NOS 70 ANOS DA MORTE DE
FERNANDO PESSOA

Faz hoje setenta anos que morreu Fernando António Nogueira Pessoa, num quarto do Hospital de São Luís dos Franceses com vista sobre o Tejo. Nesse lugar pequeno permanece ainda hoje uma gravura com a efígie do poeta e com a reprodução do manuscrito de um poema seu. Como homenagem ao autor d’ O Guardador de Rebanhos e ao homem que um dia aconselhou um garoto seu vizinho a não se “deixar vencer por medíocres”, “Estrada do Alicerce” publica hoje três poemas da sua imensa obra (dois dos quais os últimos que escreveu), traduzidos da língua inglesa por Luísa Freire.


O POEMA

Um poema dorme em meu pensamento,
Capaz de expressar minha alma inteira.
Vago eu o sinto, como som ou vento,
Mas já talhado em forma derradeira.

Nem estância ou verso ou palavra tem.
Tal como o sonho ele não tem lugar.
Um mero senti-lo, que difuso vem,
Como névoa feliz cercando o pensar.

Neste mistério noite e dia assim
Eu o sonho, o leio e o soletro,
E na berma das palavras sempre em mim
Parece pairar vago e completo.

Sei bem que ele nunca será escrito.
Também sei que não sei o que ele é.
Mas só de sonhá-lo, feliz já fico,
E ventura é ventura, falsa até.

(in O Rabequista Mágico)

*****

Ele ‘screveu óptimos versos
Estando sempre embriagado.
Pior podia ter sido.
Podia escrever piores versos
Mentalmente em melhor estado.

Isto assim está tudo errado.
Nós nunca estamos cientes
De quem é forte ou é fraco
Ou assim-assim somente.
Pertencendo à humanidade, vivemos e desejamos
Mas sempre nos preocupamos.

Nunca nos vem a razão
Excepto se nos chegar,
De súbito e para sempre, aquela real visão
Do que nos puder salvar;
E isso é algo jogado
Entre o que é ou tenta ser,
Ou algo que não lembramos
Ou algo que é já perdido,
Ou algo que ‘speramos ver,
Ou só nada, sem sentido.

[18/07/1935]

*****

O sol feliz está a brilhar,
O campo é verde e contente,
Mas tenho o peito a ansiar
Por algo que está ausente.
Anseia por ti somente,
Anseia por beijos teus.
Não importa se és fiel
A isto.
O que importa és tu somente.

Sei que o mar está cintilante
Debaixo do sol de verão.
Sei que as ondas são brilhantes,
Cada uma e todas são.
Mas ‘stou de ti afastado,
Oh, dos teus beijos ausente!
E isso é o que há de verdade
Nisto.
O que importa és tu somente.

[22/11/1935]

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom blogue, não conhecia. Vou passar a ler com frequencia.
Quem me falou nele foi a Nela Vicente, da Alagoa, que estuda aqui no Técnico.
Parabéns e continue.

Ruy Ventura disse...

Obrigado aos dois, a si e à Nela Vicente. Voltem sempre!

Anónimo disse...

Parabéns! Também acho que o Livro do Desassossego é o maior da literatura de todos os tempos e lugares.
Palavras da Nela Vicente, mas não da Alagoa...

www.nelavicente.no.sapo.pt