mais do que marginalizados, se auto-excluem da convivência social.
A juntar a esta situação, temos o “multiculturalismo”, assumido por uma Europa que não consegue resolver sentimentos de culpa se não abdicando dos pilares da sua civilização, aceitando práticas que os contradizem, mesmo que sejam inaceitáveis. Tudo sob vestes “pós-modernas”, escondendo um nihilismo perigoso, que desfaz uma cultura matricial e estabelece o nada, tentando preencher o vazio com uma amálgama indigesta.
Neste tempo de pré-suicídio europeu, surge em Portugal um livro essencial para compreendermos melhor o tempo em que vivemos. Acentos, do filósofo Fernando Gil, editado pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, reúne um conjunto de estudos e de entrevistas que andavam dispersos. Em quase três dezenas de textos, esta obra coloca à nossa disposição reflexões fundamentais sobre temas tão diversos quanto a filosofia da crença e do conhecimento, o urbanismo e a vivência social citadina, a educação básica e universitária, a literatura de Luís de Camões e de Vitorino Nemésio, o estatuto das ciências sociais no mundo actual, a falência ideológica da esquerda e as causas íntimas do terrorismo.
De entre as quase quinhentas páginas do volume, revestem particular importância para o nosso tempo as que compõem os capítulos “Os Saberes e a Cidade” (pp. 183 a 251) e “Medos” (pp. 361 a 491).
Permito-me destacar “A Escola e a Sociedade Civil: a responsabilidade pública e os seus limites” (pp. 203 a 218) – que deveria ser leitura obrigatória para todos os agentes envolvidos no processo educativo, nomeadamente os decisores e burocratas do Ministério da Educação, os professores e os familiares dos nossos alunos – na medida em que denuncia com fundamentos fortíssimos a “derrota do universalismo” da educação e da instrução, que pode conduzir a “uma certidão de óbito do sistema de ensino”, na medida em que se consagra uma erosão do conhecimento, a pretexto de um falso respeito pela “diversidade”.
Destaque merece ainda toda a reflexão em torno do terrorismo. Nela relevo a análise dos seus fundamentos, deturpados em geral pelo falso “pacifismo” politicamente correcto, que não esconde a sua tolerância em relação ao islamismo radical, porque vê nele capacidades para recriar um novo “Pacto de Varsóvia” anti-americano. Nesta matéria, é muito importante o conselho de Fernando Gil: “(...) saberemos encontrar as boas respostas se decidirmos resistir colectivamente, por todos os meios ao nosso alcance, nisso investindo a nossa imaginação, a nossa inteligência e saber, e o nosso tempo, distinguindo o que é importante do que o não é (...), fazendo as alianças que é preciso e possível fazer em cada momento – por exemplo, no plano internacional, com países árabes não integristas ainda que autoritários. Partilhando o esforço dos Estados que se batem contra o terrorismo e nos defendem, mesmo quando dirigidos por políticos com a estupidez escrita na cara. E empenhando-nos inteiramente na refundação da democracia. Só assim nos reforçaremos. E só a partir de posições de força nos será dado encarar o futuro com menos apreensão.” (p. 410)
Que assim seja... a bem da Europa e da sua cultura humanista.
ATÉ QUE ENFIM!
Através do blog "Da Literatura" acabei de saber que hoje mesmo foi atribuído a Mário Cesariny de Vasconcelos o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores. Já era tempo! Não sei se o aceitará - mas ficará como marca de reconhecimento da altíssima da estatura da sua poesia, que tantos epígonos tem gerado e que, simultaneamente, tão maltratada tem sido.
Tem havido gente que gosta de recordar o Cesariny pintor, somente, como se ele não fosse sobretudo poeta, tanto nas cores quanto nas palavras. Pessoalmente fico satisfeito com esta distinção. Nada acrescentará à sua glória - mas tapará a boca de algumas pessoas que ainda resistem quando se trata de reconhecê-lo como um dos maiores poetas vivos de língua portuguesa.
Os Bichos à solta…
Já estão em liberdade – ou seja, editados – os Bichos do nosso confrade brasileiro Renato Suttana.
Estes bichos inteiramente em espécie protegida – quer dizer, saídos da pena inspirada do autor de O livro da noite – são fruto duma colaboração entre ele e Nicolau Saião, que tomou conta dos perfis de todos eles, da galinha ao porquinho da índia passando pelo leopardo, o besouro e outros mais, em número de 30 numa sequência não só zoológica como plástica a preto e branco mediante a técnica do desenho a computador.
"Não há arte moderna, não há arte antiga, existem unicamente leis eternas reencarnadas, tal como as gerações de uma mesma família perpetuam e distinguem tipos hereditários. Fala-se então do mesmo sangue. Também a arte faz correr um só sangue, nestes rostos diferentes, aos quais dá cor e vida."
René Huyghe - Os Poderes da Imagem (1965)
RAINER MARIA RILKE
Ó vós, os ternos, de vez em quando ide,
entrai no hausto que a vós é indiferente,
nas vossas faces logo se divide
e treme atrás de vós, unido novamente.
Vós bem-aventurados, vós eleitos,
que em vós começam os corações se diz.
Arcos das flechas e seus alvos perfeitos,
mais para sempre em lágrimas sorris.
E não temais sofrer. O fardo, sem receio,
à terra e ao seu peso devolvei-o;
pesados são os montes, pesados são os mares...
E mesmo as árvores na infância plantadas
já não podeis com elas, de há muito são pesadas.
Mas os espaços... mas os ares...
(4º poema de Os Sonetos a Orfeu - tradução de Vasco Graça Moura)
Delicadeza (de cócoras)…
Estive no norte – e vim de lá de peito feito. Os ares do norte fazem-nos disto, deixam-nos sem paciência para aturar gandulos. Por causa da mudança de ares? Não sei e o curioso é que me sucede o mesmo se regresso de Espanha. E de França. E do norte de África. E mesmo de…
Pensando bem, até me sucede o mesmo no meu lar: se vou da cozinha à sala, se vou do quarto à “casa dos livros”, sinto farnicoques semelhantes. E até quando vou à retrete. E no átrio. E na marquise!
Em resumo: deve ser do meu feitio – pouca paciência para aturar gandulos tal como para aturar bêbados. Não tenho pachorra, atiro logo o velho coice. Até, vejam lá, me sucedeu com uns palermas que recentemente me chatearam com tolices em espaços interactivos!
Quer isto dizer que sou um enragé?
Nem por sombras! Acho que sou um tipo muito doce. Cheio de minutos de ternura, tendo movimentos interiores muito cariciosos…
Olhem há bocado, por exemplo: um amigo, que não é tolo nem parlapatão, deu-me uma notícia que logo me pôs o olho a luzir de mansuetude. Contou-me ele que, num painel de propaganda do nosso estimado Cavaco, esplendia convenientemente enquadrada por uma bandeira portuguesa de vastas proporções uma frase amorável e muito delicadinha. Rezava ela, se o relato não me atraiçoou: “Portugal precisa de si”.
“De si”, sublinho. Não “de ti”. Não de “o meu amigo”. Não “de vossência” – ou outra qualquer amenidade pelo estilo.
E isto põe-me como que a sonhar… A matutar na delicadeza, na reverência educada da mente que a concebeu, que a pespegou para valer. Uma frase realmente digna de um digno futuro presidente com que certos sectores contam para fazer a barrela do portugalinho.
Assim é que é. Não como nas cidades gregas, onde o putativo líder local era logo tratado democraticamente (abusivamente?) por tu. Ou na proletária América, onde um qualquer político vê devassada a sua intimidade pessoal (logo de figura). Ou na aristocrática Inglaterra, onde um qualquer homem público é bajuladoramente quase tratado por “sir”, à cautela.
De si… Sim, é esta a delicadeza que faz falta: respeitosa mas contida, tão escorreita como o perfil enxuto, bem português, do algarvio de Boliqueime.
Uma delicadeza retintamente lusitana?
Não sei… Mas que é bonito e sério, lá isso…
Será a política cavacal, finalmente, a safa deste país sem etiqueta?
Nicolau Saião
O PIN DA BÍBLIA
A Bíblia, dirigida pelo poeta Tiago Gomes, fez nove anos. Assinalando a sua longevidade que, como refere Fernando Aguiar, é "incomum em revistas dedicadas às artes e às letras", foi publicado um volume com uma selecção de textos publicados até hoje nesta revista. Eduardo Pitta refere com razão: "O fair play garante a coabitação de conservadores e radicais, urbanóides idiossincráticos e cronistas da ruralidade pós-punk, poetas porno-ecfrásticos e neo-dadaístas, common people e rapaziada iluminada."
De entre os motivos de interesse permito-me destacar neste livro os textos de Amadeu Baptista, Ana Horta, Ana Teresa Pereira, Carlos Leite, Fernando Guerreiro, Jaime Freire, José Luís Peixoto, José Mário Silva, Rui Carlos Souto, Rita Taborda Duarte e Tiago Gomes.
A colectânea pode ser adquirida nas livrarias ou solicitada à redacção da Bíblia (Rua da Boavista, 76 - 2º, 1200-068 Lisboa).
De Amadeu Baptista podemos ler na página 49:
RON CARTER, DANÇA PARA CONTRABAIXO
Sinto o esforço
do contrabaixista
durante o improviso.
Há uma tensão erótica
no modo impetuoso
como da anca ao arco
transfigura a música
em movimento puro.
A erecção acústica
entrega ao instrumento
o orgasmo múltiplo
do pizzicato intenso.
As mãos tremendas.
E luminescentes.
A Bíblia, dirigida pelo poeta Tiago Gomes, fez nove anos. Assinalando a sua longevidade que, como refere Fernando Aguiar, é "incomum em revistas dedicadas às artes e às letras", foi publicado um volume com uma selecção de textos publicados até hoje nesta revista. Eduardo Pitta refere com razão: "O fair play garante a coabitação de conservadores e radicais, urbanóides idiossincráticos e cronistas da ruralidade pós-punk, poetas porno-ecfrásticos e neo-dadaístas, common people e rapaziada iluminada."
De entre os motivos de interesse permito-me destacar neste livro os textos de Amadeu Baptista, Ana Horta, Ana Teresa Pereira, Carlos Leite, Fernando Guerreiro, Jaime Freire, José Luís Peixoto, José Mário Silva, Rui Carlos Souto, Rita Taborda Duarte e Tiago Gomes.
A colectânea pode ser adquirida nas livrarias ou solicitada à redacção da Bíblia (Rua da Boavista, 76 - 2º, 1200-068 Lisboa).
De Amadeu Baptista podemos ler na página 49:
RON CARTER, DANÇA PARA CONTRABAIXO
Sinto o esforço
do contrabaixista
durante o improviso.
Há uma tensão erótica
no modo impetuoso
como da anca ao arco
transfigura a música
em movimento puro.
A erecção acústica
entrega ao instrumento
o orgasmo múltiplo
do pizzicato intenso.
As mãos tremendas.
E luminescentes.
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