DOIS POEMAS
PARA A NOITE DE NATAL


nascimento
[presépio]

Sopra-nos do barro. Ilumina o cabelo, a voz da montanha.
(Sobre a mesa, a cinza deste corpo.)
A cidade cresce, sem casas. A respiração queima, lentamente, os olhos, as unhas, a mão. O sangue. A chama permanece, tão pequena. O calor repousa sobre o musgo. Uma lágrima irrompe pela manhã. A gilbardeira coloca, sobre o peito, um pouco de alegria.
Nos olhos e no cabelo (nesta mão), as imagens reverdecem. O fogo tece-nos, mesmo à distância. O vento apaga (acende?) essa chama nascida no interior da montanha.
A criança sopra – o barro que somos. A palavra aquece-nos. A flama aquece o coração e o mundo.
(Sobre a mesa, a cinza desse corpo.)
O corpo navega, flutua. Desenha na terra essa criança - nascida sobre as águas.



memória
[José, o carpinteiro]

Dissolvo o sangue e a memória nesta criança que acolho sobre os braços.
[Uma árvore floresce em pleno inverno, perto da luz que nos aquece as veias.]
Dissipei a dúvida e cansaço neste sorriso que domina a minha voz. A madeira floresce neste ouro feito de lágrimas, de sombra, de agonia. Recordo agora, aqui, a longa fuga pelo deserto, pelo sal, pela palavra. Fugindo de mim mesmo, encontrei neste menino a esperança, o sol, a alma.
Que sobra hoje do encantamento, do calor e da luz na manjedoura? O rosto de uma mãe tão perturbado p’lo nascimento desta alegria? O sangue cobrindo este corpo? Os anjos cantando, como água, no meio da secura e da saudade?
Pouco sei desse tempo recolhido no menino que guardo sobre os braços. Transporto no silêncio do meu rosto outro silêncio sem tempo nem lugar: o calor desta criança semi-nua num mapa onde cabem terra e mar.


****


Com estes dois pequenos poemas em prosa, desejo a todos os leitores um Natal cheio de alegrias espirituais e com muita saúde.


(Na imagem, escultura em barro de Maria Helena Lourenço (2004), em colecção particular.)

Teatro de Espelhos
(texto de Rui Lage)

Sócrates dizia: "conhece-te a ti mesmo". Pessoa inverteu a máxima e disse, na sua poesia (e nesse livro maior da literatura de todos os tempos e lugares, o Livro do Desassossego): desconhece-te a ti mesmo. A ironia, ou o paradoxo, desta inversão, é que também a formulação pessoana aspira a uma espécie de "maiêutica" que consiste em revelar a existência humana em todo o seu esplendoroso vazio − e beleza. Pessoa percebeu que cada indivíduo é também uma abstracção de si mesmo, um "Eu" disperso e fragmentado. É verdade que foi Rimbaud o primeiro a descobrir que "Je est un autre", mas só Pessoa conseguiria dialogar com esse "autre", elegê-lo como interlocutor legítimo. A sua obra é um espelho (aliás, um teatro de espelhos) onde cada indivíduo, olhando-se, não poderá deixar de se reconhecer − de reconhecer que é uma mentira (ou fingimento de si) e, em novo passe de mágica, que nessa mentira reside toda a sua verdade. A consciência de si, nele, levou à perda da consciência, permitiu-lhe olhar-se como se fosse estranho a si mesmo e concluir que, afinal, não havia nada a não ser o vazio. Foi, por isso, de todos os poetas ocidentais, o mais universal e o mais humano. Por outro lado, é sempre com pudor que se fala de Pessoa, e a poesia portuguesa, a partir dos anos 70, começou a desenvolver uma relação complexada com a sua obra "monstruosa". Muitos começaram, entretanto, a afiar as espadas. Aqui e ali, ainda a medo, já se vão desferindo uns golpes na herança pessoana, tentando menorizar ou relativizar a sua obra. É grande a tentação, para um crítico, ensaísta ou académico, de aparecer como aquele que colocou Pessoa no seu "devido lugar"... O fantasma de Pessoa, porém, é daqueles que resiste a todos os exorcismos. Quanto mais o procuram desvalorizar, mais o enriquecem, ele que, ainda por cima, previra tudo isso. Falar pois da influência de Pessoa na cultura portuguesa contemporânea é uma redundância, pois tudo o que foi escrito ou pensado depois dele denuncia, de alguma forma, a sua marca. A sua visão do mundo, articulada na sua poesia, é definidora da nossa identidade (não da pátria, pois que a sua única obra menor é, precisamente, a Mensagem). O que é o "medo de existir" desse inesperado "best-seller" de José Gil senão uma versão extensa do "Ó Portugal, hoje és nevoeiro"? Fernando Pessoa, o maior poeta e filósofo português de sempre, levou a cabo, sozinho, uma revolução de lucidez: conheceu-se desconhecendo-se.

(Publicado originalmente no JL nº 918)

O bisneto de Frankenstein

Aquele senhor de olhar alucinado, de conspícuas barbaças na face, o cómico-trágico que as “eleições” iranianas deixaram presidente da “pobre Pérsia” como dizia Nostradamus, alegrou novamente os cretinos com outra cházada (passe o termo) perfeitamente à altura doutras tiradas anteriores suas.
Desta vez quer que os judeus se mudem para o Alaska ou, caso sofram, acho eu, de reumatismo e constipação, pelo menos para a Europa – lugar onde aliás, segundo o mesmo fulano, nunca ninguém lhes fez mal. De caminho informou os mais distraídos que sim senhor, visa arranjar um punhado de bombas nucleares (o que não será decerto para ir aos pardais).
Para minha tranquilidade psicológica, urge dizer que na blogsfera os comentadores mais sensatos e capazes, de Eduardo Pitta (“da literatura”) a José Cartaxo (“Viagens em terra alheia”) souberam articular o tom apropriado para efectivarem textos adequados à situação.
Há que, a exemplo de Michel Houllebecq, não ceder a chantagens de asseclas ou familiares do “politicamente correcto” e dizer com galhardia: “Quem anda a provocar um choque de civilizações, ou pelo menos a pôr-se a jeito para uma bela trepa, são os ulemas e seus discípulos, escorados por fora em jeito de ‘criados do médico louco’ pelo rebanho de ‘revolucionários profissionais’ que esperam que eles os vinguem do tombo que deram a Leste”.
Já se percebeu que os apaniguados dos mullahs mais tarde ou mais cedo vão ter de levar com a bombita nas narinas. Fingir que isto é ficção-científica é levar de facto a cegueira demasiado longe.
Mas esta rapaziada simultaneamente sinistra e inquietante ainda não percebeu que com gente daquele perfil não se pode jogar a feijões? Hein?

Nicolau Saião
(c/ ilustração de Manuel Huerta, Chile)

Vozes do Brasil

FLORIANO MARTINS


Por trás da memória


Resplenda um mito, seu nome vago.
Manchas do ser, fuligem, contemplação.
Reino fugaz de formas, fulgor mutante.
A sombra concentrada na memória
define a cartografia do abismo, queda
abismada pelo equívoco da matéria.
Arquivo de sombras, zelos e fraudes,
a imagem duplica-lhe a horda de vultos,
errância fantasmagórica de conceitos.
Não importa Klee ou Bacon, anotações
sutis do assombro. Da própria cauda
cuida a memória, Uroboros regurgitada
a cada confronto com a matéria do ser.



(Ilustração de Hélio Rôla)
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

PEDRO GIL-PEDRO


Pendem
nas leiras – um arado que cega

à cabeça.

no fulcro
da ira
fecundam os crivos da manhã.

e:
ganchos de pureza –

as mulheres
levantam-se como um dedo aberto

nas traves do silêncio.


*****


uma corola de obscuridade

o semeador entrelaça as mãos e o corpo
nos instrumentos da ira e propõe-se

enfim

a lascar o silêncio
por fora

e por dentro

até à fulguração da pedra.


*****


o semeador levantou alto a mão
e respirou a pedra como se a semeasse

as mulheres olhavam-no em sobressalto
como animais de silêncio nos prumos do estio.

e só então
o ciclo da chuva nos teares.


Pedro Gil-Pedro (Sesimbra, 1973) é o pseudónimo de José Pedro Francisco. Trabalha em Lisboa e publicou Animais Cheios de Movimento no Inverno (Quasi, 2000), de onde se retiraram os três poemas que aqui divulgamos.

As mortes exemplares
(texto de Nicolau Saião)

Os números aí estão, insofismáveis, com a dureza e a naturalidade próprias da amarga verdade: o distrito de Portalegre é a segunda região da Europa com mais elevada percentagem de suicídios. Só é ultrapassada por Beja, essoutra região desprotegida de Portugal.
Números divulgados pela Associação de Estudos Estatísticos, corroborados por organismos da União Europeia, abrem o pano de um triste cenário para quem tem o hábito de ler periódicos daquém e dalém mar.
E aí está a região chave do nordeste alentejano, mais uma vez, a ter o lamentável privilégio de se ver citada por razões negativas.
Razões? São muitas, desde o recalcamento psicológico-sexual propiciado pela pressão duma religião mal-assimilada e nos limites da medievalidade até aos preconceitos provindos duma vida de relação atabafante e mesquinha, com o espectro da debilidade económica e da falta de meios sempre no horizonte: onde o comércio e a indústria não conseguem ir além da ronceirice requentada, só quebrada pela prosperidade das grandes superfícies, onde se encara frequentemente como cultura a efectivação de acções para entreter e lançar poeira nos olhos; e se tenta colonizar os espíritos mediante sessões que não deixam resíduo, que nada criam e nada proporcionam de durável, buscando transfigurar medíocres boas-bocas em “génios por via administrativa”…
Onde os que se rebelam contra a impostura são em geral marginalizados e substituídos por gente sem talento e frequentemente sem ética.
Onde o turismo, apesar das encenações a que alguns se entregam para “deitar milho aos pombos”, alcandorando-se quiçá a prebendas, não anda nem desanda. Ou antes, sarabanda…
Que o perímetro desta região está de facto doente, eivado de neuroses sociais onde aflora o “discreto” desprezo pelo cidadão por parte de organismos de segurança, violências oficiais subterrâneas e desvigamentos socio-económicos, infelizmente já o sabíamos. Agora aí está preto-no-branco, para nosso desgosto, nossa vergonha - e falta dela nuns tantos.
Mas que fazer quando os organismos médicos são entidades persistentemente anquilosadas, nalguns casos até com gritantes fracturas no seu existir? Quando as "forças vivas" olham mais para o umbigo que para o bem-estar dos cidadãos a quem por vezes hostilizam quando não vergam o pescoço à canga com que habitualmente tentam jungi-los? Quando certas entidades espirituais-clericais avalizam a ignorância e substituem o esclarecimento e a autêntica vivência religiosa por actuações visando a permanência de teimas e de escleroses mais de cunho beato-falso que filho do legítimo cristianismo digno do século em que estamos?
Diz o ditado que “o pior cego é aquele que não quer ver”. Mas o pior mesmo, segundo creio, é o que tenta que os outros não vejam.
Pela minha parte acrescentarei que, mais que aos obstinados, a culpa de situações assim cabe aos que tentam substituir-se à vida clara, ao interesse dos concidadãos - para continuarem a seroar nas suas confortáveis posições extáticas, oportunistas e sectárias ainda que à custa de um ambiente ilegítimo e suicidário.
Que o “Deus das pequenas coisas”, como dizia Arundhati Roy, nos ajude neste período pré-natalício…
MEMÓRIAS
DE UM POETA COMOVIDO

Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra; humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões. Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das vidas que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na ESE de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitula-se (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos. O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992. Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si. A dado passo, Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido”. Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores.
As primeiras páginas do manuscrito estão escritas em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos versificatórios tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Numa delas, ainda actual, afirma (e assim termino):
Com repúblicas e monarquias, / Assim vamos passando os dias, / Vivendo assim iludidos. / Em guerra vamos passando, / Por baixo do fogo chorando, / Uns já mortos, outros feridos. // Essas grandes democracias / Combatem todos os dias / Contra esses ditadores, / Porque na verdade porém / Deles só guerra nos vem, / Fome, lágrimas e dores. // [...] // Mal empregada Ciência / A custo e com paciência / Que hoje se está cultivando. / Só se emprega em maquinismo / Pra nos trazer o terrorismo / Para os inocentes ir matando. // Essas grandes construções / Tanto em barco como aviões, / Não tem fim o seu limite. / Afinal o que é que fazem [?] / A morte à gente nos trazem, / Construção de dinamite. // Maldita guerra afinal, / Que se torna universal. / Achando pouco a Europa, / Por toda a parte se grita, / Só se vê gente aflita, / Tanto civis como tropa. // [...] // Acabai com o armamento / Todas as nações ao mesmo tempo, / Sejam iguais as bandeiras. / Tenham-nos uma amizade, / Com tanta solidariedade / Com os irmãos de Além Fronteiras. // Esse grupo de vilões, / Ministros e patrões, / Esses que nada produzem. / Com a sua instituição, / Sem alma nem coração, / À miséria nos conduzem. // [...]
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

RUI LAGE



Elipse

Nos pomares,
nas hortas ascendentes
a tarde inteira foram as vozes
sem quebras, sem omissões
e a crina do potro sacudiu a pastagem
palpitante de sol
sem que noite alguma viesse
elidir o pensamento.

(in Berçário)



Espanto

Os pardais dispararam das heras
a coberto da noite
que tacteava na lenha.

Primeiro o rufar das pequenas asas,
um estertor, uma arritmia, depois
as salvas secas
enquanto rodei sobre mim
o tempo de pressentir a sombra
que partiu com eles em busca de longe

(de bosque em bosque
de fonte em fonte
e de prado em prado).

(idem)



A Céu Aberto

Dizem que o Sr. João não se lava,
que em certas noites
dorme no monte junto ao cavalo;
que bebe muito e cai pela terra
em redondo o pensamento,
que a sua cama não tem lençóis
e que a suportam quatro tijolos;
que nunca lava as escadas
e que nunca lava a roupa
embora permaneça preso ao ribeiro
muito depois
de as mulheres terem partido.

Vejo
que a cova dos seus olhos
foi aberta num sítio
rodeado de terra por todos os lados.

As árvores, que se saiba,
não se lavam
e dormem ao relento
encostadas ao cavalo do estio
(se assim não fosse não amaria
o que já não seriam árvores).

(in Callipole – Revista de Cultura, nº 12, 2004)


Rui Lage (Porto, 1975), licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, é membro da Fundação Eugénio de Andrade e director da revista águasfurtadas (Porto). Publicou, em poesia, Antigo e Primeiro (Quasi, 2002) e Berçário (Quasi, 2004). É ainda autor de uma peça de teatro, Não há mais que Nascer e Morrer (Edições Mortas, 2004).


O meu amigo Jagodes
(Texto de Nicolau Saião
com "Um anjo bondoso", de Yrmak Kazil)

Será preciso apresentar-vos o meu confrade José Jagodes? Creio que seria estultícia – como usa dizer o Prof. Pamplinas Miragaia – um tal procedimento.
Pois quem não conhece o famoso Dr. José Jagodes? O intelectual brilhante mas modesto, o aventureiro epicurista, o pensador profundo e o conhecido polemista - já terçando lanças com Edmundo Prates Carmelo, Silva Tavares ou Perneco Ferreira, já trocando farpas com o até à altura imbatível Ronaldo de Sousa, o único luso comentador que conseguiu num lance famoso polemizar consigo mesmo ao espelho mas que, no confronto com o Dr. Jagodes, teve de se calar pela primeira vez na vida, enfiado e tartamudeando.
Foi, com efeito, esta personalidade ímpar que me remeteu da sua casa de Linda-a-Velha uma carta que vos vou confiar com todo o gosto:
Caro amigo: Já disseste, e talvez com razão, que algumas das palavras que te tenho escrito provavelmente ajudarão a fazer a “pequena história” desta região de nome Portugal e do muito povo que nela reside e mesmo vive. Por isso aqui vai um novo esboço...
Ontem, nessa caranguejola maravilhosa chamada televisão, vi um digno senhor acompanhado de outro senhor mui digno debaterem uma cousa assim a modos que presidencia da República, se não estou em erro, a que ambos e muito bem concorrem.
Um deles, magrito e taciturno e um bocadinho atabalhoado na fala (o que aliás até lhe fica a preceito, dá-lhe um ar peculiar e solene, agradável de ver, de homem de Estado cheio de donaire) esforçava-se por demonstrar que ao mais alto magistrado da Nação (como dizem os comentadores aperaltados) na pátria de Camões cabe-lhe ser uma espécie de mordomo – já porque dali não vem o perigo político de “agitar as águas” visto só servir para ajudar o povo a ter, digamos, socialmente maneiras e melhorias de estilo vivencial – ou uma espécie de conselheiro espiritual para o primeiro-ministro, já abrindo-lhe os olhos para as duras realidades da vida (como faziam as avózinhas antigamente) já ensinando-o talvez a comportar-se nas recepções (como se faz aos adolescentes pernetas). Quiçá servindo de manso excitante para que os empresários e os parceiros sociais consigam alcançar boas performances…
Mas se ao presidente da República cabe dest’arte o papel de ama-seca, de grilo-falante ao jeito do Pinóquio, quando muito de explicador escolar ou de “claque” para espevitar actuações governamentais ou populares – para que andam as gentes em polvorosa, inquietas porque parece estar para vir aí um tal Prof. Aníbal autoritário e rodeado de gente vigorosa que se diz não ser para brincadeiras?
Algo está muito mal contado. Ou então sou eu que sou ingénuo como uma ninfeta…
”.
Li e engoli em seco. Decerto como todos vós engoliríeis...
Tenho de ter cuidado nestes meus contactos com o Jagodes. Até pode calhar que ele tenha razão no que diz. Mas…confesso que me começo a preocupar: qualquer dia, se mal se precata, o meu amigo “vai dentro” e eu não quero ser arrolado de embrulho, ainda tenho muito que fazer.
Vou ser prudente. Mesmo que me chamem um bocadinho medroso, quero lá saber! É que numa terra como a nossa, de gente de categoria, com doçura e bondade como aquele senhor de ontem - a tradicional “brandura dos nossos costumes” - todo o cuidado é pouco…
Vozes do Brasil

C. RONALD



Talvez nos deslumbre o crepúsculo, a ironia da imagem
débil em nosso começo quando vou a ti só com o murmúrio
da mente e chego a quatro paredes. Este é o privilégio
da noite, um abrir de conchas num mar quieto.
Reage o ser e o tempo nesse desesperado limite
em que a dor faz parte da matéria
sem gritos.
Há o tamanho do remoto que já vive
ao lado do que sonhamos depois de acabado o jogo
na claridade de outro infinito. Por que nunca gritam
os pássaros que nasceram com o poder do canto e as coisas
bem mais próximas deles? E os peixes mudos
entre as malhas da rede? Só destruímos como surdos.
O mundo pronto a ter com nossa vida o que é pequeno...

(in Gemônias, Universidade Federal de Santa Catarina,1982)


Um estádio repleto de torcedores tem mais
sonho que corpo: soma da matéria sem retorno.
Calculamos o centro dos desejos sempre em jogo
com aquilo que houve: rivalidade de homens.

O resto deposita-se na fonte. O mundo basta
para manter o acaso com a inocência das árvores.
Eis o álbum aberto sob as imagens de tantos
e o proveito de um erro nesse drible mal pensado

fora de todo o espaço nas horas sem realidade
quando surge o sentido da nossa nudez num quarto
e as árvores preparam-se para o próximo encontro
perdendo as folhas de antes pela verdade do tronco.

(idem)


Alguma necessidade impõe às rosas
a diferença de cores. Mas os pardais
que voam entre uma discussão
e outra, nem seriam pássaros,
não houvesse o voar constante
em tamanha proximidade com os homens.

Pouco me interesso por eles.
Maior é a certeza pelo que houve
dos sonhos. Mas por que vivem
se não cantam?

E que adianta a origem comum a todos
num destino insondável de poeta?
Já estivemos perto, a diferença
é só a entrada no infinito e basta
girar o mito numa esquina
de rua deserta.

(idem)

ESTA VIDA DE PROFESSOR (3)

Não gostaria que ficásseis com uma imagem demasiado negativa do mundo em que vivem os docentes portugueses. Embora se note um crescente desencanto em relação ao exercício profissional – motivado, em boa parte, pelos ataques movidos contra a sua imagem, que têm posto em causa a sua relevância social –, os professores têm ainda muitas razões para se sentirem felizes nas escolas. Claro, têm que vestir todos os dias uma boa dose de estoicismo, para se aguentarem de pé depois das rasteiras da tutela, de sindicatos desligados da realidade, de conselhos executivos míopes ou maldosos, de colegas pouco conscienciosos, de alunos com educação deficiente, de famílias irresponsáveis e/ou inconsequentes... Mas, mesmo assim, se ao fim de cada dia colocarem nos pratos da balança os aspectos negativos e os aspectos positivos, encontrarão um saldo muitas vezes positivo. E é esse saldo que os faz andar para a frente – resistentes, como são, todos os dias.
Um exemplo, entre muitos que poderia dar. Trabalho com os alunos da minha escola num “Clube de Escrita”, que visa promover o gosto pela criatividade verbal e pela leitura. Somos todos voluntários. Nas duas horas semanais que lhe são dedicadas, eu poderia estar na sala de professores à espera de Godot... Naquelas horas demasiado matinais (e agora frias, de Inverno...) os alunos poderiam estar na cama, no calor dos édredons... Mas não. Preferimos ambos estar ali a lidar com as palavras, retirando delas saber e sabor... Tenho-me surpreendido com o entusiasmo dos gaiatos (como se diz na nossa terra, em saboroso português): chegam ao ponto de querer trabalhar noutras horas, só para escreverem. O resultado está à vista numa página da internet (http://www.santanapequenosescritores.blogspot.com/); os textos são ingénuos – como seria de esperar –, mas não deixam de ser saborosos. Digam lá se tudo isto não vale muito mais do que as chatices que tanta gente nos causa...
Infelizmente há alguns aborrecimentos a que os professores que amam a sua profissão não podem escapar. Podem resignar-se a tudo – mas não podem esquecer que, hoje em dia, têm que trabalhar com um sistema educativo que promove tudo, menos o verdadeiro sucesso dos alunos na aprendizagem. Deixemo-nos de tretas: aquilo que nos querem impingir não passará nunca de um sucesso artificial, sem verdadeira qualidade – uma espécie de vinho a martelo que terá consequências graves no futuro...
Poderá ser sucesso verdadeiro o que nasce de um sistema em que a reprovação dos alunos é dificultada ao máximo, através da imposição de um sem-número de procedimentos burocráticos que visam passar os alunos, sem que estes o mereçam, e vencer os professores pelo cansaço? Poderá conduzir ao sucesso um currículo preenchido por áreas não-disciplinares (Estudo Acompanhado, Formação Cívica, Área de Projecto, etc.), aparentemente benéficas, mas que redundam apenas numa infrutífera ocupação de tempo roubado às diversas disciplinas (sobretudo Língua Portuguesa e Matemática!)? Poderá existir sucesso quando essa falácia chamada “autonomia” permite às escolas a fixação dos mais díspares critérios de transição ou retenção (o mesmo aluno, com as mesmas notas, pode passar numa escola e chumbar noutra...)? Poderá existir sucesso num sistema educativo que tem sido desvirtuado nos seus mais elementares fundamentos, nomeadamente na promoção do mérito e na sã correspondência entre desempenho e consequências do desempenho (nos conhecimentos e nas atitudes)? Poderá, enfim, existir sucesso numa Escola em que não se promove a disciplina e o respeito nas vivências sociais, fazendo corresponder aos direitos um claro quadro de deveres, cujo não cumprimento corresponderia a sanções rápidas e exemplares?
É fácil, quando se fala em insucesso escolar, atribuir todas as culpas aos professores e a factores sócio-ecónomicos. Algumas existirão, decerto. Não equacionar as questões anteriormente referidas é ter, contudo, uma visão coxa das suas causas. Infelizmente, poucos ou nenhuns sindicatos enfrentam o Ministério da Educação para que estas questões sejam resolvidas. Por esta e por outras razões não costumo fazer greves.

Natureza viva
com amigo
e telefone
(texto e ilustração
de Nicolau Saião)


Anteontem, aí pela tardinha, estive de longe à conversa com um amigo. Minto, a conversa foi de perto, as casas é que estavam longe mas o aparelhómetro aproximou-as.
Ambos emocionados recordámos velhos tempos dos inícios de oitenta: quando, acompanhados em geral por outro amigo – esse, então funcionário duma livraria-editora onde mais tarde iria justamente ocupar lugar bem mais importante, infelizmente já falecido – percorríamos muitos lugares de Lisboa aonde a nossa curiosidade nos levava.
Recordámos também os passeios que dávamos com um filho meu: esse amigo, que sempre teve para connosco uma maneira de ser bondosa e comunicativa, aberta e franca, levava-nos a galerias e, nos museus que visitámos, era uma espécie de cicerone para com o pequeno João. Comprava-lhe livros adequados à idade, guloseimas quando calhava, tinha para com ele atenções que não se esquecem.
Ficávamos sempre no sofá-cama dum “atelier” que ele tinha – pois o meu amigo pinta e também escreve. E de que maneira!
Comigo era um senhor companheirão – sempre muito direito nos seus cinquentas de mago e de cidadão. Por essa altura eu andei bastante atacado por uma nefrite de que só me livraria mediante uma operação no Santa Cruz de Carnaxide. Mas, até lá, estive uns tempos a perder tempo em consultas com outros Hipócrates. E esse amigo, desveladamente, procedia assim: ia esperar-me a Santa Apolónia, que era onde parava/pára o combóio que vai do nordeste alentejano à capital; ia comigo à consulta e, fosse durante uma, duas ou três horas, esperava pacientemente conversando comigo e até com outras pessoas presas ali ao ordálio da dor (e todas ficavam encantadas com o seu verbo amigável, comparticipativo e esfusiante de criatividade); depois, para me acalentar, levava-me a casas-de-pasto e restaurantes e a seguir ao cinema ou à Feira Popular a comprar livros, ou aos cafés duma Lisboa que já me parece perdida num sonho (bom).
O que a gente falava – de livros e de pinturas, de coisas de dentro e de coisas de fora, de projectos que em parte efectivámos e de sonhos comuns! “Mas por muito que falemos nunca chegaremos a dizer tudo!” me preveniu ele uma vez com a sabedoria e a sensatez que lhe é apanágio.
Tantas coisas que recordámos, que dissemos na hora ou apenas pensámos!
E é desse amigo, pessoa que dois dias antes se tivera a justeza de distinguir com um galardão (ou foi ele que distinguiu o galardão atribuído?) que eu vos deixo aqui um poema de que muito gosto – e creio que Vocês também irão gostar.
Vai à guisa de abraço que lhe endosso em público, fraterna e comovidamente.

O HERÓI

Herói é o meu nome.

Meu olhar frio, arguto
Não vê coisa que o dome.
Meu esforço rude e sano
Não desmaia um minuto.

Sou herói todo o ano.

Quando passar por vós, naturalmente,
com este meu ar simples e no entanto diferente
e no entanto diferente do ar do resto da gente
não digais: é fulano.
Dizei: é o Herói.

O herói, simplesmente.


Mário Cesariny



NOS 70 ANOS DA MORTE DE
FERNANDO PESSOA

Faz hoje setenta anos que morreu Fernando António Nogueira Pessoa, num quarto do Hospital de São Luís dos Franceses com vista sobre o Tejo. Nesse lugar pequeno permanece ainda hoje uma gravura com a efígie do poeta e com a reprodução do manuscrito de um poema seu. Como homenagem ao autor d’ O Guardador de Rebanhos e ao homem que um dia aconselhou um garoto seu vizinho a não se “deixar vencer por medíocres”, “Estrada do Alicerce” publica hoje três poemas da sua imensa obra (dois dos quais os últimos que escreveu), traduzidos da língua inglesa por Luísa Freire.


O POEMA

Um poema dorme em meu pensamento,
Capaz de expressar minha alma inteira.
Vago eu o sinto, como som ou vento,
Mas já talhado em forma derradeira.

Nem estância ou verso ou palavra tem.
Tal como o sonho ele não tem lugar.
Um mero senti-lo, que difuso vem,
Como névoa feliz cercando o pensar.

Neste mistério noite e dia assim
Eu o sonho, o leio e o soletro,
E na berma das palavras sempre em mim
Parece pairar vago e completo.

Sei bem que ele nunca será escrito.
Também sei que não sei o que ele é.
Mas só de sonhá-lo, feliz já fico,
E ventura é ventura, falsa até.

(in O Rabequista Mágico)

*****

Ele ‘screveu óptimos versos
Estando sempre embriagado.
Pior podia ter sido.
Podia escrever piores versos
Mentalmente em melhor estado.

Isto assim está tudo errado.
Nós nunca estamos cientes
De quem é forte ou é fraco
Ou assim-assim somente.
Pertencendo à humanidade, vivemos e desejamos
Mas sempre nos preocupamos.

Nunca nos vem a razão
Excepto se nos chegar,
De súbito e para sempre, aquela real visão
Do que nos puder salvar;
E isso é algo jogado
Entre o que é ou tenta ser,
Ou algo que não lembramos
Ou algo que é já perdido,
Ou algo que ‘speramos ver,
Ou só nada, sem sentido.

[18/07/1935]

*****

O sol feliz está a brilhar,
O campo é verde e contente,
Mas tenho o peito a ansiar
Por algo que está ausente.
Anseia por ti somente,
Anseia por beijos teus.
Não importa se és fiel
A isto.
O que importa és tu somente.

Sei que o mar está cintilante
Debaixo do sol de verão.
Sei que as ondas são brilhantes,
Cada uma e todas são.
Mas ‘stou de ti afastado,
Oh, dos teus beijos ausente!
E isso é o que há de verdade
Nisto.
O que importa és tu somente.

[22/11/1935]
QUANTA LITERATURA!

O Ministério da Educação do Brasil colocou em linha uma página que disponibiliza, livremente, algumas das páginas mais memoráveis da Cultura universal. Vale a pena visitá-la, como é óbvio. Basta clicar no link "Domínio Público". Não perdereis o vosso tempo...
ESTA VIDA DE PROFESSOR (2)

Não fiz greve no dia 18 de Novembro. Fiquei contudo indignado com a manobra de diversão do Ministério da Educação, que pôs em causa a boa imagem dos professores – no momento em que estes expressavam livremente as suas inquietações profissionais. Perante a greve, o Secretário de Estado Valter Lemos poderia ter vindo a público contradizer os motivos que levaram milhares de docentes para a rua e que provocaram o fecho de quase cinquenta por cento das escolas. Seria legítimo e aceitável. Mas não. Preferiu cuspir sobre os professores, divulgando um estudo (?) que terá descoberto um “grande” absentismo entre eles.
Para ser sério, o documento deveria ter vindo na companhia dos índices de absentismo de toda a Função Pública e dos responsáveis por cargos políticos. Só assim poderíamos comparar para formarmos uma opinião sólida. Saberíamos então se os professores faltam mais do que os médicos, do que os juízes, do que os empregados das finanças, do que os deputados, do que os polícias... e porquê.
Admitamos, no entanto, que tal estudo abrangente não interessaria ao senhor Secretário de Estado (hipótese que se afigura provável, tanto mais que só os professores faziam greve...). Ainda assim, o documento em causa revela uma honestidade ínfima. Para que se vislumbrasse, o responsável do Ministério teria que explicar aos portugueses os motivos que levam os professores a faltar. Sem estes elementos, há quem possa acreditar na existência de manobras impróprias de uma democracia – mais comuns em regimes cuja acção política se baseia não no debate cívico, mas no assassinato de carácter de cidadãos individuais ou de grupos profissionais, religiosos e políticos.
Se não, vejamos. Salvo nalguns casos especiais, aos professores “aplica-se a legislação geral em vigor na Função Pública em matéria de férias, faltas e licenças”, conforme afirma o artigo 86º do Estatuto da Carreira Docente. Ora, essa legislação é clara no que respeita à ausência ao serviço do funcionário. Só há duas situações possíveis: falta justificada e falta injustificada.
Desde que justifiquem legalmente a sua ausência, quando faltam os professores usufruem de um direito que a Lei lhes confere. Convém lembrar aos leitores – já que Valter Lemos não quis fazê-lo – que as razões da falta podem ser diversas (previstas no artigo 21º do Regime Jurídico das Férias, Faltas e Licenças dos Funcionários e Agentes da Administração Pública): casamento, maternidade ou paternidade, nascimento de descendente, consultas pré-natais e amamentação, adopção de menor, falecimento de familiar, doença, doença prolongada, acidente em serviço ou doença profissional, reabilitação profissional, tratamento ambulatório, assistência a familiares, isolamento profiláctico, estatuto de trabalhador-estudante, equiparação a bolseiro, doação de sangue, cumprimento de obrigações legais, prestação de provas de concurso, desconto nas férias, etc.. (Se não justificarem as suas faltas, sofrerão várias penalizações: perda de remunerações correspondentes aos dias de ausência, desconto nos dias de férias do ano civil seguinte, desconto para efeitos de antiguidade, de progressão e de concurso, não esquecendo o desconto no tempo necessário para a aposentação.)
Perante tudo isto, das duas, uma. Ou Valter Lemos quis esbater os motivos da greve através de um grave ataque à imagem pública dos professores, ou, então, preparou alguma mudança legislativa, retirando direitos aos docentes. Já estou a ver o cenário... Ao contrário dos outros servidores do Estado e trabalhadores(com eles não se preocupou), os professores deixarão de ter lua-de-mel, não ficarão em casa quando os filhos nascerem, serão proibidos de ficarem doentes, serão obrigados a encontrarem amas-de-leite para os seus bebés, não poderão cuidar de familiares, não irão ao funeral destes, não poderão tirar novos cursos, não poderão dar sangue, serão impedidos de testemunhar em tribunal, não poderão receber formação, estarão impedidos de tratarem de assuntos pessoais inadiáveis...
Pena é que Valter Lemos não pense em dar aos professores do Básico e do Secundário o mesmo direito que os docentes do Ensino Superior têm: o de negociarem com os alunos novas datas para aulas, quando têm que faltar. Tenho a certeza: o absentismo reduzir-se-ia. Porque a grande maioria dos professores gosta da profissão que tem – e só falta às suas aulas quando não pode deixar de fazê-lo.
Nicolau Saião
(ilustração de Aldo Alcota - Chile)


SAUDADES

“A saudade é a homenagem que a alma do presente presta à alma do passado”
Edmund Burke


A saudade, segundo os peritos e os manuais académicos da especialidade, é um sentimento genuinamente português, embora também exista - é claro - na alma de qualquer cidadão estrangeiro.
Presente nos versos de Bernardim, de Camões, de Garrett, de Teixeira de Pascoaes, também se patenteia em trechos de Camilo, de Eça, de Rodrigues Miguéis, de Vergílio Ferreira, de Branquinho da Fonseca e em tantos mais prosadores, sem esquecer dramaturgos ou cineastas os mais diversos.
A saudade...É um sentimento terno, profundo, onde se mescla a melancolia e o enlevo pelos tempos idos – uma espécie de mistura de nostalgia com deslumbramento e recordação.
Foi isso que senti, dias atrás, ao atender um par de telefonemas, um deles já bem dentro da noite bendita e dois mails a descompor-me. Os quais, apesar de anónimos e naturalmente intempestivos, tiveram o condão de me despertar o doce sentimento da saudade de tempos passados quando, nos meados de noventa e com esta característica interventiva que Deus me deu, exercia a crítica frontal a gentes desvairadas numa das rádios locais e num semanário do Alentejo, provocando idênticas manifestações...salafrárias.
Confesso que fiquei comovido e algo nostálgico. A saudade que eu já tinha de receber, em frases sugestivas na sua coloração específica, estas comunicações estimulantes! Alegremente, entendo-as como a comprovação de que os textos que dou a lume por aqui e por ali estão a calar fundo na (in)consciência de certa gente mais ou menos letrada (uma vez que sabe ler o que se escreve...).
No fundo, o desvelo desta “rapaziada” pode constituir boa bitola para qualquer cronista aquilatar da repercussão dos escritos em que, como se diz em português de lei, faz questão de “chamar os bois pelo nome”.
Bem hajam, rapaziada, pois assim fica-se sabendo que o que dizemos e escrevemos não tomba em orelhas moucas!
E assim sendo, digo com enlevo a esses meus anónimos “admiradores”: não pensem que perdem o vosso tempo. Pelo contrário! A vossa comunicaçãozinha, apesar de algo sórdida e quiçá um pouco abjecta, não cai em saco rôto: de facto, tem o valor de positivamente me dizer que devo continuar a despertar-vos “ternura” e atenção mediante as minhas pobres laudas. Que procurarei aperfeiçoar.
A saudade que eu já tinha destes carinhos!


o sopro, o ventre, a imagem

(Daniel Costa)



- Guardei, minha mãe, na tua voz o último voo devorado pelo mar. Seccionado o coração, tentei elevar perante o vento o segredo da fala e da memória, a circulação da carne sobre as ondas – sem ver sequer que não podia atingir com tão frágil instrumento o calor dos líquenes e da tua mão. Sobre a montanha falava a linguagem dos pássaros (ou dos anjos). Vestido de negro, guardava sob o cabelo a velocidade e o horizonte. Ficava-me longe a nascente. A terra devorada por esta habitação. Por todas as moradas que o sopro fazia(m) recuar. Nada ficou desse tempo. Não mais respondi à mensagem nascida a poente. Fotografei nesse segundo o prado e a tristeza. O vendaval sem voz durante a tarde. Que viagem sobrou da ilusão? Cortei o fio derradeiro para subir, sem medo, os nove degraus do firmamento. Saí dessa caverna para te deixar a minha voz, o meu vento e o meu segredo. Deixei na escuridão a luz e a alma para com elas alumiar o corpo inteiro que vou desfazendo nos teus olhos para melhor reconstruir o universo.
Guarda, minha mãe, na tua voz esse voo nascido sobre o mar. Assim continuarei decifrando a corrente que levou desta ilha à tua ilha a flor da noite sobre a noite. A nave retorna em silêncio ao útero que um dia devorei. O asfalto rebenta à nossa porta fazendo crescer no coração a planta desta casa onde vivo. Fotografei contigo ruínas e vestígios desse teatro do mundo, quase a despenhar-se no oceano. Recolhemos os dois pedaços de tijolo e de argamassa, telhas há muito tempo sem água, pedaços de madeira em que o fogo pintara a inscrição do medo. Lembras-te, mãe? De súbito ficámos ambos escutando o sopro e o sangue – dissolvendo a floresta encoberta pelas ondas. Nesse dia guardei na tua voz o fogo e o alimento. Soube então que, mais tarde ou mais cedo, teria que esculpir nesse ventre a minha imagem, salvando para sempre do relâmpago o meu corpo, a minha fome – essa memória.



(Na imagem: uma pintura de Daniel Costa. Quem desejar conhecer outras obras deste jovem artista, infelizmente já falecido, poderá visitar o sítio das Edições Vendaval, incluido na lista de links.)
a carne, o campo, a solidão

(Francisco Bugalho e Cristovam Pavia)



- Não pude, meu filho, receber no peito a carne e a madeira. Nesta terra reservei de antemão o espaço necessário para aumentares comigo o fogo em que fui depositando a minha sede. Perdeste a chave, eu sei. Mas fertilizaste com a tua mão o rosto dessa escultura virada a nascente. Na montanha, a água do tanque ficou límpida. Nela entalhaste o oiro e a agonia. O medo desfez a porta. Colocou sobre os músculos o lintel dessa torre, como se fora um tronco de carvalho. O líquido assentou no coração. Só então pudeste beber desse cálice esculpido pelo mar e pela sombra.
- Recebi, meu pai, o tempo e a sementeira. Procurei nesta terra um veio de água para lavar e alimentar o coração. O campo enegrecia. Fui escutando, quando não conseguia vigiar, essa ponte sobre o mundo. Que lugar me pertencia? Sem olhos, o verbo toldava o movimento. A água corria. Entre os lençóis postos de novo. Colei retratos de gente. Desenhei mapas, paisagens e rostos. Anotei com minúcia estradas que se cruzavam comigo. Contudo, o campo enegrecia. Transportei a humanidade inteira no peso dos ossos e da carne. Atravessei a corrente transportando sobre os ombros a viagem e o desespero. Em silêncio, tentei regressar. A semente ardia entre os dedos queimando lentamente a pele e as unhas. Espalhada pelo mundo, era preciso reunir essa carne para com ela fertilizar o vale e a ribeira. Sobre o arco registei o cântico dos mortos. Procurei uma paisagem para alimentar o coração. Diante da imagem tive de novo o corpo reunido. O sangue desenhou no mármore o canto da devesa. Entre as ervas e a inscrição do medo – pude descansar.
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

SANDRA COSTA



1.
Arestas de agitação profunda
como um esquecimento.

2.
O que me dói no chão [e nas palavras]
é o latejar de uma fuga que não existe.

3.
Nenhuma flor [ou o fulgor do medo].

4.
O silêncio crepita
e a solidão do mundo é maior.

(in Nenhuma Flor)


*****


Repercutem os nomes abatidos
a luz atravessada do avesso
as películas que ficam do absoluto dos poemas
o ofício da vigília dentro do sono mais profundo

- designações trémulas do sagrado
ou um par de asas a corromper o silêncio –

(idem)


*****


O que torna
o poema
imperceptível
é
este ar
de Outono
que tem

- vela-se o tempo
como uma sombra –

(idem)


Sandra Costa (S. Mamede do Coronado, Trofa, 1971) é professora de História nos Ensinos Básico e Secundário. Publicou: Sob a Luz do Mar (Campo das Letras, 2002), Nada se Sabe das Profundezas (In-Libris, 2003) e Nenhuma Flor (In-Libris, 2004). É co-responsável pelo blogue Tempo Dual.

LANÇAMENTO DA "CALLIPOLE"

É já no próximo domingo, dia 27, o lançamento do número 13 da revista Callipole, editada em Vila Viçosa. A apresentação decorrerá no Cine-Teatro Florbela Espanca da vila alentejana, pelas 17 horas, no âmbito do Primeiro Encontro Ibérico de Revistas Culturais (que terá sessões ao longo de todo o fim-de-semana).
Proximamente darei conta do conteúdo da revista. Mas posso destacar desde já a publicação de poemas de Tiago Gomes, Sandra Costa e Renato Suttana, de um ensaio de Nicolau Saião sobre a poesia de José do Carmo Francisco e de um bloco temático de homenagem aos poetas J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (com textos de Amadeu Baptista, Carlos Garcia de Castro, Fernando Guerreiro, João Rui de Sousa, Levi Condinho, Nuno Rebocho, etc..).
Se puder estar presente, não hesite!
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

JORGE REIS-SÁ

Melancolia

O tojo caindo o sol do fim da tarde. A caruma dos pinheiros
traz as crianças para a infância, os velhos jogam à malha no
caminho de Candeeira e as mulheres conversam junto aos
tremoços, chamando-os, desde o coberto, para a merenda.

A avó abre o postigo para ralhar aos moços, leva-os para
a cozinha onde lavam as mãos do pó que a alegria trouxe.
Iluminam-se na broa de mais um domingo encomendado à felicidade.

(in Biologia do Homem)



Esternocleidomastóideo

Tenho a juventude como uma pedra – não
há força que reste do meu corpo para a
levantar. E existe o ar, toda a atmosfera
como um sopro quente brotando da boca.

A atmosfera pressiona a pedra contra o
peito, massacra os pulmões e o coração, as
costelas, os músculos, todos os inverosímeis
nomes que lhes dão. Digo que não me deixa

respirar, o ar, o sopro de vida com que me
fizeste existir. Pai – pedra, ar, força translúcida
invisível que me comprime a juventude.

Pai – morte ao pai e à atmosfera que me
deu ar e que agora sufoca os inomináveis
músculos que resguardam o coração.

(idem)



Em Monfebres com Rui Lage

Em Monfebres existe Deus, está sentado à sombra das casas.
A cara dos homens espera os anjos descerem do pastoreio
e refugiarem-se nos ninhos. Em Monfebres os riachos sulcam

os montes e elaboram os vales. De noite, os grilos acompanham
o canto das águas pendurados nas patas, seguros nas vinhas
que lhes fazem na toca a sombra diária. As cabras alegram-se
da abundância de encostas, os casos das cabras esmagam
as pedras e o calor. E não há morte. No monte das febres
morreu-se a última vez há muitos anos,

encostado às vinhas, saboreando o verão no fim de tarde
pesado e quente, esperando que Deus sinalizasse a salvação.

(idem)



Jorge Reis-Sá (Vila Nova de Famalicão, 1977) é formado em Biologia. Exerce a profissão de editor, sendo responsável pelas Quasi Edições e director da revista Apeadeiro. Publicou A Memória das Pulgas da Areia (Quasi, 1999), Quase e outros poemas De Querença (Quasi, 2000), A Palavra no Cimo das Águas (Campo das Letras, 2000) e Biologia do Homem (Quasi, 2004). Organizou a antologia Anos 90 e Agora (Quasi, 3ª edição, 2004).
ESTA VIDA DE PROFESSOR (1)

Tem sido diferente este ano lectivo. Continuo a ter as 22 horas de aulas do costume, mas para além delas passo agora na escola mais 13 horas noutras actividades. É fácil fazer a conta: tudo somado, dá 35. Cumpro assim o artigo 76º do Estatuto da Carreira Docente: 1) “O pessoal docente em exercício de funções é obrigado à prestação de 35 horas semanais de serviço.”; 2) “O horário semanal dos docentes integra uma componente lectiva e uma componente não lectiva e desenvolve-se em cinco dias de trabalho”.
Na componente lectiva não há novidades: oriento aulas de Língua Portuguesa em quatro turmas do 2º Ciclo do Ensino Básico, duas do 5º ano (com as quais passo oito horas semanais) e duas de 6º ano (com cinco horas cada). Passo ainda mais quatro horas com uma área curricular não-disciplinar, o Estudo Acompanhado, que dou a meias com duas colegas. Tudo somado, são 22 horas.
A mudança operou-se na chamada “componente não-lectiva”, isto é, naquele tempo que, antes, estava destinado à preparação das aulas, à elaboração de fichas informativas, de trabalho e de avaliação, à correcção dos trabalhos dos alunos e dos testes de avaliação. Treze horas não era uma fartura – mas ia dando para as necessidades, sem que o Estado me explorasse. Neste ano lectivo (o primeiro em que passei à ansiada categoria de “efectivo”) as coisas não se passam assim. Nessas 13 horas, tenho que estar disponível na sala de professores para substituir algum colega que falte (aquilo que o Ministério chama, com hipocrisia, “acompanhamento dos alunos”, para não pagar horas extraordinárias, conforme manda o artigo 83º do Estatuto). Para além disto, tenho várias horas em que sou obrigado a estar na Biblioteca Escolar para dar apoio aos alunos que dele precisem. Como não sou pessoa para estar sem fazer nada de útil, acabei por propor ao Conselho Executivo da minha escola a criação de um Clube de Escrita que já vai dando os seus frutos numa página da internet que criei com os alunos. Tenho ainda nessas 13 horas vários Conselhos de Turma (reuniões em que os professores discutem os problemas dos alunos e afinam estratégias para resolvê-los) e, por vezes, reuniões de Departamento. Tudo somado, aulas mais substituições mais horas de biblioteca mais clube mais reuniões permaneço na escola 35 horas por semana (quando não são mais...).
Perguntam neste momento: e quando é que este homem prepara aulas, elabora fichas, corrige testes e trabalhos? Respondo: à tarde ou à noite, depois de chegar a casa. Como, entretanto, já trabalhei na escola as 35 horas que o Ministério da Educação me paga, isto significa que todo o trabalho caseiro é feito de graça. Ando a dar esmolas ao Estado (eu e os outros professores). E ninguém me agradece, a começar pela senhora ministra que, nestas contas, representa a República Portuguesa. Mas, como ninguém me pediu esmola nem dei consentimento nesta dádiva, vejo-me obrigado a concluir que eu e os meus colegas estamos a ser roubados (assim mesmo!). Tenho que concordar com a célebre frase dum escritor francês: “Se o Estado fosse um ser humano, há muito estaria na cadeia...
Não me importaria nada de passar na escola as 35 horas de trabalho que são o meu horário - se nela tivesse condições e tempo para fazer todo o meu trabalho de professor. Mas não. Não só não tenho tempo para realizar todas as minhas tarefas (as 13 horas de componente não-lectiva estão ocupadas, como se expôs), como não tenho condições materiais para desenvolvê-las. Concretizo. Na escola em que sou docente há apenas dois (!) computadores para cerca de 70 professores, nenhum deles com impressora e muitas vezes ocupados pelos directores de turma que aí têm que desenvolver o seu trabalho. Na escola em que lecciono (creio que em inúmeras outras a situação será idêntica) não existem gabinetes de trabalho; existe uma saleta de reuniões frequentemente ocupada com reuniões, existe uma sala de professores que não oferece condições de trabalho e uma biblioteca onde os alunos trabalham, não deixando espaço para os professores.
Quem gostaria de ser professor nestas condições? Seria bom ouvir a resposta de alguns figurões com pés de barro que por aí vão achincalhando a boa imagem dos professores portugueses.
VOZES DO BRASIL
O jardim perdido

Vamos criar uma situação: numa certa noite, um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio, como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na cachimónia.
Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as maçãs firmes e doces, nem as pêras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que estes se engelhem e os outros encarquilhem.
Já estou a ouvir, ali do canto, aquele crítico de que eu gosto a dizer-me com unção: ”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto.).
Nisto de escritas e, muito mais, de literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é o único, com mil bombas!
Ou seja: é como se um brasil hortelão, dispondo de frutos de alta qualidade se pusesse feito catrapuz e não ligasse importância ao belíssimo pomar.
Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a relampejar. Nomeadamente mantida pelo amigo a que aludo e que, sendo também um poeta de excepção, escreveu o poema que se segue:

VINHETA

“Viajas pela terra, vês tudo o que está dentro dela (…)"
Texto funerário de Taquert-P-Uru-Abt

Teu corpo floresce selado em páginas necessárias.
Santuário que surge e pousa e torna a ausentar-se.
Um abraço de folhas naquele que te abre à luz
de enigmas proporcionados pelo tempo. As porções

de um mesmo dia que albergam tremor e sombras
de tudo quanto o homem julga torná-lo um santo.
E um chão de folhas caídas (a cela repleta de folhas)
a traduzir a travessia do que recita a própria agonia.

Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te inundam,
o corpo ainda em sopro majestoso florindo um suave
estojo de frases do coração e a saúde de ritos erguidos
por todos os feitos vitoriosos da respiração. Onde estás?

Tuas letras nos chegam em súplicas e cuidadosas dores.
O homem é preservado graças a seu duplo. E floresce
em papiros relutantes enrolados em teu corpo. Aceita
a companhia de deuses para que dali triunfante saia

a soletrar seus martírios e dobre as folhas lidas de modo
a não retornar nunca ao que supõe ter sido um dia.
Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como estar
perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem rejubilar-se

por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os homens
se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada lacra
sua passagem de um tempo a outro: a memória
é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da ilusão,

a rubrica de dotes sacrificiais implantados no espírito.
Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por todas
as formas que exaurem a devoção. Teu corpo oculto
como um pássaro no céu a degustar os tremores do vôo.

Refiro-me à visão de uma ave em que pomos a mão
e se desfaz. Uma miragem da letra e sua soberana sombra.
A presença do homem sentindo-se divino entre deuses,
salvo não sem relutância por seu duplo com sua alma

anônima. Se te queres ali um sol desmaiado sobre o templo,
requer piedade (deusa) para que sejas feliz. A cumplicidade
de alguns poetas, o suborno a uns tantos inimigos, a voz
gravada do morto para que deslacres sua fausta memória.

Não fará mal recitar versos que atestem o conhecimento
sobre as coisas perdidas, ainda que seja um simples trono
ou mesmo uma tora de fogo a sublinhar um tempo de gozos.
Invocas a eternidade e somos levados a seus descaminhos.

Uma vez trouxeste contigo um inimigo, outra a irrigação e o pão.
És o engano e devo ser a sombra ofertada em seu nome.
O azinhavre imperioso da oração. O tecido de incenso.
O quanto tem custado nossa fé tão satisfeita. Um deus

ao inclinar-se requer juntar-se a seus fiéis. Um outro
posta-se ereto sempre para que deixe seu coração bater.
O que se mostra envolto por uma serpente seduz
pela oferenda de seu próprio mistério. Teu corpo floresce

por libações do desejo. Desenhamos as letras inferiores
para que sejam evitadas ou aviltadas? O próprio escriba
entalha o tende piedade do escriba que aja contra
a letra. Apenas teu nome safa-se de toda tempestade.

Não o repelimos ou assimilamos. Dele nos livrarmos
não podemos. Devora-nos e os ossos recriam sua forma
incessante e repete-se ao ponto de não mais sabermos
se somos carne ou espírito, dor ou símbolo, nume ou nada.

Decerto será misericordioso o calor de teu corpo
estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde causa dano
a oportunidade perdida. Ali onde continuamente o ser
perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos inúmeras

vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e assinamos
com trêmulo vigor as faixas que garantem que teu corpo
não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a odisséia
de ilusões de que floresces. Onde és o corpo sob nossos pés.

Deusa de um túmulo encravado em nosso espírito.
Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos por toda
a pedra santa. O verso é o verbo diante de si. Dentro
do livro está o homem: carregado de sombras e vertigens.


poema de Floriano Martins (editor da revista electrónica "Agulha")
introdução de Nicolau Saião
CITAÇÕES PARA O FIM-DE-SEMANA

"(...) não tema nem o silêncio nem a apreciação em um país onde toda a gente, fora de todo o propósito, trepa à cátedra e doutrina sobre o que absolutamente desconhece, e onde os mestres profissionais, num vasconço que mais realça a intenção pedantesca - da qual julgam tirar efeitos fulminantes -, só armam trovoadas de palanfrório, trovoadas secas, perfeitamente inofensivas..."

MANUEL TEIXEIRA-GOMES in Inventário de Junho


"(...) os verdadeiros livros devem ser filhos, não da plena da luz e da tagarelice, mas da obscuridade e do silêncio."

MARCEL PROUST in O Tempo Reencontrado


"O desdém dos outros, como a desgraça, são às vezes magníficos para se triunfar. Enrijam, enervam."

RAÚL BRANDÃO in Sonhos

O Poeta e o filho dele

Em Agosto de 96 José Carlos Breia visitou-me na minha casa do Atalaião. Estava de férias em Borba e sempre que ali jornadeava não resistia ao apelo que do nordeste alentejano lhe chegava.
Geralmente fazia-se acompanhar dum presente para acalentar o amigo. Eu fornecia os comes-e-bebes, ele fornecia a conversa comparticipativa de poeta e de cavalheiro sem mácula.
Dessa vez trouxe-me uma preciosidade: a primeira edição, belíssima, de Canções de entre céu e terra de Francisco Bugalho, ilustrada com “gravuras em madeira, originais do artista húngaro Átila Mendly de Vétyemy” conforme reza na “Justificação da tiragem”.
O livro, organizado para as “Edições Presença” sob cujos auspícios foi dado a lume, recebera-o das mãos de Luís Moita, pai do autor de Cidade sem Tempo e companheiro dos presencistas. Ele tinha outro autografado e o remanescente quisera entregá-lo à minha guarda perene.
É dessa edição de 1940 que retiro o comovente poema que aqui se epigrafa.
O menino de que se fala é, obviamente, Cristóvam Pavia.
Tanto eu como António Luís Mouta o evocámos em 92 (“Um serão com Cristóvam Pavia”) através duma das emissões do “Mapa de Viagens”, programa que eu então realizava na rádio portalegrense.
…Do autor de Lugar Nenhum (distribuição Assírio & Alvim, org. de José Bento) dar-vos-ei em breve, aqui, alguns textos dali retirados. - Nicolau Saião


Dois Meninos
poema de Francisco Bugalho

Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.

As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais…

Meu menino d’olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.

Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino…

Vozes do Brasil
RIBEIRO COUTO
Estrela-do-Mar em Sesimbra





Morta na areia, dura estrela fria,
Que abandonada luz em ti viveu?
Estrela, sim, mas quem te chamaria
Estrela, se à mercê da mão como eu
Sentisse a tua condição sombria?

De que noite abismal, de que remota
Paragem ao molusco o céu chegou,
Qual o seu nascimento e a sua rota,
Se do fundo do mar se afeiçoou
Ao que anda além da superfície ignota?

Caída, não. Não vem de estrela alguma
Esta que nos oceanos já dormiu
E amortalhou-se com areia e espuma.
Da terra vem. Do chão do mar surgiu
E ainda é mar que da concha lhe ressuma.

Quebrá-la agora bem que eu poderia.
Mas para quê? Nada compreenderei.
Nada compreenderei, estrela fria,
Senão que morta estás e que não sei
Se duraste um milénio ou só um dia.

(in Entre Mar e Rio, 1952)
Germain Droogenbroodt

Fonte dos oito canos *

Oito bocas cravadas
no ocre da parede. Alimentadas
como por milagre
por um prodigioso caudal de água
onde o peregrino
a cabeça inclinada
devoto, as mãos estreita
e reza:
pura e cristalina água
leva de mim
mais do que esta sede.

* Fonte em Ronda, Andaluzia (Espanha),
onde Rainer Maria Rilke escreveu a sua “Trilogia espanhola”



Prece

Pudesse ser minha mente
tão pura
como este momento
de luz e canto de melro
despreocupada
do porquê –
sem outra resposta
salvo o que em sua diversidade
de pétalas e cores ofereça:
a rosa.


Vozes

Aos ventos que as levam
reviram e devolvem
entregam suas perguntas
A serra reflete a resposta
com sinais rúnicos
de incidente luz.

Tradução de Ivo Korytowski e Virgínia de Oliveira
Extraído de “Palavreiros – 4º Festival Mundial de Poesia”

De novo o medo

Vive-se neste momento em Portugal, tal como em certas alturas do chamado PREC, de novo um clima de sedição. Claro, insofismável, digamos que proposto com todo o descaramento por asseclas do poder que só está tranquilo quando manda discricionariamente e quando estabelece a apreensão na cabeça do Zé Povinho.
Certas entidades já nem mesmo disfarçam os seus intuitos visando desestabilizar o regime e criar as condições propícias a um golpe de Estado institucional, ou seja: não feito através das armas e do envio para a prisão dos adeptos do “establishment” – a Europa talvez não estivesse pelos ajustes – mas mediante o método mais soft, mas infinitamente mais cínico e perverso, da aquisição de “uma maioria, um governo, um presidente” como referia o slogan muito glosado dos nostálgicos do direitismo mais alvar e servir-se disso, depois, para o conhecido “quero, posso e mando”.
Em determinadas localidades, já nem mesmo se tapam, como sói dizer-se: declaram com santa ingenuidade que o seu alvo é, através dos bons ofícios do putativo próximo presidente da República, colocar no redil da marginalização pessoas que não os apoiem nem os sufraguem, numa atitude claramente anti-democrática que se espelha na jaculatória propagandística do algarvio de Boliqueime, que declarou com toda a desfaçatez que não falaria, não dialogaria, não debateria a não ser segundo as suas regras de candidato a autocrata para, pasme-se, dar dignidade à campanha. Ou seja: infere-se que a maior dignidade seria conseguida se não houvesse debates de todo em todo, como nos bons tempos do doutor Salazar. Percebe-se perfeitamente que para certos fulanos a democracia de partidos é um estorvo e a democracia “tout court” uma espécie de azia que sairá com os sais de frutos de uma presidência musculada e desejavelmente anti-constitucional.
Em certos lugares, como na cidade onde moro, a receita é simples: marginalizam-se os dissidentes (nos diversos campos onde actuem, culturais, educacionais…) – muitas vezes deixando que siga curso a difamação e a calúnia – cala-se-lhes a boca através da discriminação e das veladas ameaças. Mais tarde e quando já tiverem tudo nas mãos impolutas seguir-se-ão, se necessário, outras acções mais decididas e viris. E, se tal se mostrar preciso, far-se-á o que for de fazer para meter juízo nas cabeças “implumes” dessa gente. Não é para isso que servem os sistemas jurídicos desqualificados, as forças militarizadas sem ética e os esbirros declarados?
Não pensem os ingénuos que por vivermos na “civilizada Europa” estamos defendidos destas coisas sibilinas e inquietantes: basta olhar-se para a Itália e meditar-se no que Berlusconni tem feito à pátria de Miguel Ângelo. Só no Terceiro Mundo é que estas coisas acontecem? Ora, ora…
Há sectores que jogam na consabida falta de memória das populações, no seu desejo de facturar mesmo que a produção escassa não o aconselhe, no egoísmo dos que, depois de delapidarem as gordas esmolas de Bruxelas, querem também delapidar os poucos cobres que se salvaram da voragem consumista posta a correr precisamente pelo grande economista que agora se apresenta como salvador da pátria.
Para falarmos claro: esses sectores que só esperam um decisivo passo em falso do pouco excitante primeiro-ministro actual para, num passe de mágica, nos saltarem à garganta, como nos filmes do Stephen King…

Post scriptum – Horas depois de escrito este artigo, Cavaco e Silva foi entrevistado pela TVI no âmbito da roda de sessões com os candidatos levada a efeito por aquela estação emissora.
Confrontado apenas com uma Constança Cunha e Sá até um pouco veneradora, Cavaco não se aguentou, ficando reduzido àquilo que verdadeiramente é em igualdade de terrenos: um intelecto vulgar, metendo os pés pelas mãos e preso de contradições que o seu espírito não consegue, realmente, deslindar.
Por esta amostra se percebe a estratégia de procurar ficar calado o maior período de tempo possível, assumindo o ar hierático de estadista genial. É a sua melhor defesa e a mais eficaz imagem de marca de quem nada de verdadeiramente fundamental tem para comunicar. Quando se defrontar com uma velha raposa da política e dos debates a sério, como Mário Soares, deve ser giro o estenderete…
Nicolau Saião / ilustração de Enrique Lechuga

Sabia que o pintor Camille Pissarro era filho de um judeu marrano de Trás-os-Montes? Eu também não. Para melhores informações, visite o blog "Rua da Judiaria", de Nuno Guerreiro.
CRISTÓVAM PAVIA

REQUIEM

(ao menino morto, eu próprio)

A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.

Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos:
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas...)

Oh, não há solidão nas neblinas de Inverno
Pela erma planície...

E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...
Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo.
Já me confundo contigo.




POEMA

(de uma fotografia de meu Pai comigo,
pequeno de meses, ao colo)

Vamos através do incêndio
Mas não temas, meu filho.
Podes dormir nos meus braços frescos e fortes,
Embala-te a cadência dos meus passos.

Vamos através do incêndio
E sonhas.
Detrás das tuas pálpebras a tarde
Beija e doira as folhas dos sobreiros.

E quase me esqueço
Deste puro fogo,
P’ra te dar frescura.

Arde o meu sangue calmo,
E o meu suor, arde.

E, devagar,
Vamos através do incêndio.

Dorme, meu filho.



Da antologia do Prémio Almeida Garrett – 1954, editada em 1957.

GENEROSIDADE

Sempre que posso, perco-me pelos alfarrabistas de Lisboa ao encontro de raridades que me toquem pela sua importância, mais do que pelo seu valor monetário. Tenho para mim que alguns livros antigos ou em segunda mão procuram os seus próprios donos. Não somos nós que vamos na sua demanda, são eles que esperam por nós – aguardando a nossa visita e a nossa atenção apaixonada.
Tenho tido, nos últimos tempos, momentos felizes na minha paixão bibliófila. Em poucas semanas consegui adquirir – ainda por cima a preços incríveis! – várias preciosidades. Não é para fazer inveja que levo ao vosso conhecimento os nomes dos meus novos amigos (confesso-vos, os livros são para mim amigos): Húmus, de Raúl Brandão (2ª edição); Estudos Críticos, de Castelo Branco Chaves; Os Positivistas, de Álvaro Ribeiro; Sangria, de Fernando Grade (autografado); Entre Mar e Rio, de Ribeiro Couto; Goya, de Ramón Gómez de la Serna; Agosto Azul, Cartas Sem Moral Nenhuma e Inventário de Junho, de Manuel Teixeira-Gomes; São Paulo, de Teixeira de Pascoaes; O Mal do Tempo, de Berdiaev; várias traduções de Agostinho da Silva e a sua biografia de Leopardi; Os Idólatras, de Maria Judite de Carvalho; etc..
Deixo para o final duas obras valiosas: uma antologia do Prémio Almeida Garrett, de 1954, e Cio, o primeiro livro do poeta portalegrense Carlos Garcia de Castro, editado em 1955. Sobre a primeira escreverei nesta crónica. Sobre a segunda debruçar-me-ei em próxima ocasião, pois merece um texto individual, por motivos que nessa altura descortinareis.
Atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto em 1954, só três anos mais tarde a antologia do Prémio Almeida Garrett viu a luz do dia. Este concurso e este livro têm uma história que merece ser contada, dado que envolve nomes fundamentais da Literatura Portuguesa do século XX. Começa pelo júri, com nomes que dispensam apresentações: Afonso Duarte, João Gaspar Simões, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio. Foram 103 as obras concorrentes. Entre elas coube o galardão a uma obra de Miguel Torga.
Neste nome reside a mais intensa dimensão desta colectânea. Não integra um único poema do autor de Poemas Ibéricos, uma vez que a obra teve edição autónoma. Não foi paga, como seria de esperar, pelo Ateneu Comercial do Porto, que promovera o prémio. Foi paga pelo primeiro premiado que, tendo conhecimento da alta qualidade de algumas das obras que haviam sido preteridas em favor do seu livro, decidiu abdicar do valor monetário que lhe era devido para proporcionar aos seus colegas de letras (jovens ainda e inéditos em livro) as alegrias da publicação. (É caso para perguntar: quantos poetas “medalhados” do nosso tempo teriam hoje coragem para manifestarem uma generosidade idêntica?)
A história terminaria aqui se os autores antologiados no livro que veio para a minha biblioteca fossem hoje ilustres desconhecidos. Acontece que, entre a vintena de poetas aí incluídos, constam alguns poetas hoje indispensáveis no edifício da Poesia Portuguesa Contemporânea. Entre eles, destacam-se Fernando Echevarría, Cristovam Pavia, António Gedeão e, além deles, Fernando Vieira,José Carlos Ary dos Santos (que autografa o livro) e alguns outros, com obra estimável.
Estes autores não tinham, em 1954, qualquer livro publicado. Tivesse Miguel Torga guardado o dinheiro no bolso, qual teria sido o destino da obra destes escritores, cuja poesia hoje reconhecemos?

PS – Em Março de 2004 garantiram-me que a obra poética de Cristovam Pavia seria reeditada, o que não acontece desde inícios dos anos ’80. Mas, até hoje, nada surgiu. Para quando será? Parece-me urgente!

Às vezes chegam cartas…

…outras vezes chegam convites das mais diversas origens. Uns que nos maçam, outros nem tanto. Coisas…
Mas no meio da ventania postal, em certos dias vêm até nós flores e pérolas, rastos de beleza que nos tornam o momento algo que nos eleva e nos consola. E o dia fica melhor.
Desta vez foi da Galeria São Mamede (o mesmo nome da serra que vejo quotidianamente ali ao cimo, por detrás do aprazível lugar do Reguengo) ali no Porto, que me chegou a notícia de que dia 12 (exacto, depois de amanhã) abrirá a partir das sete da tarde uma Exposição de Julio/Saúl Dias para celebrar o primeiro centenário do grande pintor e poeta.
E esta expressão não está aqui por formalismo…literato. Nem, evidentemente, podia estar - uma vez que sem favor (basta olhar, basta ler) se trata dum dos melhores e mais serenamente talentosos artistas da nossa contemporaneidade. Do nosso tempo vivo.
Júlio esteve - tal como enquanto Poeta – antes do tempo oportuno no lugar onde as coisas aconteciam para valer. Por vezes discretamente e por isso é que ali em cima falei em serenidade. E por isso é que tantos talentarrões distraídos se esquecem da sua poesia, da sua pintura, para epigrafarem vozes que vão enrouquecendo cada vez mais, pese ao quase heróico tentame com que os exaltam para que permaneçam no vão-de-escada das estantes nacionais.
Mas, como dizia Pierre de Boisdeffre, “a morte não tem poder contra uma obra”.
Primeiro centenário. Outros virão…

Nicolau Saião

(Ruy Ventura subscreve e envia daqui um grande abraço ao Engº Reis Pereira, grande defensor da obra de seu pai, Julio-Saúl Dias, e de seu tio, José Régio.)

NOVO ESPECTÁCULO DA MANDRÁGORA

O grupo de teatro Mandrágora, que também edita a revista Bicicleta, está de novo na liça cénica. Digamos assim - porque na liça geral estão eles sempre, já através de incursões em Espanha para tomarem parte em encontros com outros congéneres do teatro e da edição desenquadrada q.b., já para acções desta coisa estranha e encantada que é ser-se actor.
Se puder, vá lá ver a funçanata, decerto não perderá o seu tempo! - NS
POETAS NOVOS DE PORTUGAL

JOAQUIM CARDOSO DIAS

Preparação de um rapto

em silêncio estes animais
entram com a noite nos meus passos
e nem sequer me dói o teu nome
atormentado pelas mais altas torres
devagar fecho os olhos neste segredo
e o vento ressoa como um relógio vazio
na casa onde estou só
no peito onde estou contigo



Depois de terem levado as cadeiras

nunca ouvi os peixes pelo lado de dentro
não os leves mortos
deixa-os buscar comida para que a cidade tenha sono
esta noite



Another shade tem minutes

este foi o tempo em que o dia se perdeu na primeira rua
e se esqueceu de frio e se transformou
em sombra de água de costas para as gotas
a densidade de uma luz soprada
onde um animal cheira outro animal olhando-lhe
a boca há um nome por dizer
cheirando-lhe agora o sexo em mim
de repente
as mãos são tão pequenas


Joaquim Cardoso Dias nasceu em 1973 na cidade de Castelo Branco. Licenciado em Sociologia, é professor no Ensino Secundário. Está representado em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Editou em 2002, na Gótica, o livro de poemas O Preço das Casas, de onde foram retirados os textos que aqui divulgamos.

MARIA ONDINA BRAGA (1932-2003)

DOIS PANOS DA CAMISA

Na dinastia Sung, século XI, já uma mulher aparece entre os melhores poetas da época: Li Quingzhao que cultivou o verso ci com extrema perícia e teve a sorte de encontrar no marido, além de um devoto amante, um camarada espiritual. Mas, se tal aconteceu com Li Quingzhao, quantas outras ausentes das páginas densas da literatura clássica chinesa?
E todavia uma sociedade baseada na erudição, a da China. Fidalgos, não de sangue, como no Ocidente, mas de saber. Intelectuais que, concluído o terceiro grau do exame literário, ganhavam direito a lugares públicos de destaque. Uma sociedade, enfim, baseada na erudição e na hierarquia masculina. Segundo Confúcio, a mulher, ainda que dotada, sempre havia de fazer o contrário do que o homem fazia, ou seja, enquanto ele construía, ela deitava abaixo [...].
Mesmo assim, ei-las a escrever, as chinesas desse tempo: líricas, loas, trocadilhos: Chao T’sai-Chi, Chão Li-Hua, de quem não se conhecem quaisquer dados biográficos:

Com a maré do rio a crescer
Avança a hora da separação.
As cordas dos salgueiros largam, ledas,
O barco onde embarquei meu coração.

Logo que na Dinastia Mongol o drama entra na ordem do dia – textos classificados de sub-literatura e geralmente editados sob anonimato – as suas mais fiéis seguidoras, as mulheres: Chang Kuo-Pin, por exemplo, ilustrada dama da corte do século XIII e autora de uma peça de teatro muito popular, em quatro actos, Os Dois Panos da Camisa. Escritos tidos por medíocres, é verdade, porque a cultura ao alcance delas medíocre também.
A cultura de uma mulher não se compara à do marido que, por assim dizer, se prolonga pela vida fora. (...) A mulher é como se fosse cedo arrastada por uma torrente (os deveres domésticos), sem qualquer esperança de voltar atrás, e de pouco lhe servem os conhecimentos que porventura haja adquirido” – comentário de Lang Ting Yuan no século XVIII. Precisamente quando um “estrangeirado”, Luís António Verney, escreve na Carta XVI: “Pelo que toca à capacidade, é loucura pensar-se que as mulheres tenham menos que os homens”.
Vemos, contudo, na Dinastia Tang, Liu Hsiang compilar em volume algumas biografias femininas, intitulando-as de Mulheres Eminentes. O primeiro trabalho desse género, na China, se bem que já duzentos anos antes se escrevesse sobre vidas de cortesãs famosas pelos seus dotes físicos e artísticos. [...]
Natural, ao tempo, um escritor celebrar as prendas de uma mulher pública e calar as da consorte. Os membros femininos da família, a sua sina, um submisso silêncio.
[...]
Li Quingzhao, portanto, uma rara excepção: poeta e epigrafista insigne, Zhao, o marido, admirando a esposa e admitindo mesmo que a poesia dela possuía uma riqueza que faltava à sua. Isto mal-grado o juízo desfavorável dos críticos quanto ao fervor da linguagem de Li: “licenciosa para uma mulher”.

Murcha a flor do lótus, tapetes de jade
A anunciarem do verão o fim.
Dispo devagar a túnica de seda
E entro sozinha no barco de mim.
Viesse um arauto lá do alto das nuvens
Com uma missiva terna e eloquente...
Os gansos selvagens partindo à noitinha,
E a Lua a arder no meu quarto a poente.

(do livro A Filha do Juramento, editado em 1995 pelas Edições Autores de Braga, comemorando os 30 anos de vida literária da Autora.)
Vozes do Brasil

RENATO SUTTANA

O PORQUINHO-DA-ÍNDIA

O porquinho-da-índia
no poço da jibóia
é um abandonado da sorte.

Sem pai
nem mãe
nem um lugar onde se meter,

não tem para onde correr. –
Enfarrusca-se
num canto.

(Procura abrigo
na toca do inimigo.)
Solta um agudo

gemido
quando a jibóia
(que graça!)

o abraça:
um gemido
que é um ganido

ou parecido.
O porquinho-da-índia
no poço da jibóia

é um abandonado da sorte.

(do livro "Bichos")
RECONHECIMENTO
(Bissau)

a carne queima a sombra e a memória.
deixa sobre os olhos um traço negro.

a água não consegue lavar a cinza deste corpo.
sem membros, o tronco enegrece sobre a terra.
deixa nas árvores o último grito -
lançado na hora do abate.

que corpo resguardava esta carne?
trago às palavras um nome, um gesto, uma fronteira.
sem vida, o meu olhar descobre nas vísceras
vestígios de saudade
que a tarde não conseguiu matar.

sangue apenas?

coágulos dissolvem o centro da cidade.
o metal atravessa as estrelas,
reconhece na carne os odores da última viagem.

que noite vivo?

a memória enegrece, mas persiste.
escavo o esquecimento.

a fotografia permanece
- calcinando o fogo.

(para Joaquim Baptista Ventura, meu pai)