RECONHECIMENTO
(Bissau)

a carne queima a sombra e a memória.
deixa sobre os olhos um traço negro.

a água não consegue lavar a cinza deste corpo.
sem membros, o tronco enegrece sobre a terra.
deixa nas árvores o último grito -
lançado na hora do abate.

que corpo resguardava esta carne?
trago às palavras um nome, um gesto, uma fronteira.
sem vida, o meu olhar descobre nas vísceras
vestígios de saudade
que a tarde não conseguiu matar.

sangue apenas?

coágulos dissolvem o centro da cidade.
o metal atravessa as estrelas,
reconhece na carne os odores da última viagem.

que noite vivo?

a memória enegrece, mas persiste.
escavo o esquecimento.

a fotografia permanece
- calcinando o fogo.

(para Joaquim Baptista Ventura, meu pai)

2 comentários:

Anónimo disse...

Se bem percebi o que está por detrás deste poema, o Ruy Ventura teve pai na guerra da Guiné. Ora, eu, também.
O dele, do Exército, suponho, em terra, no mato, na lama, na humidade pesada daquela terra em que hoje ninguém se entende, de Ninos, Ansumanes e Kumbás mais do que estranhos (para não dizer outra coisa). Já não de homens brilhantes, de sentido universalista, como o Amílcar Cabral (que tinha costela cabo-verdiana, o que só por si diz muito). Já não, infelizmente.
O meu pai, sargento da Armada, ali esteve por dois anos, como mestre do navio patrulha «Dragão». Com tanta sorte, porém, que só navegou o primeiro mês e o último da comissão. Os restantes vinte e dois passou-os numa vivenda em Bissau, divertindo-se com a cozinha que fazia para si e para colegas, que a apreciavam, indo uma vez ou outra ao cinema e pouco mais. Isto, enquanto o navio, já então um tanto usado, tinha demorado conserto nos estaleiros locais.
E vivo regressou, que milhares de outros não conseguiram tal proeza. Mas ainda assistiu a queda de metralha sobre o local onde havia urnas soldadas que aguardavam envio para Portugal, com corpos de militares mortos em combate. Mortos duas vezes, os nossos homens...
Quase à beira do regresso, passou por encalhe em estreito rio, enquanto intenso fogo cruzado assobiava por cima da copa das árvores que o bordejavam… mas suficientemente baixo para aterrorizar a guarnição do navio que daquela vez se safou.
Já a salvo em Portugal, soube de traiçoeiro obus que furou o convés do navio e só parou na cama que fora sua, ferindo com gravidade o substituto – ainda hoje portador de alguns estilhaços numa anca.
Dias terríveis, de um tempo perdido, de muito sofrimento, cuja memória ainda não se esbateu.
Como se vê, pelo muito sentido ventural poema.

Ruy Ventura disse...

É isso mesmo amigo Saial. O poema tenta interpretar uma experiência em segunda mão que sempre me impressionou, a experiência do meu pai na Guiné, quando teve que reconhecer 26 companheiros completamente mutilados depois de um recontro no mato.
O meu pai, mesmo assim, foi um felizardo, pois era soldado condutor em Bissau. Mas muitos vieram de lá em urnas ou muito traumatizados com a experiência de guerra.